Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Leichlingen.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..

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Fotos A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 152/10 (2014:6)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Doc. N°3148





O que é Cultura?
Direitos Humanos realizados e Deveres do Homem cumpridos
Cultura como postulado ético do indivíduo e do Estado
Recordando idéias condutoras do Dr.Thomas Freund para o Leichlinger Musikforum Alemanha/Brasil


 
Leichlingen.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..

Leichlingen.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..
Há motivos condutores do pensamento que vêm determinando os estudos culturais relacionados com o Brasil nas últimas décadas e que merecem ser recapitulados e continuamente examinados e discutidos.


A mais fundamental para a própria definição da área de estudos, de disciplinas culturais na sua diversidade e para o desenvolvimento de uma propugnada Ciência da Cultura no singular, diz respeito à própria compreensão do conceito de cultura.


A preocupação pela definição desse conceito marcou assim desde o início das reflexões na década de sessenta do século XX que desencadearam desenvolvimentos que se prolongam até o presente.


Essa preocupação pelo conceito não era absolutamente nova, tendo-se consciência das transformações por que o termo passara e passava no seu emprêgo e acepção. Conhecia-se o problema do uso indiferenciado ou pouco refletido dos termos cultura e civilização, do seu emprêgo diversificado e contrastante nos diferentes idiomas, países ou áreas de estudos, e do emprêgo do termo em linguagem coloquial, onde se fala de pessoa com ou sem cultura.


Esse uso do termo, que o aproximava da idéia de cultivo, remetia às suas origens etimológicas, associadas ao preparo e trato da terra, ao plantio e aos cuidados pelo plantado e que continuavam assim a vigorar de forma em geral inconsciente.


Esse uso do termo não se limitava somente à linguagem não refletida do quotidiano, mas fundamentava - de forma também pouco refletida - concepções relativas ao ensino e à educação em geral, manifestando-se também em intentos político-culturais de difusão cultural, de „levar a cultura ao povo“ ou de contribuir ao desenvolvimento cultural da sociedade. Há muito, porém, propugnava-se uma outra concepção do termo, marcada pelo seu uso na Antropologia Cultural e que implica numa ampliação de seus sentidos e em aproximações não-valorativas.


Essa acepção ampla, se possibilitava a consideração adequada de modos de ser, de agir e expressar-se, de vida, de trabalho e de produções desqualificadas sob a concepção tradicional do termo, levantava questões, pois sendo tudo nele subsumido, não apenas colocava obras máximas da criação artística e da produção intelectual e científica ao lado de pizza e pastéis, como também poderiam ser considerados como parte da cultura atrocidades, desumanidades e mesmo crimes perante homens e criaturas, o que levava - e leva - o uso do termo cultura ao absurdo.


Brutalidades e crimes - podendo-se lembrar aqui assassínios de indígenas, desumanidades da escravidão, campos de concentração no passado alemão, atos de violência contra mulheres e minorias - podiam e deviam ser considerados devidamente em Estudos Culturais, isso não significa que sejam manifestações de cultura. O mesmo vale para mortes em arenas, de homens e animais na Antiguidade, e assim também para touradas e outros atos de torturas de criaturas indefesas, por mais tradicionais que sejam e por mais que tenham marcado a imagem de regiões, povos e nações. Elas envergonham o Humano.


Essa constatação, ainda hoje válida, trazia já na época à consciência que critérios da antiga concepção de cultura necessariamente deviam continuar a vigorar mesmo sob uma compreensão ampla do termo segundo o seu emprêgo na Antropologia ou Etnologia, a questão que se colocava era porém a de suas relações e dos respectivos critérios que as possibilitariam.


A situação que se apresentava àquele que refletia sobre o termo e o seu uso era de incoerência. Mesmo aqueles que defendiam a compreensão do termo segundo a Antropologia Cultural ou Etnologia manifestavam também a vigência de sua antiga e convencional acepção em outras áreas e contextos, por exemplo na área da Educação e da Difusão Cultural.


As inconsequências levavam até mesmo a desenvolvimentos complexos e paradoxais, como aquele de ensinar e difundir, no sentido de cultivo, modos de pensar, agir, sentir e criar valorizados a partir de uma acepção abrangente de cultura.


Leichlingen.Foto A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E..

Conceituação de cultura em áreas disciplinares voltadas à música


A problemática dessa situação foi sentida em especial no próprio ensino de matérias de natureza cultural em escolas de música, em particular o da História da Música e do Folclore. Apesar da abrangência da problemática, o pensamento foi desenvolvimento sobretudo em meio relacionado com o ensino musical, tanto em conservatórios como em escolas superiores de música, aqui em particular na formação de professores.


As incoerências registradas nessas áreas relacionavam-se com os problemas de concepções de cultura sob diversos aspectos. Como uma das principais razões das dificuldades que surgiam surgia a da definição de disciplinas segundo categorizações de esferas culturais como objeto de seus estudos. Assim, o Folclore - apesar de uma orientação marcada pela compreensão ampla de cultura - procurava definir-se através de determinações de características do „fato folclórico“, o que se refletia em sempre renovadas tentativas de definição em congressos e publicações, e que procuravam adquirir função normativa. Mesmo acentuando-se a natureza dinâmica do Folclore, mantinha-se o conceito de uma esfera folclórica ou „folk“ na cultura.


A problemática de áreas disciplinares definidas através de categorizações do objeto de estudos manifestava-se sobretudo no fato de que fenômenos, expressões e desenvolvimentos „entre as esferas“ ou que transpassavam delimitações permaneciam sem consideração adequada, o que valia não apenas para o passado como também e sobretudo para o presente com o crescente significado dos meios de comunicação.


A proposta então colocada foi a de uma transformação gradual da renovação de perspectivas, concepções e procedimentos, na pesquisa, no ensino e na prática através de um direcionamento da atenção primordialmente a processos. Partindo de analogias com a osmose das Ciências Naturais, passou-se a preconizar um outro tipo de difusão. Não mais a difusão cultural no sentido de „levar cultura ao povo“, mas sim uma nova difusão no sentido de difundir um novo tipo de pensar, pesquisar e agir dirigido à processualidades, a mudanças e a transformações, a transpasses e interações. Essa seria a „nova difusão“, ou seja, a difusão de uma nova maneira de pensar e proceder.


Prosseguimento das reflexões em interações internacionais


As reflexões e as discussões relativamente ao conceito de Cultura iniciadas no Brasil tiveram a sua continuidade na Europa a partir de 1974.


Esse debate decorreu não apenas no contexto universitário, como também - como no Brasil - em escolas de música. As reflexões foram conduzidas em estreita comunicação com pesquisadores do Brasil, salientando-se aqui Rossini Tavares de Lima, presidente da Associação Brasileira de Folclore. (Veja)


Então empenhado - como outros folcloristas - em atualizar perspectivas da área através de uma redefinição do „fato folclórico“ como „cultura espontânea“, essa proposição levava a consideráveis problemas, sendo discutida tanto em meios de pesquisa universitária como educativos. Pelo fato de compreender o termo sobretudo no sentido de uma cultura não dirigida, distinguindo-a daquela dirigida, transmitida formalmente ou ensinada na escola ou por outros meios, a proposição dizia respeito de forma muito próxima ao debate na área da Educação.


„Cultura Musical“ no foco das atenções do debate educativo na Alemanha


O tema da 14. Bundesschulmusikwoche em Berlim - Educação e Cultura Musical - acentuou, em 1982, o debate sobre o conceito de cultura no ensino da música na Alemanha. (Veja)


Como esse ensino devia ser orientado cientificamente - diretriz vigente desde 1970 -, o tema de 1982 implicava na compreensão da ciência condutora não como ciência da música, mas da cultura musical, o que mais uma vez exigia reflexões sobre a compreensão do conceito de cultura.


Devido a essa atualidade das preocupações e reflexões na Alemanha, pareceu ser oportuno, necessário e produtivo nela interagir a partir do desenvolvimento do pensamento e das iniciativas que tiveram origem no Brasil e que já levara a diálogos e cooperações.


Decidiu-se, assim, que a primeira Deutsch-Brasilianische Musikschulwoche, que se considerava ao mesmo tempo como um forum para o estudo de pedagogia comparada e de relações entre Educação, Ciência e Estudos Culturais relacionados com a música em contextos internacionais, fosse aberto por um texto que, sumarizando reflexões, apresentasse idéias condutoras para os trabalhos.



Considerações sobre conceitos de Cultura e Arte em diálogos interdisciplinares


Após intensas trocas-de-idéias e de opiniões, esse texto foi preparado pelo Dr. Thomas Freund (Essen), romanista e germanista, e publicado em parte na abertura do primeiro caderno do Leichlinger Musikforum, servindo assim às discussões preparatórias de docentes e alunos, assim como àquelas ocorridas durante o evento. A segunda parte do texto foi publicada anos depois, quando da última edição da Semana e do respectivo Forum, encerrando assim todo um ciclo.


Os diálogos que precederam a preparação do texto foram marcados pela atmosfera que então reinava em círculos musicológicos e teológicos de preocupações pelo patrimônio da música ocidental que, em grande parte constituido por música sacra, corria o risco de perder-se na sua função mais própria com as reformas conciliares, particularmente em países como o Brasil.


Essas preocupações, que marcavam com pessimismo, crítica de desenvolvimentos e intentos retroativos em meios acadêmicos e artísticos, tinham já levado à realização do Primeiro Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“, em 1981, quando a problemática foi discutida sobretudo sob o aspecto da política musical. (Veja)


O autor do texto realizara o seu doutoramento em Colonia sobre o Iluminismo em Portugal, inserindo-se em outros contextos disciplinares e mesmo de perspectivas políticas relativamente àqueles mais conservadores da musicologia. A sua experiência em Portugal, onde estudara em Lisboa com o apoio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), era ainda marcada pelo espírito de entusiasmo renovador despertado pela Revolução dos Cravos.


Explica-se, assim o fato de ter considerado o conceito de cultura sob um enfoque que se diferenciava fundamentalmente daqueles que viam nos meios mais conservadores da musicologia e no qual os desenvolvimentos da época eram vistos como sintomas de decadência ou mesmo ruína, exigindo reações e atitudes reativas por parte de educadores e de formadores, como tematizado em algumas sessões no simpósio internacional de São Paulo.


Foi sobre a impressão desses debates e do pronunciamentos de representantes do conservadorismo eclesiástico da Alemanha no simpósio no Brasil que, comentados e discutidos em encontros, que surgiu o texto que deveria ser condutor dos trabalhos da Semana e do Forum.




„Sôbre cultura e arte“ de Thomas Freund


„Tanto mais se lamenta a decadência da cultura e da arte ou se exige a sua promoção, tanto mais há o consenso do que se deve entender de fato sob esses conceitos. Reflexões, assim, tornam-se necessárias.


O que é Cultura?


Cultura, parece-me, deveria ser definida como uma síntese de Direito Humano concretizado e Dever Humano cumprido.

Grandes palavras!


Mas eu quero logo explicar-me.


Há, creio, apenas um Direito Humano, ou seja, o de desenvolvimento livre de potências e possibilidades próprias do indivíduo.


Essa definição é de fato bastante genérica e assim um tanto abrangente, mas apesar disso ainda suficientemente precisa. Ela inclui o direito de vida tanto como o direito de trabalho, o direito de alimentação e moradia como o direito de formação.


Na outra face do Direito do Homem situa-se o conceito do Dever do Homem. Sob Dever do Homem entendo o cumprimento da tarefa de exercer o desenvolvimento da personalidade individual junto e em cooperação com outros. O Direito do Homem é assim um direito individual, o Dever Humano uma tarefa social.


Nós podemos nos considerar felizes que esses dois conceitos, aqui por mim expostos como contraposições para diferençá-los, de fato de forma alguma se encontram em oposição, mas sim, como gostaria quase que dizer, constituem uma natural síntese. Qualquer pessoa sabe, por exemplo, que uma criança apenas pode-se desenvolver se êle com ela se ocupar, se, portanto, for inserida numa comunidade, podendo assim interagir com ela e nela com o seu meio ambiente. Cultura é, portanto, poder-se-ia dizer, no fundo algo natural, algo que é próprioao homem no seu ser, não estando assim de princípio em oposição à natureza. Apenas no caso em que a natureza humana começa a agir contra ela própria, a cultura se opõe à natureza, pois ela parte da idéia, de que toda a vida individual representa um valor absoluto em si.


Cultura, compreendida como síntese de direito humano concretizado e dever do homem cumprido, é assim um conceito amplo. No caso ideal, compreende todas as esferas das atividades humanas. Todos os empreendimentos, sejam eles de natureza política, econômica, artística ou esportiva deveriam ser vistos como eventos culturais. Cultura é um postulado ético.


O princípio Cultura deveria assim ser fundamento de todo o convívio humano e assim, de toda a constituição de Estado, pois o Estado nada mais seria do que a tentativa de organizar a vida humana em conjunto. Depõe assim contra a nossa sociedade quando se fala de forma frequentemente irrefletida em cultura como uma esfera separada da nossa vida, para o qual se estabelece um ressort separado nas finanças de Estado, e quando se é da opinião que cultura apenas acontece nas horas de lazer, situando-se assim em oposição à atividade econômica. Deve-se ver diferentemente: Cultura deve determinar todas as nossas atividades; nós devemos nos esforçar em tornar-nos um Estado de Cultura.


O que é Arte?


Arte, assim afirmo eu de forma breve e ousada, é a representação simbolizadora de Cultura.“ (o texto teve a continuidade em 1984)



Cultura, Educação, Direitos Humanos e a superação do antropocentrismo na Ética


Com esse texto, o autor marcou não apenas as discussões da série de Semanas de Música e de edições do Forum de Leichlingen iniciadas com a Semana Alemã-Brasileira, como também o rumo das reflexões posteriores e que prosseguem até o presente.


Estas são fundamentalmente marcadas por uma compreensão do conceito de cultura em estreita relação com os Direitos Humanos e sobretudo com a Ética. É esse desenvolvimento que leva até hoje à proposição de uma Educação Musical a serviço da Ética, como formulado na abertura de amplo programa de Licenciatura em Educação Musical da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (Veja)


Entretanto, devem ser consideradas neste contexto também as diferenciações que o texto condutor das reflexões passou no debate orientado segundo a tradição de pensamento a que se prendem os estudos euro-brasileiros como desenvolvidos pela A.B.E. e que remete ao conceito amplo de Ética de Albert Schweizer (1875-1965). (Veja)


A crítica ao antropocentrismo de concepções, não no sentido de uma oposição ao teocentrismo de teólogos, mas da compreensão sentida como óbvia do homem nas suas relações com outros seres viventes, exigiu à época e exige ainda reflexões ampliadoras da ética.


Segundo o autor, o conceito do Dever do Homem reside no cumprimento da tarefa de exercer o Direito de desenvolvimento da personalidade individual junto e em cooperação com outros, representando uma tarefa social, interagindo o homem em sociedade e, nela com o meio ambiente.


Nas reflexões voltadas à necessária superação do antropocentrismo - causa que se veja como óbvio e natural o extremo embrutecimento do Homem para com os outros seres viventes -, essa proposição significa que é a sociedade na qual o Homem interage na concretização do seu Dever que necessita caminhar em direção a uma transformação de seu sistema de concepções do mundo e do homem.


A proposição do Forum de 1981 foi assim mantida mas ampliada no sentido da tradição - sem as suas dimensões teológicas - do pensamento ético de Albert Schweitzer a que se prende a A.B.E., orientação que se mantém até o presente.


Os Estudos Culturais assim compreendidos pretendem desencadear esse processo transformatório de consciência através de análises do edifício de concepções e imagens de remotas origens, servindo assim ao Esclarecimento.


De ciclos de estudos da A.B.E. sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo






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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.“ O que é Cultura? Direitos Humanos realizados e Deveres do Homem cumpridos. Cultura como postulado ético do indivíduo e do Estado“
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 152/10 (2014:6). http://revista.brasil-europa.eu/152/Cultura-Direitos-Humanos.html