Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Marechal Deodoro AL. Foto A.A.Bispo 1981 ©Arquivo A.B.E..


Marechal Deodoro AL. Foto A.A.Bispo 1981 ©Arquivo A.B.E..


Marechal Deodoro AL. Foto A.A.Bispo 1981 ©Arquivo A.B.E..


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Fotos A.A.Bispo 1981 ©Arquivo A.B.E..

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 152/12 (2014:6)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Doc. N°3150






Os Pastorís

nos Estudos Culturais e na Pedagogia Musical Comparada
em relações Brasil - Áustria - Alemanha

St. Johann im Pongau-Leichlingen-Marechal Deodoro (AL)

 
Marechal Deodoro AL. Foto A.A.Bispo 1981 ©Arquivo A.B.E..

O ciclo de Natal foi um dos complexos temáticos que primeiramente marcaram as reflexões e iniciativas euro-brasileiras quanto às relações entre Educação Musical e Estudos Culturais na Alemanha. Entre as múltiplas expressões da época do Advento, Natal e Reis, foram os Pastorís e tradições similares que receberam particular atenção.

Esse fato explica-se pelo interesse que os estudos respectivos já tinham recebido no Brasil no âmbito dos esforços de renovação dos estudos culturais a partir de um direcionamento da atenção a processos e que levou a uma viagem ao Nordeste em 1972, onde as tradições natalinas puderam ser observadas e discutidas com pesquisadores locais, salientando-se aqui Theo Brandão em Alagoas. (Veja)

Nos estudos euro-brasileiros que passaram a ser desenvolvidos na Europa, em 1974, a preocupação se concentrou desde o início ao esclarecimento da linguagem visual das encenações pastoris, cuja ordenação em dois cordões ou filhas caracterizadas pelas cores azul e vermelha indica claramente estruturas e mecanismo de antiga proveniência e de estraordinária importância para a compreensão do edifício de concepções e imagens da Antiguidade em transmissão cristianizada. Foco dos estudos desenvolvidos no complexo Antiguidade/Cristianismo em centros e estudos e museus foi a referência a Diana nas tradições pastorís.

Pelo significado dessas tradições, o complexo das tradições pastorís foi retomado durante projeto voltado ao estudo da recepção cultural no Brasil. Resultados de viagem de observações e pesquisas no Nordeste e Norte do Brasil forneceram subsidíos e documentação para o seu tratamento no Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“, em 1981. (Veja)

Nesse evento, a participação de um grupo parafolclórico de escola de música - o Conservatório Musical Ernesto Nazareth de São Paulo - levou a uma polêmica com autoridades eclesiásticas por não compreenderem estas o significado da linguagem de imagens e o sentido considerado como lascivo das encenações. A apresentação, prevista para o Museu de Arte Sacra de São Paulo, teve de ser suspensa. A questão - e problema do desconhecimento do clero quanto a tradições culturais na sua contextualização brasileira - foi tratada no Museu do Presépio, em São Paulo.

Na Alemanha, a questão foi tematizada internacionalmente no Leichlinger Musikforum de 1981, em preparação e acompanhamento da Deutsch-Brasilianische Musikschulwoche

A partir dessas discussões, que tiveram prosseguimento nos anos seguintes, realizaram-se pesquisas mais pormenorizadas de documentos históricos de tradições similares em outros países latino-americanos e na Europa, dando-se particular atenção aos fundamentos da linguagem visual dessas encenações na Antiguidade, em particular aos mecanismos reinterpretativos da época do sincretismo helenístico e da referenciação bíblica na Cristianização.

O significado desse complexo temático levou, em 1989, à realização de uma sessão de estudos sobre Pastorís e tradições similares com pesquisadores brasileiros na Abadia de Maria Laach, na Alemanha. O tema voltaria a ser tratado pelos 500 anos do Brasil no simpósio dedicado ao tema „Música e Visões“ sob o aspecto religioso, também em Maria Laach, com o apoio das conferências episcopais nacionais do Brasil e da Alemanha.

Reproduz-se aqui, em tradução portuguesa, o texto publicado e discutido na Deutsch-Brasilianische Musikschulwoche, em 1981.

***

Marechal Deodoro AL. Foto A.A.Bispo 1981 ©Arquivo A.B.E..

„O tempo de Natal é para todas as crianças em geral a mais importante época do ano. Já pelo sentido da festa do Natal, como festa do nascimento de Jesus, a criança se encontra no centro de todas as decorrências, e daí explica-se também sob muitos aspectos o grande e diversificado repertório de fenômenos culturais ao redor e para a criança que se desenvolveu no decorrer dos séculos nos povos marcados pelo Cristianismo.

Com essa herança cultural nas suas mais diversas formas confronta-se o pedagogo todos os anos, com ela precisa ocupar-se como teórico e prático, espiritualmente e configurativamente.

Esse lidar intelectual e criativo com o transmitido deve pressupor a consciência das multifacetadas dimensões e da dinâmica interna que é intrínseca ao fenômeno da tradição, pois assim libera-se de formas de expressões culturais aparentemente estáticas e usadas uma até então inesperada riqueza de possibilidades.

O ocupar-se com a tradição nas suas múltiplas dimensões - seja no sentido temporal ou histórico, seja horizontal ou geográfico-cultural, ou na sua problemática vertical, estatigráfica na sociedade - manifesta uma disposição mental na qual o transmitido do passado não é apenas visto como „um fator de persistência de um contínuo espiritual“, „que constitui no contexto social uma vida em ordenações consetudinárias“ (1), mas representa uma pré-condição de abertura perante o novo, e isso pelo reconhecimento de que o homem nunca alcança uma total independência relativamente a seu contexto cultural.

A diferenciação na consideração de um elemento cultural ou de um contexto cultural é assim condição necessária para poder-se avaliar a sua diversidade. Um fenômeno familiar que é visto sob uma perspectiva não-familiar pode colocar em nova luz aspectos pouco considerados ou linhas de desenvolvimentos mal interpretadas e enriquecer a praxis à medida em que nela se considerem refletidamente os conhecimentos assim ganhos.

Nesse sentido, o presente texto procura descrever em esboço tradições de Natal de um país distante da Alemanha, e isso não em interesse puramente etnológico, mas aplicado, ou seja, como uma contribuição a uma Pedagogia Musical Comparada. Salienta-se aqui expressamente que não há aqui a intenção de se transplantar um bem cultural estranho num outro país no sentido de uma fascinação por folclore exótico. Trata-se antes de, através da comparação com a cultura de um país sob muitos aspectos estreitamente ligado ao Ocidente dar ao leitor a possibilidade de reconhecer fundamentos culturais comuns em aparência de outras cores e assim revalorizar alguns aspectos de sua própria cultura que tenham permanecido velados.


I

Um fato que já de início surge como estranho ao observador europeu é determinado pela natureza. Uma festa de Natal que não cai no inverno, mas no alto verão, que decorre não sob neve, mas no calor dos trópicos ensolarados, exige já por si uma mudança no pensar, pois a idéia geral e a imagem do Natalino associa-se com a época do ano invernal.

Para tornar esta exposição mais viva e precisa, não se tratará aqui do Natal em geral no Brasil, mas numa determinada cidade do Nordeste do país e numa determinada época. Em dezembro de 1970 e janeiro de 1971, o autor vivenciou e pesquisou costumes populares e festas em Marechal Deodoro, no passado Alagoas, a antiga capital do Estao de Alagoas.

A visita a essa cidade teve lugar no decorrer de uma viagem de dois meses, durante a qual, partindo-se de São Paulo, visitou-se grande número de cidades da costa dos Estados de Espírito Santo, Bahia, Sergipe e Alagoas. Ela tinha como objetivo de realizar um amplo registro de práticas populares do ciclo das festas de Natal. A este conta-se o Advento como período precedente, a Oitava com as festas que a acompanham até à Festa de Nossa Senhora no oitavo dia (Ano Novo) e a Epifania. Sob o aspecto dos estudos folclóricos (Volkskunde), poder-se-ia aqui considerar também as festas de santos (entre outros S. Sebastião e Sto. Amaro) até o início da Quaresma, pois as numerosas festas dessa época do ano apresentam muitos aspectos em comum.

Já à chegada na noite do último sábado de Janeiro em Marechal Deodoro, cuja feição urbana é marcada por construções dos séculos XVIII e XIX, mostrou-se a atmosfera radiante da festa popular que já dominava há mais de um mês a cidade. As ruas e as igrejas estavam lotadas, música festiva soava de muitas casas e nas praças fazia-se música e dançava-se. O mercado havia sido transformado em salão de baile, o soar de sinos, o estourar de fogos e a música dos mais diversos grupos contribuiam acusticamente  a uma alegria geral e contagiante. Ganhava-se a impressão que a população festejava com grande e íntima participação.

Sintomático dessa situação era a atitude dos visitantes de um presépio que tinha sido levantado em casa particular numa das ruas da cidade.

A moradora, uma senhora de idade de meio social modesto, tinha transformado toda a parte da frente da sala em grande estrado, sobre o qual com muito trabalho criara um grande prresépio com numerosas figuras por ela mesmo feitas. Isso costumava fazer ano por ano, e o seu presépio era visitado diariamente por muitas pessoas, sobretudo nos dias feriados e nos fins de semana, tornando-se por assim dizer um fato semi-público da cidade.

Principalmente crianças visitavam o presépio e ouviam com interesse as explicações pormenorizadas da velha senhora, que eram em parte versificadas. Ela vivia de tal modoo no mundo imaginário por ela criado ao redor do acontecimento do Natal como tema central que pouco podia voltar de novo à realidade. Se havia público ou não, ela contava ininterruptamente as diferentes estórias em complexas relações entre pessoas e seres representados pelas suas figuras.


A construção do presépio manifestava o mundo imaginário da proprietária, de início de difícil compreensão. Ao lado da representação do presépio em si, haviam numerosas outras figuras, umas de lendas e mitos brasileiros, de origem indígena, africana ou européia, outros de estórias infantís conhecidas na Europa, outras de difícil identificação e que muito provavelmente tinham-se originado da fantasia da velha senhora.

As figuras eram agrupaas em dois campos ao redor do acontecimento principal natalino, o presépio propriamente dito. Esses campos eram chamados „fazendas“. Assim, a representação demonstrava já visualmente o complexo processo aculturativo de numerosos elementos de diversas origens que marca todas as expressões populares no Brasil.


Nas estórias contadas pela velha senhora, tratava-se, em vínculos com a história natalina, de relações entre os membros das fazendas que se contrapunham e que eram caracterizados pelas cores vermelha e azul. A filha de um grande proprietário estava enamorado de um príncipe da outra fazenda. No complicado enrêdo que se seguia, os visitantes do presépio tomavam parte com vivo interesse, tomando partido por uma ou outra fazenda. Disso resultava motivos de disputas e competições entre os adeptos do lado vermelho e do azul no decorrer da estória que era diariamente ampliada segundo a sua fantasia.

A divisão dos visitantes em torcedores do partido vermelho ou do azul correspondia a uma divisão da população em grupos dessas cores. Assim, havia bandas que representavam uma ou outra cor, e em numerosos outros grupos de dança e de encenações observava-se o confronto das duas coras e dos grupos que a elas correspondiam.

As mais diversas associações vinculadas com essas cores tinham até mesmo um significado político local, que não raro podia levar a atos menos pacíficos. O significado original de ambas as cores é difícil de ser elucidado com precisão, o que exigiria um contexto mais amplo do que o deste texto. Numa possível explicação, ouve-se que o azul seria a cor votiva de Maria e o vermelho a de Cristo.

Para considerar-se adequadamente essa representação do presépio e o seu significado cultural, pode-se recordar alguns pontos da pesquisa de presépios. Uma fase importante na história do presépio de Natal é a sua difusão de forma individualizada e típica sobretudo na Itália, Espanha, Portugal e Sul da Alemanha desde o século XVI.

O seu ponto culminante alcançou o desenvolvimento do presépio nos grandes exemplos da segunda metade do século XVIII. De Portugal, onde a representação do presépio já pode ser documentada em 1391, essa prática foi introduzida já no século do descobrimento do Brasil nessa colonia portuguesa, e isso sobretudo no âmbito escolar sob a direção jesuítica. Assim, há notícias do ano de 1584 a respeito de um presépio no Rio de Janeiro, perante o qual também se fazia música. (2)

Essa tradição foi prosseguida não apenas em igrejas e em escolas, mas também em casas particulares. Em regra, os presépios são desmontados no dia que se seguia à Epifania no 6 de Janeiro, sendo a palha usada queimada, quando então se entoam determinados cantos para essa ocasião. (3)

Singular, no presépio descrito,que  permanecia montado até o período de carnaval, era a introdução de figuras não-bíblicas, o que, todavia, também pode ser frequentemente constatado em encenações européias. Procura-se aqui, por assim-dizer, atualizar o acontecimento natalino à medida em que nele se introduzem tipos populares da atualidade, edifícios e outros elementos de cena do tipo da pintura de Genre. (4 )

Na pequena cidade do Nordeste do Brasil, acontecia não apenas uma atualização da história do Natal através da tomada de elementos externos do meio envolvente, mas também através de sua vinculação em textura com o complexo mundo dos mitos e da fantasia.

Na fascinação desse mundo imaginário brilhante crescem as crianças. Ao lado dos fundamentos religiosos, a elas eram transmitidas por via oral as tradições do país e de uma forma que exigia um diálogo criativo com o material recebido. O entrosar-se empaticamente e a vivência íntima das ações representadas no presépio garantiam a continuidade a tradição e impedia ao mesmo tempo o seu estarrecimento. Daqui surge um de seus maiores significados culturais.


II

Se as atividades mentais até agora descritas referenciadas pelo acontecimento natalino se processavam sobretudo no complexo universo imaginário dos visitantes daquele presépio, na praça central da cidade era atualizado de forma encenada e dançada. Ali levantaram-se um palco, no qual se apresentaram diversos grupos folclóricos no decorrer da noite. Pode-se citar sobretudo as marujadas e o pastoril que, em apresentações que duravam várias horas, atraiam a atenção de uma grande assistência que intensamente participava.

A cada uma dessas expressões foram já dedicados estudos folclóricos e que consideram em geral aspectos musicais, literários, coreográficos, a origem e a difusão de grupos individuais ou da tradição em geral. Pode-se salientar aqui a grande obra de Théo Brandão, procurado pelo autor deste texto na capital Maceió, quando ofereceu pessoalmente um quadro dos seus múltiplos esforços de pesquisa e de fomento desses costumes populares na região.

O Pastoril é de todas as expressões tradicionais da cultura popular aquela que aparente ter o maior vínculo de conteúdo com o ciclo das festas natalinas, ainda que não se tenha feito até hoje uma diferenciação mais precisa com similares tradições denominadas de Presépios, Lapa, Bailes Pastorís e outras expressões. Também não se estudou pormenorizadamente a origem do termo. Evidentes são porém os elos com as expressões lúdicas de cunho religioso que possuem uma rica história na Europa desde a Idade Média.

Também a palavra „pastoril“ indica uma peça de pastores, que pode ser relacionada com expressões européias similares de caráter pastoral. As participantes, em duas filas caracterizadas pelas cores vermelha e azul, que se movimentam ou dançam, são chamadas de pastoras.

A graça de seus movimentos ingênuos assim como a simplicidade dos costumes contribuem à atmosfera característica da encenação, idílica ou bucólica. A participação quase que unicamente feminina no pastoril, com reduzidos trajes, criam um certo ambiente sensual. O elemento galante pode, porém ser relacionado sob muitos aspectos com o mundo pastoril.

Pode-se lembrar aqui nos textos da Pastourelle, Pastorela, Pastorita da lírica do Trouvère da Idade Média, em geral em forma dialogada, frequentemente expressão do amor idealizado a uma pastora. Também muitas obras pastorais da música instrumental da época barroca - como por ex. o concerto „La pastorella“ e as seis Sonatas „Il pastor fido“ e A. Vivaldi (1678-1741) revelam caráter galante. (5) Parece ser assim infundada a crítica frequentemente feita de que os componentes galantes do Pastoril brasileiro representariam uma deformação cultural-moral da tradição. (6) Antes poder-se-ia falar talvez de uma certa intensificação do cunho galante devido a tendência à sensualidade no verão brasileiro.

Unilateral parece ser uma outra crítica frequentemente feita de falta de religiosidaded a música e dos textos do Pastoril. De fato, nem todos os cantos fazem referências explícitas ao Advento, ao Natal ou à Epifania, e não raro se louva a beleza da vida de pastores e a de uma bela jovem. Isso, porém, como mencionado, pertencem ao caráter pastoral da encenação. Quanto à música, acha-se de fato nenhum traço por exemplo do Canto Gregoriano. Trata-se antes de melodias tonais, simples, muitas vezes criticadas como banais, tendo-se nelas procurado em vão características da „autêntica“ música folclórica brasileira. (7)

Os cantos são acompanhados com instrumentos; as pastoras portam pandeiros de pastoris - aros com lâminas que se entrechocam - ou mesmo maracas, ou seja um par de cabaças ocas e cheias de sementes fixas num cabo. A esse ruído das maracas podem se ajuntar aquele dos pandeiros, esses com pele, executados pela mestra e pela contra-mestra, guias dos cordões vermelho e azul. Deve-se aqui lembrar que já em relatos do século XVI menciona-se o instrumento como de uso na dança das mulheres. (8)

O Pastoril é além do mais acompanhado por um grupo instrumental que, na execução presenciada em 1970/71, tinha o seu lugar à frente do palco, no chão. Neste caso, tratava-se de um grupo de sopros, predominando pistões, clarinetas e saxofone. Na literatura, encontra-se a menção de outros instrumentos, por exemplo  a viola, o cavaquinho, o bandolim e outros. (9)

Com essa prática de execução, a música do Pastoril soa necessariamente como totalmente profana aos ouvidos de um observador estranho. Quando, porém, se considera que até mesmo a música sacra do passado brasileiro, com o seu acompanhamento orquestral pouco se diferenciava da música artística de maior qualidade da época, (10) então não se pode esperar características de severas concepções sacro-musicais em encenações lúdicas, ainda que de fundamentação religiosa, que se apresentam em palcos ou em casas particulares.

A música instrumental de cunho pastoral na Europa também revela elementos que antes são próprios da música popular, por exemplo condução melódica em terças, bordão e o rítmo siciliano (no Brasil entre outros melodia em terças paralelas e síncopes). Como parte de concertos de Natal e de peças pastorais, entre outros de G. Frescobaldi (1583-1643), J. K. v. Kerll (1627-1693) e G. F. Händel (1685-1759), encontram-se melodias com essas características, cuja origem é considerada como remontante àquela dos Pifferari e Zampognari da Itália, pastores que, à época do Advento, vinham a Roma da Calábria ou dos Abruzzen. (11)

A acima mencionada singular integração de estranhas figuras e ações na história do Natal no presépio de Marechal Deodoro, também pode ser observada no Pastoril. Além de anjos e do diabo, também surge aqui a figura da Diana, que talvez indique remotos e complexos elos com a deusa da Antiguidade grega e romana da vida animal e da lua. Elucidações mais profundas mereceriam figuras como a Estrêla do Norte, o Cruzeiro do Sul, ou a de um velho grotesco e cômico.

III

De particular significado revela-se um fundo educativo subjacente ao Pastoril. Nele parece sobreviver uma forma de encenação escolar de séculos passados. Parece ser admissível relacionar essa tradição com o fazer música perante presépios das escolas missionárias da época colonial, assim como com os dramas pastorais falados e cantados nas escolas de épocas posteriores. Disso falaria o fato de que no presente sobretudo jovens adolescentes nele participam.

Hoje, o Pastoril, reconhecido como expressão da cultura tradicional brasileira, é introduzido em escolas no âmbito da valorização do Folclore brasileiro. Com isso, estabelece-se uma ponte entre os meios educativos de ontem e os do presente. Assim, a pesquisadora brasileira Neide Rodrigues Gomes criou um grupo de Pastoril no Conservatório Musical „Ernesto Nazareth“, uma escola de música na Móoca, um bairro de São Paulo, a maior metrópole do Brasil. Esse grupo „para-folclórico“ é um exemplo das muitas tentativas de aplicação de resultados da pesquisa na prática das escolas de música e nas escolas em geral.

Ainda que em muitos casos a revitalização artificial do Folclore não deixar de levantar questões pelo risco que traz de sua falsificação, no caso do Pastoril esse procedimento é menos questionável devido às características que apresenta e que sugerem remotas práticas de encenações escolares.

Em todo o caso, não só se revitaliza uma antiga tradição do país, despertando a consciência de alunos relativamente à cultura popular, como também se mantém e se difunde na cidade grande tradição do repertório ocidental de antiga proveniência. No mundo pastoral do Pastoril vive sob o Cruzeiro o Sul a apologética cristã do Natal representada em diversificadas formas na Europa como memória dos pastores de Belém e, ao mesmo tempo, a bucólica da vida idealizada de pastores na linguagem simbólica da Antiguidade.

  1. (1)Veja a entrada „Tradition“, Der Große Brockhaus.

  2. (2)Câmara Cascudo, L. da. „Lapinha“, em Dicionário do Folclore Brasileiro, 2a. ed. rev.. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro/MEC, 1962.

  3. (3)„Queima“, ibidem.

  4. (4)Valiosa coleção de presépios possui o Museu do Presépio em São Paulo, sede de uma das sessões do Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“ de 1981.

  5. (5)Veja a entraa „Pastorale“, Riemann Musiklexikon.

  6. (6)Alvarenga, O. Música Popular Brasileira, Porto Alegre: Globo. Por motivo de um suposto cunho imoral autoridades eclesiásticas proibiram a apresentação do Pastoril do Conservatório Musical Ernesto Nazareth no Museu de Arte Sacra durante o mencionado simpósio internacional em São Paulo, em 1981.

  7. (7)Ibidem, 77.

  8. (8)„Paneiro“, Brockhaus Riemann Musiklexikon.

  9. (9)„Pastoril“, Câmara Cascudo, L. da. op.cit.

  10. (10) Bispo, A.A., Die katholische Kirchenmusik in der Provinz São Paulo zur Zeit des brasilianischen Kaiserreiches 1822-1889, Regensburg: Bosse, 1980.

  11. (11) „Piffero, piffaro“, Brockhaus Riemann Musiklexikon.




De ciclos de estudos da A.B.E. sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo

Todos os direitos reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A..“ Os Pastorís nos Estudos Culturais e na Pedagogia Musical Comparada em relações Brasil - Áustria - Alemanha“
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 152/12 (2014:6). http://revista.brasil-europa.eu/152/Pastoril-na-Pedagogia.html