Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Bruxelas. A.A.Bispo 2015 copyright Arquivo A.B.E..


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Bruxelas. Fotos A.A.Bispo 2015 ©Arquivo A.B.E..

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 153/3 (2015:1)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Doc. N°3156





Sur L‘Evolution d‘une Ville du Nouveau-Monde

Ontogenese, filogenese e e a recapitulação biogenética no Rio de Janeiro
Antropologia cultural evolucionista e social-darwinismo


Ciclos de estudos na Bélgica pelos 450 anos do Rio de Janeiro
Com agradecimentos à Biblioteca Real da Bélgica em Bruxelas

 
Em ciclo de estudos levado a efeito em Antuérpia e Bruxelas às vésperas do ano de comemorações dos 450 anos do Rio de Janeiro, considerou-se com particular atenção um texto que surge como ponto de partida para os eventos científico-culturais internacionais que serão realizados pela A.B.E. por motivo dessa data: o „Sobre a Evolução de uma cidade do Novo Mundo“ de Manuel de Oliveira Lima (1867-1928). (Sur L‘Evolution d‘une Ville du Nouveau-Monde. Anvers: Mission Brésilienne de Propagande et d‘Expansion Économique, s/d)


Esse texto do Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário do Brasil junto ao rei dos belgas, publicado pela Missão Brasileira de Propaganda e de Expansão Econômica de Antuérpia, foi preparado como memória apresentada pelo autor como delegado do Govêrno Brasileiro ao Congresso Internacional dos Americanistas realizado em Viena, de 9 a 16 de setembro de 1908.

Bruxelas. A.A.Bispo 2015 copyright Arquivo A.B.E..

Naquele ano comemorava-se o Centenário da Abertura dos Portos ao comércio mundial das naçãoes amigas com a Exposição Mundial do Rio de Janeiro, de modo que era justificável e até mesmo se impunha no Congresso Internacional dos Americanistas o tratamento da então capital do Brasil que se apresentava em resplandescente reconfiguração.


No ano seguinte, Oliveira Lima representou o Brasil em Congresso Internacional de Música pelo Ano Haydn, expondo à comunidade internacional de musicólogos e músicos o vulto e a obra do Pe. José Maurício Nunes Garcia (1767-1830).


Urbanismo e música surgiram assim relacionados nesse ano em que o Rio de Janeiro foi focalizado internacionalmente na capital do Império Áustro-Húngaro.


O texto de Oliveira Lima, ainda que breve, adquire significado sob diferentes pontos de vista para a discussão de concepções historiográficas, do urbanismo, do planejamento, da política-cultural, da história diplomática, da imagem e da história da recepção do Brasil na Europa.


Ele surge como de particular relevância sobretudo por trazer à consciência o significado do Rio de Janeiro para o tratamento de questões do complexo temático Cultura/Natureza, centro das atenções do respectivo programa da A.B.E. (Veja)


A partir desse texto, reflexões genéricas e estudos realizados em outros contextos podem passar a ter o Rio de Janeiro como referência, contribuindo não só à diferenciação de análises culturais da então capital - e por extensão do Brasil - nas suas inserções em processos globais, como também aos estudos do papel desempenhado pelo pensamento científico-natural de cunho biologístico na história do urbanismo e da Antropologia Cultural.


A sua relevância para a atualidade revela-se sobretudo no fato de trazer à luz idéias que teriam sido motores da reconfiguração urbana do Rio nas suas implicações e consequências sociais e humanas, demonstrando a necessidade de estudos mais aprofundados e diferenciados de um social-darwinismo que se apresenta como um dos fatores de graves problemas da cidade e do país no seu desenvolvimento posterior e na atualidade.


O conceito de Evolução em estudos de urbanismo e processos antropológico-culturais


Já o título da memória do delegado oficial do Govêrno do Brasil aos americanistas reunidos em Viena inclui o conceito condutor para a sua leitura adequada e compreensão de visões subjacentes: o da evolução.


Considerar esse texto significa aqui recapitular uma discussão já de décadas e que remonta à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo de fins da década de sessenta e início dos anos 70 do século XX.


O conceito foi utilizado no título do curso „Música na Evolução Urbana de São Paulo“, levado a efeito interdisciplinarmente nas áreas da Estética, História da Música e Etnomusicologia na Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo pelo editor em cooperação com o Museu Paulista, em 1973/4.


Na Europa, o conceito foi discutido em várias ocasiões, entre outras em conferência sob o patrocínio da Embaixada do Brasil no Club Ibérico, em Bonn, em 1989, assim como em seminários nas Universidades de Bonn e Colonia dedicados às relações entre Música e Arquitetura e Música e Urbanismo, entre 2002 e 2008.


Em diferentes eventos foram discutidos aspectos, significados e problemas no emprêgo desse termo no âmbito dos estudos de processos culturais, salientando-se aqui o Colóquio Internacional de Estudos Interculturais levado a efeito pela A.B.E./I.S.M.P.S. em cooperação com as universidades de Bonn e Colonia, o Centro Cultural São Paulo e outras instituições em várias cidades brasileiras por motivo dos 450 anos de São Paulo, em 2004.


O texto de Oliveira Lima possibilita, assim, retomar esse debate agora com referência ao Rio de Janeiro nos seus 450 anos, até mesmo indicando a possibilidade de ser o Rio de Janeiro o referencial por excelência para o tratamento do tema.


Ontogenese e filogenese como critérios teóricos em Oliveira Lima


O representante do Brasil iniciou o seu texto lembrando que já há duas décadas repetia-se no mundo acadêmico um postulado de escola filosófica que dera margens as muitas discussões.


Esse postulado afirmava que a ontogenese, ou seja, o desenvolvimento do indivíduo, oferecia um resumo da filogenese, o desenvolvimento da espécie, com a diferença da dimensão temporal. Poder-se-ia constatar num curto espaço de tempo no indivíduo processos que na natureza exigem para a sua realização uma sucessão indefinida de séculos.


É digno de atenção o fato de Oliveira Lima não ter-se referido a uma teoria científico-natural, mas sim a uma filosofia que estaria em debate há cerca de vinte anos e que, ainda que levantando polêmicas, podia ser tomada como modo de pensar e de visão do mundo de fundamentação científica.


Oliveira Lima revela aqui a recepção da corrente do pensamento do evolucionismo nos seus sentidos abrangentes, cujo maior vulto era Ernst Haeckel (1834-1919), representante do Monismo. A regra mencionada por Oliveira Lima era a assim-chamada „lei fundamental biogenética“, postulada por Haeckel já em 1866. Exposto na sua Morfologia Geral, essa teoria voltou a ser tratada em publicações posteriores, o que explica que Oliveira Lima afirme a sua constante presença há duas décadas no meio intelectual.


O pensamento de Oliveira Lima revela mais do que uma aplicação por analogia de conceitos científico-naturais na interpretação do desenvolvimento histórico e do processo urbano. Êle sugere uma compreensão ampla da evolução, que seria também válida para o tratamento da sociedade e da formação histórica do Rio como processo ao mesmo tempo universal de civilização, na individuação da sociedade brasileira em entidade e, assim, de formação de nacionalidade.


Essa compreensão, hoje sob muitos aspectos reconhecida como injustificável ou mesmo inadmissível, adquire um alto significado para a história dos estudos culturais, pois indica o intuito de fundamentar teoricamente o tratamento de uma obra urbana como fato antropológico-cultural, mostrando o sentido a ser reconhecido na transformação designada como evolução do Rio de Janeiro.


Como Ministro Plenipotenciário na Bélgica, como Delegado do Govêrno no Congresso, Oliveira Lima falava com autoridade oficial, podendo-se deduzir que as idéias que apresenta refletiam de fato aquelas que tinham levado à reconfiguração do centro antigo do Rio de Janeiro. Neste sentido, reconhecer-se-ia um intuito filosófico ou teórico-cultural de fundamentação científico-natural no projeto de extraordinárias dimensões que reuniu forças do Govêrno da União e da Prefeitura do Rio de Janeiro.


A exposição de Oliveira Lima revela, porém, que os termos de ontogenese e filogenese não foram aplicados propriamente à cidade na sua configuração estético-arquitetônica, mas ao edifício programático que levou ao ato de forças reunidas para a demolição do antigo centro comercial e a sua reconstrução radical, o „bota abaixo“.


O Rio de Janeiro como entidade vivente que recapitula a filogenese


A aplicação de princípios biológicos nesse ideário indica uma compreensão de cidade no sentido de ser vivente e de entidade. Transpõe-se para o Rio de Janeiro a noção de indivíduo humano ou animal que, no caminho do estado embrional àquele de adulto recapitula o caminho evolutivo e o vir a ser da espécie.


Nesse sentido, o programa teórico da reconfiguração do Rio de Janeiro, compreendendo a cidade como indivíduo, assume um cunho antropológico ou biológico em geral, um antropo- ou bio-urbanismo em sentido de uma visão do mundo evolucionista ou social-darwinista.


Essa transposição de conceitos e de constatações das ciências naturais à cidade tornou-se possível através de uma compreensão - hoje reconhecida como imprópria ou ilícita - que relaciona indiferentemente evolução e história, de ontogenese com a história do indivíduo, no caso com a história da entidade que seria o Rio de Janeiro e, através dela, coração do Brasil, do próprio país.


Essa história individual do Rio recapitularia em poucos séculos o que a „cidade“ em si - por assim dizer espécie - teria levado séculos. As dimensões desse programa abrangiam não apenas superficialmente a história do Rio como uma espécie de biografia, mas também o surgimento de uma entidade nos seus aspectos psiquicos, uma individualidade própria no conjunto da „cidade“ em contextos globais.


Oliveira Lima com o seu texto - ou a teoria que aplicava - apresentou uma proposta singular para o debate evolutivo de relações entre ontogenese e filogenese decorrente do postulado de Haeckel de sua época, tratando-o a partir de uma cidade, não abstrata, mas de um fato já concretizado, passível de ser constatado empiricamente.


Assim como a ontogenese era vista como uma recapitulação em breve tempo da filogenese, para Oliveira Lima, as cidades do Novo Mundo ofereciam um testemunho da longa evolução da sociedade humana. Elas teriam levado, em três ou quatro séculos, do estado da natureza ao estado da cultura, o que o autor considerava como sendo um caminho „da perfeita animalidade“ a uma „civilização refinada“.

A aplicação da lei biogenética à evolução cultural - e à evolução psíquica - do homem assim feita por Oliveira Lima não era nova, provavelmente nova era a sua aplicação às cidades do Novo Mundo. Essa transposição de conceitos implicava em analogias da cidade com uma criança que recapitualaria no decorrer da socialização o desenvolvimento psíquico e cultural do Homem.

Nessa elucidação, o autor revelava as suas idéias de natureza e de cultura, hoje questionáveis, mas que indicam concepções condutoras não só de suas visões pessoais de decorrências e situações, mas também daquelas subjacentes de uma política que levou às extraordinárias transformações por que passou o Rio de Janeiro na época. Conceitos de natureza e cultura assim sugeridos situam-se à base da fisionomia que fêz do Rio de Janeiro a cidade decantada à época e nas décadas seguintes.


Diferentes cidades americanas e o Rio como exemplo do estado da cultura e civilização


Oliveira Lima fêz de início no seu texto uma distinção entre cidades geradas espontaneamente, de resto „muito típicas“, aquelas que já nasciam totalmente prontas e que teriam alcançado de algum modo precoce maturidade com todas as conquistas da moderna técnica. Exemplos do primeiro caso seriam aquelas dos Estados Unidos. Belo Horizonte representaria um exemplo do segundo caso como capital nascida de um plano pré-concebido.


A capital do Brasil, porém, fornecia ao contrário um belo exemplo de cidade que passara por todas as fases, sofrera todas as sortes e experimentara em três séculos e meio todas as transformações que por exemplo Roma vivenciara em vinte séculos.


Essa interpretação de evolução urbana perpassa o quadro histórico do Rio de Janeiro oferecido por Oliveira Lima.



Lembra que a baía da Guanabara servira de início para descanso de navegantes em explorações ao longo da costa ou à procura de passagem ao Oriente maravilhoso. O Rio de Janeiro, como cidade, devia a sua origem à expedição vinda da Bahia contra os franceses - a Bahia como centro da autoridade real portuguesa e os franceses que tinham fundado sob Villegagnon a França Antártica.


Os índios tinham decididamente tomado partido dos franceses - uma simpatia que se repetiu na América do Norte -, sendo que os portugueses tiveram que empregar a violência, força e diplomacia para superar a sua resistência e levantar os seus primeiros abrigos de tábuas.


Oliveira Lima utiliza-se na sua exposição histórica de imagens pictóricas, descrevendo o superbo quadro constituido pelas montanhas de granito, florestas, praias douradas, tudo em proporções gigantescas, um panorama que dominava com a sua grandiosidade um punhado de homens que queriam assentar-se em regiões recentemente descobertas e tinham que lutar tanto contra os elementos como contra os selvagens, ou seja, contra a natureza e o homem, ambos igualmente hostis. Revela, nessa descrição expressiva, um conceito que surge como condutor: o da „luta pela existência“.


Não se sentindo seguros na Praia Vermelha, onde desembarcaram - e onde à época do texto (1908) se realizava a Exposição Nacional - adentraram pela baia e escolheram uma elevação para a construção de uma fortaleza e capela, dando continuidade à tradição tanto moura quanto cristã da Península Ibérica. Esta era o Morro do Castelo, que na época já se encontra semi arrazado para dar lugar à Avenida Central, via que exigiu a demolição de mais de 600 casas e que atravessava todo o bairro comercial, que Oliveira Lima descreve como boulevard de beleza única. A derrubada do Morro do Castelo era apresentada assim nessa visão como superação de uma urbe e sociedade por assim dizer luso-oriental para dar lugar àquela antes descrita como de civilização refinada.


Oliveira Lima salienta as dificuldades dos primeiros tempos, quando os colonos procuravam abrigo por detrás de paliçadas, e o auxílio dos jesuítas, que seriam „os melhores agentes civilizadores da América portuguesa“. Lembra a distribuição de terras em forma de concessões, o cultivo da cana de açúcar e da mandioca, o exercício de profissões pacíficas e de guerra, a procura de ouro, da mão-de-obra indígena e mesmo os anelos ao eterno manifestado na construção de conventos.


De falta de ar, luz, de falta de vitalidade e música triste ao Rio arejado, iluminado e alegre: Gaité!


No quadro - ou filme - assim expresso literariamente, Oliveira Lima descreve a tomada do terreno por casas em ruas longas e estreitas, onde o sol nunca ou apenas com muita dificuldade penetrava, a partir do porto onde os navios portugueses costumavam ancorar.


Substituindo essa  situação deficitária e tenebrosa, surgia o Rio que acabava de ser transformado.


Singularmente, Oliveira Lima estabelece na sua exposição um elo entre a situação urbana descrita como sombria, sem sol e ar, com a alegria de viver e a música do novo Rio.


Segundo êle, a vida no Rio antigo não era alegre; as distrações resumiam-se a pobres festas de igreja e os escravos, importados cada vez em maior número da África, contribuiam a essa vida sombria com cantos monótonos e danças tristes.


Esses cantos monótonos dos africanos teriam chegado a predominar sobre os lamentos melancólicos dos portugueses, com os quais logo se fundiram: „et leurs chansons monotones, acompagnées de danses tristes, se firent entendre plutôt que les complaintes mélancoliques et les suggestifs accords des Portugais, race avec laquelle ils ne tardèrent d‘ailleurs pas à fusionner“.


Oliveira Lima oferece assim um quadro no qual Rio antigo, oriental-português, a seguir africano-português, sombrio, abafado e triste, marcado pela monotonia - ou rudimentaridade - de cantos e danças africanas fundidos com a tristeza, nostalgia, saudosismo ou fatalismo português, apenas vitalizado com modestas festas de igreja, constituia um contraste com o Rio reconfigurado, arejado, ensolarado, repleto de alegria.


Passando a considerar a cidade no contexto nacional, o diplomata salientou que o Rio quase que nada contava até o século XVIII. As lutas com os holandeses, nascidas da União Pessoal de Portugal com a Espanha entre 1580 a 1640, não atingiram a existência da cidade escura e tímida. Essas lutas longas estenderam-se do Maranhão até a Bahia: um Brasil de fachada, pois o interior permanecia misterioso e desconhecido. O Rio não foi tomado a não ser mais tarde pelo famoso corsário Duguay-Trouin para vingar a morte de seu camarada Duclerc que as circunstâncias da guerra de Secessão tinham conduzido à América do Sul.


Justamente nessa época, porém, a cidade passou a crescer graças às descobertas de ouro e sua exploração em Minas Gerais a partir do começo do século. O Rio passou a ser o escoamento natural dessa região.


Da arquitetura de „mau gosto“ portuguesa à elegância do novo Rio


Na consideração dessa fase inicial de florescimento do Rio de Janeiro, Oliveira Lima entra em questões de estética e de crítica ao gosto português.


Nessas apreciações, o diplomata manifesta o cunho francês de sua formação e a sua visão do que seria refinamento de civiização.


Se o crescimento material da cidade que passara a ser escoamento das riquezas extraídas de Minas não levara a um florescimento arquitetural, é por que teria faltado gosto. Este era aquele recebido de Portugal e aqui o autor - descendente de portugueses e que estudara em Portugal - não economizava nas suas críticas.


Após os exageros do estilo manuelino, um gótico sobrecarregado com reminiscências árabes, a arquitetura portuguesa teria sido marcada pela platitude. A própria reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755 fora feita com construções sem elegância, bem diferentes de estilos que, na França e fora dela, tinham levado a grandes obras. Nada respirava em Lisboa o ar majestoso de Luís XIV, nada correspondia às curvas graciosas de Luís XV ou a harmonia de linhas de Luís XVI. Pouco numeroso seria de resto o que de valor poder-se-ia constatar no ultramar.


Se os últimos vice-reis do Brasil se preocuparam em embelezar a cidade, essas tentativas teriam sido marcadas por mau gosto. O exemplo partia do alto e a moda era a de construções monumentais e de jardins sobrecarregados com obras de arte. 


Entre outros, Oliveira Lima lembra o aqueduto de arcos romanos que figurava na maior parte das vistas da cidade, assim como o Passeio Público à sombra de bosques ao redor de fontes emolduradas por rochas e ornamentado com estátuas artificialmente bronzeadas.


Para exemplificar o mau gosto que via nessas obras urbanas do passado, cita John Barrow (1764-1848), que, na rota para a Cochinchina com a embaixada inglesa, dissera que, se os portugueses do Rio teriam feito tais melhoramentos para embelezar a natureza, pelo menos devia-se dar-lhes o mérito negativo de não terem feito muito para a desfigurar.


A tonalidade da cidade tinha sido mais religiosa do que profana, ainda que o amor pago - a prostituição - tenha sempre desempenhado importante papel no Rio como cidade portuária.


As casas eram todas protegidas, com imagens da Virgem ou de santos, colocadas muitas vezes no exterior, em nichos, à frente dos quais se realizavam atos devocionais. Procissões percorriam a cada instante as ruas, ao som de música militar, com grande participação de confrarias e de crianças vestidas de anjos, enquanto que os sinos soavam.


O porto passou a ser conhecido através de relatos de viajantes estrangeiros pela água e víveres que ali podiam ser obtidos, surgindo como uma parada privilegiada nas intermináveis travessias, tanto para os navios que se dirigiam ao mar do Sul como por aqueles que tinham que dobrar o cabo da Boa Esperança, na rota para as Indias Orientais e para a China.


Lembra que o porto do Rio era de difícil acesso no século XVIII, sendo necessário uma série de razões para a permissão de entrada a navios, uma vez que a administração portuguesa não ficava atrás da espanhola nas suas precauções.


Com essas menções, Oliveira Lima preparava os ouvintes do Congresso dos Americanistas de 1908 a compreender a necessidade e as dimensões da abertura dos portos cujo centenário então se celebrava e a remodelação do porto do Rio de Janeiro como fator indissoluvelmente relacionado com a reconfiguração da cidade.


A vinda da Corte, a abertura dos portos e a „educação do gosto“ pela Missão Francesa


Uma nova fase na evolução urbana da cidade deu-se com a vinda da Corte portuguesa, crescendo a cidade e ganhando em vida sob todos os aspectos. O seu perímetro ampliou-se, os bairros se estenderam em diferentes direções, o comércio floresceu, os estrangeiros trouxeram novos impulsos e a vida da cidade intensificou-se com os espetáculos da realeza e das cerimônias religiosas.


O grupo, que entrou na história como colonia de artistas franceses, encabeçado por J. Lebreton (1760-1819), secretário perpétuo da Academia das Belas Artes de Paris, que o rei D. João VI fêz vir, e que compreendia entre outros os pintores Jean-Baptiste Debret (1768-1848)e Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830), o escultor Taunay, irmão do precedente, o arquiteto Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny (1776-1850) e o gravador Charles Simon Pradier (1786-1848), contribuiu segundo Oliveira Lima decididamente para a „educação do gosto nacional“, dando „um verniz“ que faltava ao Rio.


O diplomata explicava assim que o Rio possuia edifícios em estilo greco-romano em voga no Império francês. Houvera no passado arcos de triunfo construidos para as festas dinásticas, bailes alegóricos na Ópera, repletos de reminiscências mitológicas, tudo como em Paris. Os cortejos e mascaradas, em abundância foram reordenados por esses franceses e a população passou a participar de uma atmosfera de maior alegria.


Após treze anos como sede da realeza portuguesa, o Rio de Janeiro passou a ser sede do Império brasileiro. Ali tiveram lugar batismos reais, casamentos de príncipes e funerais imperiais, entradas de tropas vitoriosas vindas do Paraguai e menos triunfais da Cisplatina, ali assistiu-se a revoluções pacíficas, como as de 1831, que levou à abdicação de Dom Pedro I, e aquela de 1889, que levou D. Pedro II ao exílio. O Rio foi palco de mudanças, de reviravoltas na economia do país, como a abolição da escratura em 1888.


A capital do país  comparada com o coração no aparelho circulatório e a febre


No sistema político, para Oliveira Lima, a capital tem para o país as mesmas funções que o coração no aparelho circulatório, onde todo o sangue passa e toda a vida. Isso significava que a vida no Rio não podia deixar de ter movimento para o bem da nação.


A partir de 1849, porém, teve início uma moléstia que atingiu todo o organismo urbano: a febre amarela. Importada de Nova Orléans, a febre levou a violentas epidemias, tornando-se endêmica e trazendo a todo o país uma sombra de tristeza, ao mesmo tempo que criara uma péssima reputação a um clima que tinha sido julgado até então como sendo excelente.


Calculava-se em ca. de 60000 as vítimas do mal, só no Rio. Todo o progresso da cidade se ressentiu. Era como se uma crise súbita e grave tivesse invadido todo um organismo em pleno vigor, colocando em risco o seu desenvolvimento.


Os grandes trabalhos que tinham sido executados ou se executavam na época e que realçavam a paisagem natural em toda a sua beleza, tinham sido resultado do necessário combate a essa cruel inimiga que tinha paralizado a energia do organismo urbano.


Muito se estudara a febre amarela, mas só nos últimos anos chegara-se a poder combatê-la com eficácia, e o Brasil não negligenciou de se interessar às novas teorias científicas e as aplicar.


A ciência médica, em honra ao Brasil, não podia ter maior prova de seu valor que a extinção absoluta dessa doença: em 1907, o número de casos tinha sido apenas de 43 para uma população de quase 900.000 almas. Em Santos, que havia sido o pior antro da febre amarela, esta já tinha desaparecido há anos.


A cidade do Rio de Janeiro, feliz pela sua transformação urbana, seria sempre reconhecida ao grande homem que foi Osvaldo Cruz (1872-1917) por tê-la saneado.


Bacteriologia, epidemiologia e recuperação do Rio na reabilitação de todo o país


A reabilitação de todo o país revelava-se pelo fato de que a sua capital, demonstrando continuamente todas as graças da arte, já não mais precisava esconder os seus atrativos.


Mais de 600 casas, a maior parte da época colonial, já tinham sido demolidas, nada menos do que o bairro do comércio fora posto abaixo para dar lugar a uma das mais belas avenidas do mundo, emoldurada de edifícios suntuosos e que levava de ambos os lados à baia. Uma outra avenida acompanhava as sinuosidades da costa em enorme extensão, permitindo desse modo que se admirasse o contorno de uma roda magnífica em esplêndida decoração de montanhas e de florestas.


Implicações questionáveis da biologia aplicada à regeneração do Rio de Janeiro


A política que levou ao grande empreendimento de saneamento e reconfiguração do Rio de Janeiro surge explicitamente justificada no sentido de Haeckel como biologia aplicada por Oliveira Lima. O peso dado ao combate da febre, do saneamento do Rio, à salubridade em geral, indicam concepções de higiene relacionadas com o pensamento evolucionista.


À medida que Oliveira Lima menciona a população africana ou mestiça no contexto negativo da cidade velha, suja, sem ar e luz, de uma população sem alegria de vida, com festas, música e dança tristes, indica as implicações questionáveis de concepções eugênicas, de higiene em sentido social.


Da argumentação, decorre que o saneamento do Rio antigo e as demolições do „bota abaixo“ corresponderam também a uma „limpeza“ no sentido populacional e cultural.


Não só a apreciação negativa da arquitetura colonial nessa visão histórico a partir do emprego da hipótese biogenética causa estranheza por contrariar hoje a consciência patrimonial. A aplicação de teoria evolutiva à história revela os seus aspectos mais questionáveis do ponto de vista social e mesmo humano. Nem uma palavra encontra-se nessa conferência e em outros textos que decantam o Rio transfigurado em congressos científicos na Europa a respeito das populações afastadas do centro arrazado e reconstruido, despejadas dos cortiços demolidos.


Oliveira Lima oferece nesse texto critérios teóricos para análises de ideários político-culturais que teriam estado à base de um dos mais grandiosos planos de reconfiguração urbana já intentados e de suas consequências.


Ao mesmo tempo, traz à consciência a necessidade de maiores revisões dessas bases conceituais segundo novas perspectivas teórico-culturais do presente e, naturalmente, de maiores diferenciações na análisde do próprio evolucionismo e suas instrumentações políticas posteriores.


A Sur L‘Evolution d‘une Ville du Nouveau-Monde  surge, assim, como relevante para o repensar de fundamentos de empreendimentos do passado e dos mecanismos desencadeados a serviço da procura de solução para os graves problemas sociais e urbanos do presente.


De ciclos de estudos da A.B.E. sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo




Todos os direitos reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A..„ Sur L‘Evolution d‘une Ville du Nouveau-Monde. Ontogenese, filogenese e e a recapitulação biogenética no Rio de Janeiro. Antropologia cultural evolucionista e social-darwinismo.“
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 153/3 (2015:01). http://revista.brasil-europa.eu/153/Evolucionismo-e-Rio.html