Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Petropolis. Foto A.A.Bispo 2004 ©


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Petropolis. Foto A.A.Bispo 2004 ©


Petropolis. Foto A.A.Bispo 2004 ©

Fotos A.A.Bispo 2004.
No texto: 1981. ©Arquivo A.B.E.
Fotos em branco-e-preto: E. von Hesse-Wartegg, op.cit.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 151/2 (2014:5)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Doc. N° 3129




Petrópolis (RJ)

Franciscanos alemães na cidade de Pedro II sob a República
O
chic da missa das onze
Mons. Giovanni Battista Guidi (1852-1902) e Pe. Michaele Horn OSB (1859-1936)
À memória de Frei José Luís Prim O.F.M. (1935-2013)

 
Petropolis. Foto 2004 © ABE
A revitalização da presença franciscana no Brasil com a vinda de religiosos da Província da Saxônia a partir de fins do século XIX, mais precisamente após a proclamação da República (1889), relaciona-se estreitamente com a a imigração e a colonização alemã.


Os Franciscanos alemães que vieram repovoar os antigos conventos e a reforma da vida religiosa brasileira - embora solicitados de Roma pela Bahia -, dirigiram-se imediatamente ao sul do Brasil. Não dominando o idioma, precisavam de
Petropolis. Foto 2004 © ABE
mediadores e apenas podiam dar início às suas atividades em colonias alemãs, delas partindo o processo reformador da religião e moral que pretendiam. Também as condições naturais para uma aclimatação dos europeus - tão discutida nos estudos coloniais da época na Alemanha (Veja) - levaram à escolha das regiões coloniais do sul, tornando-se Santa Catarina o principal Estado para o ancoramento da rêde que iria ser construida. (Veja)


A consideração da revitalização do Franciscanismo no Brasil é, assim, de significado para os estudos da emigração/imigração e, em geral, das relações culturais entre a Alemanha e o Brasil.


Revitalização da vida conventual no Brasil nas suas inserções em contextos internacionais


A revitalização da presença franciscana no Brasil é relacionada com um movimento de refortalecimento do Catolicismo nos países da Europa e do continente americano, reformado e transformado segundo direcionamentos eclesiásticos anti-modernistas e de fortalecimento da autoridade romana das décadas que se seguiram ao Concílio Vaticano I na Europa.


Foi representado da forma mais evidente no ultramontanismo na França e do reintensificado Catolicismo alemão da segunda metade do século XIX. Este era portador de ressentimentos de secularização, de desapropriações e expulsões, sentindo-se continuamente vítima de perseguições, o que marcou a história político-cultural do Império Alemão na assim chamada „Luta Cultural“.


A revitalização da presença franciscana no Brasil diz respeito, assim, a processos de transformação cultural tanto na Alemanha como no Brasil. Foram marcados por uma orientação dirigida à reversão de desenvolvimentos de natureza político-cultural remontantes à época do Iluminismo. Surge como um fenômeno cultural, uma movimentação dirigida de forma fundamentada e sistemática para o combate de idéias, modos de vida, comportamentos e expressões artísticas de uma sociedade então criticada não só como materialista, mas como secularizada em sentido abrange, embora de identificação católica devido à formação cultural.


Vendo no Brasil como os principais motores desse processo a maçonaria e a imprensa, que registravam a chegada dos Franciscanos alemães como agentes do obscurantismo, compreende-se as tensões e os conflitos que se criaram.


Um combate por meios suaves e de dignificação do culto - sua atualidade


As atuações dos religiosos alemães não foram apenas as de um combate, - ainda em geral conduzido com os meios suaves da simplicidade, modéstia e alegria seráficas -, mas, ainda que menos evidentes na sua militância, as de instauração de um novo desenvolvimento com a solenização de cultos, de edificações de igrejas, conventos e colégios, de formação de novas gerações, de re-educação e re-perfomação cultural. As tensões de base derivadas do combate à secularização, porém, também aqui permaneceram vigentes.


A vinda dos religiosos alemães não pode ser assim estudada apenas como um fato histórico sem maiores consequências, de significado secundário, mas sob a perspectiva de confrontos e interações de processos culturais de graves consequências e cujos desenvolvimentos alcançam o presente.


Considerar a vinda a partir de 1891 de missionários Franciscanos alemães para o Brasil assume assim relevância atual sob muitos aspectos e surge como oportuna em ano que registra os 125 anos da proclamação da República no Brasil.


Ela tem um significado abrangente, pois a análise de decorrências no contexto brasileiro contribui para a elucidação de desenvolvimentos europeus e eclesiásticos em geral. Ela assume atualidade no momento presente, quando a Igreja proclama uma nova evangelização na Europa ou novo espírito missionário no Brasil, e o Brasil vivencia uma sob muitos aspectos inacreditável intensificação religiosa por parte de movimentos evangelicais.


Ela assume atualidade pelas preocupações daqueles que vêm nesse desenvolvimento um perigo para as conquistas do homem no caminho do conhecimento e do esclarecimento, da tolerância e dos Direitos Humanos, tendo-se em vista os conflitos que as religiões criaram e criam em muitas partes do mundo. (Veja)


Paradoxias e interpretações históricas e político-culturais inadequadas


Essas análises exigem o questionamento de perspectivas e imagens muitas vezes aceitas sem maiores reflexões, levando a novos até mesmo „mudanças de paradigmas“. Isso diz respeito tanto ao Franciscanismo, idealizado e alvo de projeções de desejos e expectativas, como à República nas suas relações com o Império.


Esta é em geral vista como um marco em direção ao progresso e à modernização de instituições evidenciada na separação da Igreja e do Estado, enquanto que as autoridades eclesiásticas e os missionários inseridos em movimentos anti-modernistas e moralistas, explicitamente reacionários no intento de reversão de processos a viram como libertadora de Pedro II°, acusado de defensor do Esclarecimento, de uma orientação ao saber, ao conhecimento, aos desenvolvimentos culturais mais recentes e às ciências! (Veja)


Esses paradoxos manifestam-se em particular em Petrópolis, um dos principais, senão o principal centro da presença franciscana no Brasil. Essa „cidade de Pedro“, que pelas suas qualidades climáticas já havia sido residência de verão da família imperial e que era, à época republicana, sede de representações diplomáticas e de altos funcionários e políticos, transformou-se em centro de irradiação das atividades de reforma da vida religiosa brasileira segundo princípios restaurativos europeus através da imprensa, das artes, da música e do ensino.


É compreensível, que a presença de Franciscanos neste seu principal centro em Petrópolis,  marcado na sua história e nas suas construções por Pedro II°, sugira uma proximidade histórica com a monarquia. Nada seria porém mais falso, uma vez que os próprios testemunhos de Franciscanos documentam uma imagem crítica do último imperador, por eles acusados como um dos responsáveis pela continuidade do espírito do Esclarecimento no país e o louvor da República possibilitadora da reconstrução religiosa e moralizante.


Ao mesmo tempo, questionável é a visão indiferenciada da monarquia decaída que a aproxima de um conservadorismo em oposição a um liberalismo da República. Surge aqui como singular e paradoxal que membros da família imperial salientem-se no decorrer do século XX pela defesa de posições extremadas do Catolicismo que não correspondiam àquelas de Pedro II, mas sim a de autoridades eclesiásticas e missionários que louvaram com palavras entusiásticas a queda da monarquia e a instauração da República!


A cultura alemã de Petrópolis como fator explicativo da presença franciscana


Essa importância que coube e cabe a Petrópolis como centro do Franciscanismo explica-se pelo fato de também ser a cidade resultado da colonização alemã, pelos traços alemães de sua cultura e pelas suas condições climáticas favoráveis à aclimatação de europeus.


Explica-se também pelo fato de ser retirado da agitação de grandes centros em meio privilegiado pela natureza, qualidades que os Franciscanos sempre procuraram para o estabelecimento de centros adequados ao silêncio e introspecção da vida conventual e à formação de novas gerações de religiosos e leigos no intento de reforma da vida religiosa e moral da população.


Se essas qualidades marcaram outras fundações dos Franciscanos alemães no sul, Petrópolis tinha o privilégio de reuni-las nas proximidades da capital, próxima assim às instituições e autoridades eclesiásticas e civis da República. A ação reformadora podia aqui desenvolver-se em meio a famílias influentes da sociedade e que, mesmo e sobretudo depois do banimento da família imperial, vieram residir, passar temporadas na agora republicana Petrópolis, fazendo que ali fossem educadas as suas filhas.


IR..Eleanor Dewey. Petropolis. Foto A.A.Bispo 2004 ©

Os traços alemães e mesmo a alemanidade cultural de Petrópolis foram registrados por viajantes alemães que percorreram o Brasil, salientando-se aqui Ernst von Hesse-Wartegg (Zwischen Anden und Amazonas: Reisen in Brasilien, Argentinien, Paraguay und Uruguay, 3a. ed., Stuttgart/Berlin/Leipzig: Union Deutsche Verlagsgesellschaft 1915). Já conhecendo várias regiões do mundo com presença alemã, esse autor deixou um relato entusiástico de Petrópolis.


„Dificilmente haverá na terra uma outra cidade com as características dessa cidade de veraneio brasileira, e ela é também para o Brasil exótica, na sua disposição, nas suas ruas, na sua vida. Isso pode relacionar-se primeiramente no fato de Petrópolis ter sido nas suas primeiras décadas quase que exclusivamente habitada por alemães e apesar da imigração forte de elementos brasileiros ter mantido em grande parte o seu caráter alemão. Tanto mais se entra nas periferias, tanto mais se evidencia a alemanidade. Nos jardins de flores à frente de graciosas casas de campo brincam crianças de cabelos loiros, olhos azuis e saúdam o visitante com palavras alemãs, nas janelas, nas varandas vê-se figuras femininas que lembram a pátria alemã, sob as gigantescas árvores tropicais, que dão sombra a quase todas as ruas, vê-se muitos prédios similares àqueles da Turíngia e da Floresta Negra, como se tivessem sido levados por mão encantada com a sua mobília, os degraus de pedra à porta, o banco à frente da casa, as roseiras e as pequenas hortas por terra e mar a essas montanhas brasileiras. Ali há clubs alemães, casas de associações de atiradores, de canto e boliche, ali há escolas alemãs, igrejas alemãs e, sobre uma colina verde num dos fins da cidade irradia através das árvores um templo católico alemão com amplos edifícios conventuais no mesmo estilo como outro qualquer da Suábia. (...) (op.cit. 26)


(...) Continuando então dos vales com a magnífica vegetação tropical e claros e espumantes córregos para cima, então aos poucos clareia-se a vegetação exuberante, multicolor, que extravasa em forças, dando lugar a bananais, laranjais e jardins de árvores de frutas, faixas verdes que se estendem pelas escostas até os cimos rochosos de formas singulares e que atingem frequentemente 2000 ou mais metros, o que lembra os pré-alpes bávaros, casas camponesas alemãs encontram-se aqui e li, e nas ruas e caminhos vê-se figuras alemãs e escuta-se palavras alemãs. As terras elas próprias têm nomes alemães: Bingertal, Moseltal, Renania, Ingelheim, Pfalz.“ (loc.cit.)


Ernst von Hesse-Wartegg não se esquece de lembrar que essa cidade continuava indissoluvelmente ligada à personalidade de Pedro II, surgindo como deslocado o fato de ali ainda residirem diplomatas de várias nações.


„No meio desse pedaço da Alemanha nas montanhas brasileiras Dom Pedro II plantou de novo um pedaço do Brasil, à medida que êle, encantado com a indescritível graça da região, escolheu Petrópolis, denominado segundo o seu nome, a residência de verão. A êle a cidade deve o seu florescimento, a sua grandeza, a sua beleza (...)“. (op.cit., 27)


„São de lamentar  os diplomatas de algumas potências que têm a sua residência em Petrópolis nos meses sem variedade, chuvosos de Petrópolis. Toda a vida política, econômica e social encontra-se então no Rio, e em lugar de ali atuarem em interesse de seus países, como os diplomatas de outras potências, nomeadamente a América do Norte, são obrigados em levar em Petrópolis uma vida como guardiães de farol, longe das movimentações do grande mundo. O bom retiro nas montanhas como sede de diplomatas era compreensível enquanto a Corte imperial existia e no Rio de Janeiro a febre amarela e a malária exigiam sacrifícios. Hoje, porém, a capital do Brasil é mais saudável do que a maior parte das cidades com mais de milhão de habitantes da terra, e seria sob todos os aspectos desejável transferir as embaixadas finalmente ao local onde devem estar: à capital.“ (op. cit. 31)


É significativo notar que Ernst von Hesse-Wartegg mencione a igreja alemã de Petrópolis e os nomes de bairros segundo cidades e regiões da parte ocidental da Alemanha marcadas pelo Catolicismo, em particular do Reno, da esfera Mogúncia-Bingen e Palatinado. Se no sul do Brasil, por motivo da grande porcentagem de evangélicos entre os imigrantes os colonos italianos, católicos surgiram por vezes como intermediários no caminho dos missionários alemães à sociedade brasileira, em Petrópolis encontraram estes uma comunidade alemã de cultura católica já de décadas. A sua igreja do Coração de Jesus havia sido construída em 1874, tendo contado com o apoio de D. Pedro II e de antigas famílias brasileiras.


Não se deveria porém colocar aqui a continuidade no centro das atenções - embora ali já atuassem o espírito do Historismo e as determinações anti-modernistas do Concílio Vaticano I - mas sim a mudança, a nova fase de reforma restauradora implantada pelos Franciscanos. Essa comunidade católica alemã de Petrópolis passou ela mesmo por uma reforma na sua vida religiosa, atualizando-se segundo as tendências restaurativas da Alemanha. Essa fase não é sob essa perspectiva um prolongamento da vida religiosa da colonia da monarquia sob novos guias, mas uma nova, inserida no contexto republicano.


O papel de Mons. Giovanni Battista Guidi (1852-1902) e suas dimensões eclesiais


A igreja da colonia católica alemã de Petrópolis, construida em 1874 com o apoio de Pedro II° e de famílias da aristocracia brasileira, sentia à época da proclamação da República a falta de sacerdotes alemães que pudessem celebrar e pregar no idioma. Devido a essa falta, desempenhava esses ministérios o Mons. Giovanni Battista Guidi (1852-1902, auditor da Nunciatura Apostólica, que havia estudado em Innsbruck e sido consagrado sacerdote em Viena, conhecedor de vários idiomas e que desempenhou papel relevante na vinda de Franciscanos a Petrópolis.


Mons. Guidi surge como personalidade-chave sob muitos aspectos no processo de restauração católica do Brasil. Entre 1890 e 1892 foi agregado à Secretaria de Estado de Leão XIII, que muito o considerava, e enviado ao Brasil como auditor do Delegado Apostólico, Mons. Girolamo Maria Gotti (1834-1916); sendo este nomeado cardeal e retornado a Roma, o Mons. Guidi foi nomeado a Delegado Apostólico. Tornar-se-ia cardeal e arcebispo e, em 1902, nada menos do que prefeito da Congregação de Propaganda Fide. Esse prelado desempenharia importante papel na reforma restauradora da igreja nas Filipinas, um movimento que poderia ser comparado com aquele do Brasil sob alguns aspectos, pois também ali tratou-se de substituir uma igreja marcada pelo passado ibérico sob as novas condições de sua transição à esfera dos EUA.


Tomando conhecimento da chegada dos Franciscanos alemães no Rio de Janeiro, em passagem para o sul, em 1891, o Mons. Guidi passou a empenhar-se a que a Ordem assumisse igreja do Coração de Jesus de Petrópolis. Em 1895, recebeu a decisão positiva do comissario da Ordem, chegando os primeiros Franciscanos - Cyriacus Hielscher e Zeno Wallbröhl - no início de 1896.


Assim como nas fundações no sul - e correspondendo aos desenvolvimentos na Alemanha -, os Franciscanos, abrigados de inicio provisoriamente pelo Mons. Guidi em casa particular próxima à igreja, passaram logo a construir um edifício que permitisse vida conventual segundo os critérios da ordem. O empenho que deram a essa construção levou a que já no fim de 1896  uma das alas do futuro convento, com dois andares, pudesse ser completada, onde passaram a residir dois frades de curso da Bahia. No início de 1897, completou-se a ala paralela, consagrada na festa de Reis e, em 1899, a residência foi elevada a convento com a designação de Sagrado Coração de Jesus. Nessa época, já contava com 41 religiosos: 6 padres, 24 clérigos e 11 irmãos leigos. Esse convento tornou-se mais tarde por certo tempo sede do Provincial.


As atividades dos Franciscanos em Petrópolis desenvolveram-se com grande rapidez e intensidade, trazendo resultados que ultrapassavam todos aqueles de outras fundações franciscanas do sul. Criou-se uma escola livre para crianças pobres, uma Ordem Terceira, o Apostolado da Oração, uma Sociedade de Santo Antonio, a Irmandade de São Vincente, uma associação juvenil e um Centro Católico. As atividades, para além de auxílios a paróquias vizinhas, estendiam-se à assistência no Alto da Serra, no Meio da Serra, no Asilo de Nossa Senhora do Amparo, nos colégios de Sion e de Santa Catarina, assim como no Hospital de Santa Teresa.


Assim como em outras fundações novas do sul, também em Petrópolis os Franciscanos se distinguiram desde o início pelos esforços na construção de igrejas e outros edifícios. Edificaram logo a igreja de Santo Antonio no Alto da Serra, com uma casa para a escola, a igreja do bairro de Bingen, assim como várias capelas, assim como escolas e um prédio para a editora.




De cidade do modêlo de homem esclarecido a centro do ultramontanismo anti-modernista


Nessas atividades evidencia-se que o intento dos Franciscanos alemães não se resumia ao repovoamento dos antigos conventos - como provavelmente teria sido a principal intenção dos brasileiros que na Bahia solicitaram religiosos - mas sim à reforma da cultura católica no espírito da restauração, à propagação de idéias moralizadoras e de recuperação da religiosidade em sociedade que se encontrava em processo secularizador.


Compreende-se, assim, que os Franciscanos em Petrópolis passassem a emprestar particular atenção à imprensa, editando as Vozes de Petrópolis como periódico bi-semanal, com artigos religiosos e de erudição católica. Paralelamente, passaram a publicar o Echo Seraphico como órgão da Ordem Terceira.


Para uma difusão e uma ação em círculos mais amplos da população, dedicaram-se também ao fomento de uma literatura de contos e novelas de cunho moralizante, uma vez que viam a literatura nacional como inadequada para os seus intentos da reforma restaurativa do pensamento e de costumes segundo critérios do Catolicismo do século XIX na Alemanha. À propagação reformadora serviam também exercícios e conferências realizados pelos Franciscanos de Petrópolis no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.



Transformações da sociedade - a nova elite sob a República. Paradoxos da simplicidade


Também em Petrópolis, como na Alemanha e em fundações no sul do Brasil, a atenção dos Franciscanos foi dirigida à dignificação e à solenização do culto com formas de expressão marcadas por despojamento e pureza, à vida conventual marcada por simplicidade de vida e silêncio e à formação de novas gerações segundo um novo espírito.


A modéstia, a simplicidade e a discreção em modos de expressão tinham sido marcas de cultura e cultivo social à época de D. Pedro II, e esse ideal clássico de „simplicidade silenciosa e nobre grandeza“ parece explicar a extraordinária aceitação dos Franciscanos e da solenização do culto por parte de uma sociedade assim formada. Esta, porém, modificou-se com o banimento do seu maior exemplo, assumindo modos de vida e de expressão marcados pelo luxo, por novidades e pela moda de círculos sociais em ascensão sob o novo sistema e ávidos de nobilitação e dignificação.


O já mencionado Ernst von Hesse-Wartegg registra-se essas características que a sociedade de Petrópolis adquirira à época de sua visita, em 1903:


„Petrópolis permaneceu também sob a República o Versailles brasileiro, e algo do espírito nobre e da elegância da vida da Corte ainda hoje transpassa a magnífica fundação do inesquecível soberano. (...)

Tão elegante como a moldura exterior é também a vida que se desenrola nas ruas, especialmente às tardes. Em nenhum outro lugar manifesta-se com tanta evidência a beleza, graça e elegancia das mulheres e meninas brasileiras como aqui, onde possuem casas de veraneio familias da terra privilegiadas por sua origem e riqueza. Os homens, que em grande parte estão embaixo, na capital, retornam apenas ao cair do sol pela estrada de ferro. As mulheres se conhecem, se visitam mutuamente e realizam passeios juntos ou pic-nics. Ininterruptamente correm equipagem e carros pelas ruas ensombreadas, e como em vôo vislumbra-se os que neles se encontram, encantadores seres de olhos faiscantes em vestimentas leves e claras. Especialmente as moças jovens de idade entre 14 a 18 anos, desenvolvidas precocemente e emancipadas, são de grande graça. As borboletas da terra na sua extraordinária colorida magnificência parecem ter sido modêlos de seus vestidos. Modas de Paris na sua constante mudança são aqui introduzidas mais rapidamente do que na Europa; sem considerar preços compra-se o mais novo, nem sempre usado com gosto. As damas frequentemente aparecem já pela manhã com vestidos de tarde, após o almoço com trajes de noite e, à noite, mesmo se aparecerem á mesa nos relativamente pobres hotéis e pensões - (...) em roupas de baile. Usa-se do maior luxo nos calçados; já pela manhã pode-se ver nas ruas mocinhas com meias rendadas de seda e delicados sapatos de salto de couro de luvas branco. De linguas estrangeiras, cultiva-se preferencialmente o francês, e romances franceses têm grande saída.“ (op.cit. 29-30)


Paradoxos: simplicidade franciscana e o chic republicano - a „missa das onze“


Petrópolis tornou-se assim palco de uma singular dicotomia entre o ideal de nobilidade reconhecido pela alta sociedade no culto solene e severo na sua simplicidade dos Franciscanos e a própria vida social, marcada por desejos de auto-representação de classe social. Explicar-se-ia, assim, o fenômeno surpreendente que foi a transformação da missa das onze da igreja dos Franciscanos em evento social de círculos sociais mais privilegiados.


„O que traz muitos visitantes a Petrópolis aos domingos são as muitas escolas e pensionatos. Centenas de filhas das melhores famílias são ali educadas. No antigo palácio imperial encontra-se um estabelecimento de ensino de salesianos holandeses e belgas, irmãs alemãs possuem um excelente pensionato, e Franciscanos alemães mantém uma escola de meninos que é reconhecidamente a melhor.“ (op.cit. 30)


O mais significativo testemunho dessa situação paradoxal, que não poderia ser naturalmente bem vista pelos Franciscanos, embora ficassem satisfeitos com a sua rápida aceitação, oferece o Pe. Petrus Singzi O.F.M. em „Monge e Mundo“, nas suas recordações no Brasil. Alvo de particular ironia eram as damas cariocas, ávidas de nobilitação através de demonstrações de piedade, devoção e dignidade conservadora.


„A missa das onze horas...É chamada de missa da moda, e ela parece realmente o ser. Nós, homens da Ordem, não gostamos dela; preferimos todas as demais, e estas são muitas; pois nos domingos e feriados celebra-se na nossa igreja em Petrópolis uma missa de hora em hora, de manhã às 5 até às 11 horas. Todas sem exceção são bem frequentadas, e também é grande o número de comunhões, mas a missa das onze assumiu - contra a nossa vontade -uma nota mundana, pois é vista por muitos como ‚chic‘ vir assistí-la.


B.F., pseudônimo de uma espirituosa cronista do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, registrou uma vez de modo inimitável o que é essa missa: ‚Missa das 11 - a missa do grande ‚chic‘ - num domingo luminoso de Petrópolis. (...) Pelas grandes portas abertas da igreja entram a colorida multidão de fiéis para admirar-se na nave da igreja pintada de novo. Aqui, no interior, nada se percebe dos horríveis excessos de ornamentação piedosa e decoração ambiciosa que em geral tão frequentemente se encontram nas nossas casas de oração; por sorte nada desses abortos piedosos da arte: uma simplicidade verdadeiramente franciscana!


Luz e alegria têm entrada plena atraves das janelas abertas e expandem-se sob o teto abobado.

Tem-se a impressão de extrema limpesa; nessa brancura não há nem uma partícula de pó...Um odor de pureza, de casta espiritualidade, gostaria de dizer de uma branca compenetração toma conta de nossa alma profana... (...)


Na dureza das tábuas para ajoelhar dos bancos de madeira envernizada, a nossa elegância local dobra os seus joelhos, a ofuscante legião das encantadoras do Pall-Mall-Rio, as 300 Gedeons au grand complet... Cada elegante que se considere tem que dar o tributo de sua adoração a Deus justamente e apenas nessa Igreja do Coração de Jesus, e mais exatamente a essa hora confortável, que permite dar continuidade preguiçosa ao doce sono matinal sob as cobertas mornas e ao aperfeiçoamento cuidadoso da toilette de domingo - favorecida, como se vê, de forma puramente espiritual.


Ao longe, no altar, celebra um sacerdote loiro...Nas escadas do coro ou encostados nos batentes da igreja, o sexo forte conversa em tom de sussurro e acompanha com o sum-sum das vozes abafadas o latim baixo do coroinha.


Os homens na missa das onze horas são da maior gentileza católica; com um sorriso desprendido nos lábios e em puro espírito de sacrifício dão sem mais os melhores lugares às senhoras, ate mesmo a feias senhoras (e, acredite-se, há delas !...), que deles se aproximem acidentalmente. (...)


Apenas o olhar de Deus atravessa o misterio velado das intenções humanas. - O amplo espaço é atravessado pela irradiação de cores fortes e jóias preciosas. A pérola domina; em cada canto esbanjam-se colares de pérolas... São realmente todas orientais aquelas que enfeitam de forma tão oriental os pescoços brancos ou morenos de nossas super-elegantes irmãs em Cristo? Elas devem estar ali, não poderia ser o contrário...Nós não queremos esquecer que nos encontramos no quartel do grande „Chic“. Tudo o que aqui se apresenta aos olhos curiosos é distinto, de luxo, caríssimo. A camponesa não tem vez, a não ser nos gestos feitos, na pose estudada, na artificialidade da expressão... O sol, esse artista incomparável, rega com lágrimas prateadas a face pálida da Mater Dolorosa num altar lateral; êle acente faíscas de chamas dos diamantes de uma orelhinha rosada sob o véu das Charlotte côr de pêssego; ela ilumina com brilho de sonho os olhos banais de um jovem em flagrante delito de dispersão de pensamentos (...)

As folhas dos pequenos missais são viradas rapidamente com dedos em luvas; ondas de perfume de Coty misturam-se com o odor do incenso que se derrama; P. Leovigildo entra em atitude contrita, com olhos baixos, o púlpito...Todos aqueles que foram favorecidos pela sorte de ter um lugar, respiram aliviados e sentam-se. Os leques começam a sua obra com as suas asas que refrigeram; (...) P. Leovigildo continua intrepidamente; nem a sombra de uma suspeita nele sobe de que está talvez aborrecendo o seu público; na simplicidade de sua alma de sacerdote, obedece sem refletir a regra da Igreja, que obriga o sacerdote o dever dominical de pregar a suas ovelhas a palavra de Deus... P. Leoogildo cumpre conscienciosamente o seu dever...

Os ouvintes escutam porém com meio ouvido; a atenção divide-se e voa na sua dispersão continuamente pelo círculos das toilettes, criticando aqui, ali admirando. (...)

(Mönch und Welt: Erinnerungen eines rheinischen Franziskaners in Brasilien, Freiburg i. Breisgau: Herder, 1925,195-199).


Petrópolis salientou-se sobretudo no campo da música sacra. A atenção dos Franciscanos pela música já marcava a atividade dos Franciscanos em colégios do sul. (Veja) Próximo à capital, Petrópolis antecedeu e sobrepujou nesse sentido o significado musical do monumental Colégio do Rio Negro (Veja).  Na cidade serrana do Rio, vários religiosos dedicaram-se não apenas ao cultivo de obras do Cecilianismo europeu, mas também à atividade criadora, destacando-se como compositores.


A música sacra de Beneditinos e Franciscanos alemães no Brasil e a pesquisa


A contribuição alemã à revitalização da vida conventual no Brasil foi particularmente significativa, uma vez que foram religiosos alemães que repovoaram mosteiros e conventos de duas ordens de grande passado e que, apesar de suas diferenças, desempenharam através dos séculos fundamental papel na história cultural do Ocidente: a dos Beneditinos e a dos Franciscanos.


Os monges beneditinos e os religiosos Franciscanos que vieram para o Brasil pertenceram a uma época na qual as duas ordens se destacavam no movimento restaurador litúrgico-musical em duas esferas, a do Gregoriano e da sua pesquisa paleográfica, teológica e estético-musical dos Beneditinos, e a da polifonia vocal no espírito do Cecilianismo alemão dos Franciscanos. Este último era sobretudo centralizado na cidade de Ratisbona (Regensburg), centro de onde desenvolveu-se uma propaganda reformadora-restauradora de extrema impetuosidade nas suas críticas, empenhos e atividades.


Em época da „luta cultural“ (Kultukampf) que marcou a história do Império alemão nas últimas décadas do século XIX, esse movimento litúrgico-musical restaurador possuiu relevantes dimensões político-culturais, relacionando-se com uma extraordinária atividade construtiva de igrejas e conventos, da qual são testemunhos as numerosas igrejas neo-góticas em regiões católicas da Alemanha.


Sob o pano de fundo dessa situação alemã, na qual questões litúrgico-musicais desempenharam papel fundamental, compreende-se a importância da música sacra, em particular da polifonia na atuação dos Franciscanos alemães no Brasil. A necessidade de repertório que substituisse aquele da prática anterior nas igrejas brasileiras, vista como decadente e profana, levou ao emprêgo ou à adaptação de obras do passado polifônico praticado na Alemanha ou as mais recentes originadas segundo o espírito ceciliano.


A falta de repertório levou também a que muitos religiosos se dedicassem à composição. Nem sempre contando com formação musical mais avançada e inspirando-se em modêlos cecilianos, muito da produção para uso de religiosos compositores atuando no Brasil aproximam-se ao nível de trabalhos escolares de harmonia e contraponto.


Assim como na Alemanha, a renovação da vida religiosa e do culto segundo critérios de sacralidade da música e santificação dos fiéis foi acompanhada pela propagação dos ideais litúrgico-musicais através do ensino e de publicações, das quais a mais importante foi Música Sacra de Petrópolis, órgão significativamente de mesmo título da principal voz do Cecilianismo alemão.


Problemática da música sacra franciscana a partir do Concílio Vaticano II


Esse extraordinário empenho dos Franciscanos no Brasil pela música sacra segundo critérios reformadores/restaurativos do movimento ceciliano alemão, corroborado definitivamente com o Motu Proprio de Pio X de 1903 e a legislação que o seguiu,  torna compreensível a difícil situação criada com os desenvolvimentos desencadeados pelo Concílio Vaticano II a partir de meados da década de sessenta do século XX.


O emprêgo do vernáculo e o fomento do canto comunitário levaram de forma ainda mais acentuada do que na Europa à marginalização do repertório coral latino até então cultivado, tornando obsoleta a grande produção sacro-musical de religiosos Franciscanos das décadas anteriores ao Concílio assim como o seu trabalho de propagação de conceitos e ideais. Assim como as suas elaborações sacro-musicais, também os nomes de compositores Franciscanos cairam em esquecimento.


Essa situação foi percebida com o aguçamento da percepção de processos culturais no âmbito do movimento que procurava a renovação de perspectivas nas disciplinas culturais e a ação refletida na prática da difusão cultural (Nova Difusão).


O Centro de Pesquisas em Musicologia dessa sociedade, fundado em 1968, deu início não apenas à leitura de publicações dos Franciscanos sob os novos enfoques como também ao levantamento de obras por êles compostas ou divulgadas.


Estudos relacionados com os Franciscanos alemães no Brasil na Alemanha


Esses trabalhos possibilitaram a consideração dessa produção sacro-musical no âmbito do programa de interações internacionais desenvolvido a partir de 1974 na Europa. Ali constatou-se que esse repertório - assim como o correspondente alemão - era desconsiderado mesmo em círculos mais conservadores, preocupados com o patrimônio musical visto em risco, formados segundo os critérios formulados pelo Motu Proprio de 1903, da legislação sacro-musical posterior e defendidos em congressos internacionais.


Compositores, músicos de igreja e teólogos inseriam-se antes em correntes de renovação do Cecilianismo que já há décadas procuravam elevar o nível técnico-estético da música sacra criada nessa tradição de renovação/restauração litúrgico-musical. Essa produção brasileira - e a correspondente européia - surgia como rudimentar, banal e sem originalidade, até mesmo como exemplo de um tipo de ação de transplante cultural europeu que não deveria ser feita pelos missionários, procurando-se distinguir entre Evangelização e Europeização.


Esse posicionamento  torna-se compreensível pelo fato de que aqueles preocupados com a perda do patrimônio sacro-musical latino da Europa terem dirigido a atenção renovadora em atenção aos caminhos apontados pelo Concílio aos valores culturais próprios das regiões de missão extra-européias.


A Etnomusicologia devia aqui fornecer os fundamentos para o desenvolvimento culturalmente adequado de uma música sacra de cada região da terra, o que correspondia, também, a intuitos de religiosos, pesquisadores e compositores brasileiros que procuravam no Folclore elementos para a composição sacro-musical. Uma produção musical tão evidentemente importada da Europa e criada por missionários europeus surgia como oposta a essa compreensão e a esses intuitos. Criou-se, assim, a situação paradoxal que esse repertório anterior ao Concílio se tornasse obsoleto, desprezado e silenciado também em círculos mais conservadores preocupados com a perda do patrimônio musical europeu.(Veja)


Sob a perspectiva do programa desenvolvido no Brasil, deparava-se com uma situação ambivalente. A tomada de consciência dos aspectos negativos do movimento litúrgico-musical renovador/restaurador no Brasil do século XIX e XX como motor da extinção da prática coro-orquestral tradicional, conduzida que fora por mestres e compositores do país, inscritos em contextos regionais, de graves consequências para a conservação do patrimônio e a visão histórica, favorecia posicionamentos negativos perante esse repertório. Por outro lado, justamente a visão dirigida a processos exigia que essa produção sacro-musical também fosse considerada como parte de um patrimônio cultural a ser estudado e conservado. Silenciá-lo seria cair no mesmo êrro do passado relativamente à música com acompanhamento orquestral. (Veja)


Nesse contexto, decidiu-se considerá-lo de forma especial por ocasião do Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“ realizado em São Paulo em 1981.


Como a falta de distância temporal e o entusiasmo renovador desencadeado pelo Concílio impedia apreciações objetivas dessa produção, e considerando a atitude negativa de religiosos e pesquisadores perante essas obras, pareceu inoportuno e ineficaz considerar obras desse vasto repertório na programação do evento. O tratamento da complexa situação que se colocava ao ministério sacro-musical dos Franciscanos perante as mudanças dos anos pós-conciliares foi deixada para sessões especiais a serem realizadas após o evento em Petrópolis, o principal centro da ação musical franciscana.


Essas sessões foram preparadas através do concerto dedicado à meditação sobre o passado sacro-musical brasileiro levado a efeito na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em São Paulo, e que constou de obras polifônicas vocais a cappella da tradição brasileira. (Veja)


Preparatórias do encontro internacional em Petrópolis - Frei Leto Bienas OFM


Frei Leto Bienas OFM, em viagem precedente à Alemanha, preparou, juntamente com o editor, a consideração de questões relacionadas com o Franciscanismo e a participação dos Franciscanos no Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“ de 1981.


Os elos do Instituto de Meninos Cantores de Petrópolis (Canarinhos) com a Alemanha, em particular com a Arquidiocese de Colonia eram estreitos, tendo esta auxiliado a construção do edifício da escola, tornando-a instituição modelar sob muitos aspectos.


A visita a essas instalações e a troca de idéias relativas a seu vir-a-ser e funcionamento sob as novas condições assim como às relações entre o Brasil e a Alemanha, em particular com a Arquidiocese de Colonia constituiram ponto de partida para as reflexões quanto ao futuro da instituição e a sua orientação em época marcada pelas reformas desencadeadas pelo Concílio.


No dia 2 de abril de 1981, Frei Leto Bienas OFM comunicava ao editor ter entregue o projeto do Simpósio e sua programação ao Pe. Frei José Luiz
Prim, diretor do Instituto dos Meninos Cantores de Petrópolis. Este mostrou-se muito interessado em participar do simpósio.


Entretanto, o plano inicial de ida do coro de Petrópolis a São Paulo parecia difícil de ser realizado por várias razões, financeiras pelos custos da viagen e para a vida interna do Instituto. A viagem levaria a uma interrupção de todas as atividades do Instituto. Mais viável seria a outra proposta aventada pelo editor, a de que cantassem uma missa solene na catedral de Petrópolis, no dia 5 de outubro. A celebração da missa seria presidida pelo bispo de Petrópolis D. Manoel Pedro da Cunha Cintra. Nesta missa poderiam cantar obras de mestres da polifonia clássica ou de autores brasileiros.




Como preparação para os debates em Petrópolis publicara-se estudo que considerou a documentação referente à prática sacro-musical dos Franciscanos levantada no âmbito do Centro de Pesquisas em Musicologia e que inscrevia esse repertório no rol das atenções voltadas a processos de recepção musical.


Um dos pontos principais dos trabalhos dizia respeito consequentemente aos critérios de apreciação adequada dessa produção sacro-musical que tornara-se obsoleta pelo desenrolar dos acontecimentos e que era desqualificada sob diferentes pontos de vista.


Em primeiro lugar, procurou-se trazer à consciência a necessidade de uma análise diferenciada dessa produção nos seus elos com desenvolvimentos da criação musical de compositores brasileiros do século XX e suas interações com tendências internacionais. Esse repertório surgia assim não mais como indicativo de esfera sem maior relevância e mesmo espúria no panorama histórico-musical do século XX, mas sim como nele integrante e como outro lado da mesma moeda de desenvolvimentos que aparentemente dele contrastavam. Isso dizia respeito sobretudo a obras de compositores de orientações nacionais e nacionalistas na sua linguagem musical.


Significativamente, devia-se considerar não só o fato de que compositores representativos do nacionalismo musical tenham deixado obras sacro-musicais criadas segundo as prescrições eclesiais, mas também que religiosos músicos tenham atuado e defendido posições estético-nacionais. Nesse contexto devia-se considerar assunto já levantado durante o simpósio em São Paulo, ou seja, o das interações entre o fomento da polifonia vocal segundo o movimento restaurador, o Motu Proprio de 1903 e a legislação posterior e aquele do Canto Orfeônico. (Veja)


A consideração dessa outra face de um mesmo processo histórico-cultural explicaria também que músicos Franciscanos não apenas „copiaram“ sem maior originalidade peças européias, mas sim também dedicaram-se a estudos do Folclore e da Etnologia indígena, considerando os resultados de suas pesquisas em composições.


Já muito antes do Concílio publicaram-se composições com texto em português e com elaborações de elementos analisados de cantos tradicionais e indígenas. Nesse sentido, não parecia haver diferença fundamental entre os intuitos de teólogos e musicólogos estrangeiros e brasileiros que preconizavam o desenvolvimento de uma música sacra adequada culturalmente e intentos já documentados em obras de Franciscanos.


Se por um lado essa constatação demonstrava a singular precedência e mesmo „modernidade“ dos Franciscanos, por outro indicava como os especialistas europeus ainda continuavam presos a concepções estético-culturais do passado, desejando uma linguagem de conotações nacionais para outros, não para si próprios.



Petrus Sinzig OFM (1876-1952) e elos com a Renânia - Peter Piel (1835-1904)


No encontro de Petrópolis, que contou com a presença de destacados representantes e conhecedores do desenvolvimento sacro-musical da Renânia, procurou-se considerar mais diferenciamente as relações entre Franciscanos no Brasil, em particular Frei Pedro Sinzig, e personalidades da música sacra da Renânia, detectando-se correntes de influência, desenvolvimentos comuns e novos caminhos trilhados no Brasil.(Veja)


Retornando da Bahia em junho de 1896, ano em que faria em novembro os seus votos, o muito jovem Pedro Sinzig deu continuidade a seus estudos de teoria e harmônio, além de continuar a exercitar violino e flauta. Não tendo professor, tinha dificuldade em dar continuidade a seus ensaios de composição. Assim, tomou a decisão de dirigir-se ao então renomado compositor Peter Piel (1835-1904) em Boppard. Este passou a auxiliá-lo, corrigindo por correspondência as harmonizações de textos religiosos de P. Sinzig.


Peter Piel, nascido em Kessenich próximo a Bonn e falecido em Boppard, era músico sacro profundamente vinculado à tradição ceciliana como membro da Associação de Santa Cecília. Pertencia a um grupo daqueles que procuravam reformar a música sacra na Renânia, sendo destacado pedagogo, professor e diretor no seminário de formação de professores em Boppard, cidade que tornou-se renomada pela sua excelência de sua música sacra. Dedicou-se sobretudo à formação técnica de músicos e compositores de igreja, escrevendo um compêndio de Harmonia publicado em 1889 e que, bastante difundido, marcou a formação de numerosos músicos e religiosos.


Relações de Petrus Sinzig OFM com o Pe. Michaele Horn OSB (1859-1936)


Como considerado no encontro pela Ir. Eleonor Dewey (Veja), para não sobrecarregar o compositor renano, Petrus Sinzig enviou vários de seus ensaios ao benedino Michale Horn, então renomado erudito, sobretudo na área do Canto Gregoriano. Horn, nascido em Oberschmeien, próximo de Sigmaringen, tivera formação beneditina em Beuron. Após ter sido organista e regente de Schola de meninos em Maredsou, Bélgica, entusiasmou-se pelo movimento coral de Solesmes.


Em 18 de janeiro de 1897, Petrus Sinzig recebeu no Rio de Janeiro a visita desse Beneditino que, vindo da Europa, quis conhecê-lo pessoalmente. Foi êle que revelou a P. Sinzig a riqueza do Gradual de Solesmes. Estes eram entoados por dois Beneditinos, enquanto P. Michaele Horn os acompanhava ao harmônio. Para Sinzig, a descoberta do Gregoriano foi uma revelação, sempre acentuando não ter nunca mais ouvido uma execução do Gregoriano à altura daquela vivenciada no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, ainda que, posteriormente, o coro de meninas do Pensionato Sião de Petrópolis tenha alcançado um alto nível de execução.


Após ter estado no Brasil, Horn passou a publicar, em 1902, o periódico bimensal Gregorianische Rundschau e Musica Sacra em Graz, publicação que foi denominada de Musica divina a partir de 1913, quando passou a ser impressa em Viena. Nos anos vinte e trinta, atuou como regente coral no convento beneditino do Steiermark.


Atividades musicais de Petrus Sinzig em Petrópolis - Oratório Maria Santíssima


Peter Sinzig deu continuidade à obra sacro-musical iniciada pelo P. Basilius Röwer (Veja) em Petrópolis, quando este foi transferido para Curitiba. Com a ajuda de um coro feminino, Petrus Sinzig passou a empenhar-se em tornar o culto mais solene. Aos poucos, o coro passou a estar em condições de executar composições que surgiam como exemplares, entre elas algumas do então admirado compositor Peter Griesbacher (1864-1933). (Mönch und Welt, op.cit. 199)


O coro passou a ter oportunidade de executar outras obras após a fundação do Centro Católico pelo Pe. Aloysius Reinke. Quando o Papa Pio X completou o jubileu de prata de sacerdócio, publicou-se uma edição especial das Vozes de Petrópolis, reunindo a solenidade para o seu lançamento um grande número de representantes da sociedade de Petrópolis, estreando-se o seu Oratório Maria Santissima.


Essa obra, tinha sido composta anteriormente para o jubileu da Imaculada Conceição no Colégio São José, em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. Também foi apresentado em Lages. Para a execução em Petropolis em 24 de março de 1908, formou-se um coro de filhas de famílias de Petrópolis e do Rio.


O papel do Rio na restauração musical - centenário da Abertura dos Portos (1908)


Seguindo-se ao primeiro Dia dos Católicos do Brasil, realizado em Salvador segundo o modêlo alemão dos Katholiken Tagen, uma segunda edição desse evento foi programada para o Rio de Janeiro, sendo que nele a música sacra devia ser tratada por Petrus Sinzig.


Como o próprio Petrus Sinzig salienta nas suas recordações, a missa solene inaugural destacou-se pela excelência de sua música sacra. O autor franciscano lembra que a música nas igrejas já havia sido objeto de determinações de bispos e de crítica e escândalo de estrangeiros, e que ainda na época não haviam desaparecido os longos Glorias, com muitas repetições, os solos teatrais e mesmo aberturas de óperas, marchas e peças de concerto nas igrejas.


Decisivo para a concretização dos ideais cecilianos de Petrus Sinzig foi o interesse demonstrado pelo Cardeal Arcoverde (1850-1930) que, seguindo o Motu Proprio de Pio X, enviou um de seus sacerdotes a Roma, dando também apoio a uma Schola Cantorum formada por meninos e homens pelo Cônego Alpheu. Foi esse coro que tomou a si a configuração musical da abertura do Dia dos Católicos, executando a Missa Eucaristica de Lorenzo Perosi (1872-1956), acompanhada por uma pequena orquestra. A Schola Cantorum serviu de exemplo a novas fundações, aumentando o número de igrejas e capelas que passaram a empenhar-se pela música segundo as diretrizes eclesiásticas.


„Na missa pontifical que abriu o segundo congresso católico, houve além da dignidade das cerimônias e da excelência da pregação ainda algo especial e digno de louvor: a parte musical. // A música nas igrejas brasileiras já é há muito alvo de disposições episcopais e do rir e escândalo de estrangeiros e não-católicos (...). Apesar disso, até hoje não desapareceram os Glorias totalmente, que com as suas árias e excessivas repetições tomam uma meia hora para si; os solos teatrais, as aberturas de óperas (!) as marchas e as peças de concerto. (...) A S.E. Cardeal Arcoverde mostrou tanto interesse pela verdadeira música litúrgica que enviou um sacerdote a Roma e apoiou a Schola Cantorum que foi formada com vozes de meninos e homens pelo Cônego Alpheu. // Esse coro foi que, sob a regência do seu fundador, e acompanhado por uma pequena orquestra, executou a Missa Eucarística do compositor Lorenço Perosi (1872-1956), tão famoso pelos seus oratórios. // Esse exemplo e os esforços do Cônego Alpheu não ficaram sem sucesso.“ (op.cit. 202)


O sucesso do Oratorio Maria Santissima levou a que váríos amigos se empenhassem para que Petrus Sinzig compusse uma obra de ainda maiores dimensões. O poeta Franz Dahlmann da Companhia de Jesus, havia composto a pedido de Peter Piel o texto de uma cantata sobre a vida e a morte de Sta Cecilia, Padroeira da Música. Antes porém de poder enviar o texto a Piel, este faleceu. Entregou-o então a Sinzig, com o pedido de musicá-lo.


Para poder realizar essa tarefa à altura, Petrus Sinzig dedicou-se ao estudo de algumas novas composições de Griesbach. Ao ser publicada, a Cantata Santa Cecilia, para dois coros, um mixto e um masculino a quatro vozes, assim como um coro de meninos, recebeu críticas muito positivas da Alemanha, o que motivou ao compositor traduzir o texto para o português e divulgar a obra no Brasil. Essa divulgação coube sobretudo ao presidente do Centro Católico de Petrópolis, o deputado Hosannah de Oliveira.


A preparação da obra em Petrópolis ficou a cargo do coral da Igreja do Coração de Jesus, de alemães. Como Petrus Sinzig lembra, esses cantores eram em geral trabalhadores sem conhecimentos musicais, sendo assim obrigados a aprender a música de ouvido, o que exigiu muito tempo. A orquestração foi feita por B. Vianna, como pagamento pelas lições de harmônio que obtivera de Petrus Sinzig. 


A cantata era uma espécie de ópera, não tendo textos falados, apenas cantados. Como Petrus Sinzig nunca tinha assistido uma ópera, nem mesmo a uma opereta, tinha receios de apresentar a sua obra no Rio de Janeiro. Encomendou da Europa obras sobre a Santa Cecilia e, com bases nesses dados e em ilustrações, criou o cenário e as vestimentas.


De ciclos de estudos da A.B.E. sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo






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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.). „Petrópolis (RJ). Franciscanos alemães na cidade de Pedro II sob a República.
O chic da missa das onze. Mons. Giovanni Battista Guidi (1852-1902) e Pe. Michaele Horn OSB (1859-1936)“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 151/ (2014:5). http://revista.brasil-europa.eu/151/Franciscanos-em-Petropolis.html