Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Antuerpia. A.A.Bispo 2015 copyrightArquivo A.B.E..


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Antuerpia. A.A.Bispo 2015 ©Arquivo A.B.E..


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Antuérpia. Fotos A.A.Bispo 2015 ©Arquivo A.B.E..

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 153/4 (2015:1)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Doc. N°3157





A metamorfose do Rio de Janeiro

pelo Vice-Consul do Brasil em Antuérpia
no Congresso Internacional de Geografia de Genebra
em 1908 - ano do Centenário da Abertura dos Portos


Ciclos de estudos na Bélgica pelos 450 anos do Rio de Janeiro

Com agradecimentos à Biblioteca Real da Bélgica em Bruxelas


 
O Rio de Janeiro que fascina o mundo e que até hoje, décadas após ter deixado de ser capital, ainda surge no Exterior como emblema do Brasil, não é a cidade fundada há 450 anos, mas aquela fundamentalmente reconfigurada no início do século XX.


Essa fisionomia urbana então construida surge como referência mental e visual para o tratamento retroativo do passado da cidade, do qual restam fragmentos, ou para a consideração de transformações por que passou no século XX e dos graves problemas urbanos, sociais e de qualidade de vida do presente, em particular de suas favelas.


Interrupções de continuidade em desenvolvimentos históricos, mudanças radicais através da criação de fatos que determinam perspectivações e mesmo desqualificações do passado e que continuam a ser marcos condicionadores de focalizações do presente constituem questões historiográficas, de urbanismo e arquitetura e dos estudos culturais.


Este complexo de problemas, objeto de ciclo de estudos de abertura dos eventos científico-culturais eurobrasileiros pelos 450 anos o Brasil em Bruxelas e Antuérpia, impõe a questão das causas mentais, intelectuais, ideológicas, filosóficas, estéticas e outras que levaram à criação e realização de projeto de tão grandiosas dimensões e que exigiu tantos meios e sacrifícios que foi a reconfiguração do Rio de Janeiro no início do século XX.


Considerar esses intentos, seus condicionamentos e consequências ultrapassa em significado aquele dos interesses locais e mesmo nacionais, surgindo como de relevância global.


Assim como a reconfiguração de Paris e de outras capitais européias em meados do século XIX, a do Rio de Janeiro no início do XX é um fato ou fenômeno que diz respeito à história da arquitetura e do urbanismo na sua inserção em processos culturais em geral, da humanidade, ao homem na sua ação construtiva.


O Rio de Janeiro vem de encontro na atualidade ao despertar das atenções em meios especializados às relações entre o pensamento científico-natural e a construção de cidades nos séculos XIX e XX.


Esses estudos, concentrando-se em cidades européias, ainda não reconheceram a relevância de primeira ordem do Rio de Janeiro para a análise da influência das Ciências Naturais na reconfiguração de cidades e de suas consequências para a vida do homem e da sociedade, para a história das mentalidades, da cultura e das artes.


Para o prosseguimento das reflexões concernentes às relações entre Cultura e Natureza no programa da A.B.E., em particular também aos estudos de arquitetura e urbanismo de condução cultural na atualidade, surge como pressuposto rever concepções do passado e que tiveram a sua expressão em realidades construidas.


A Metamorfose do Rio no Congresso Internacional de Geografia de Genebra (1908)


Um dos textos que abrem perspectivas para a compreensão das concepções condutoras da reconfiguração do Rio e do papel que exerceu na representação do Brasil no Exterior foi o da Métamorphose de la Capitale du Brésil de M. F. A. Georlette, Vice-Consul do Brasil em Antuérpia e membro da Sociedade de Geografia desse principal porto belga.


Esse texto foi apresentado pelo seu autor como delegado do Govêrno Brasileiro no Congresso Internacional de Geografia de Genebra, realizado de 27 de julho a 6 de agosto de 1908 e publicado pela Missão Brasileira de Propaganda e de Expansão Econômica de Antuérpia sob o título de „Metamorfose de uma cidade do Brasil“ (La Métamorphose d‘une Ville du Brésil, Anvers: Mission Brésilienne de Propagande et d‘Expansion Économique d‘Anvers, s/d).


Já o fato de ter sido apresentado em Congresso Internacional de Geografia revela a convicção de que a remodelação do Rio de Janeiro não era apenas uma questão de melhoramento ou modernização sem maior significado, mas de importância abrangente, testemunho e modêlo de concepções gerais, de relevância para as ciências da terra.


Essa convicção não era somente a particular de um autor, mas a oficial de um delegado do Govêrno. Essa contribuição do Vice-Consul dos Estados Unidos do Brasil na Bélgica deve ser considerada nos seus fundamentos na esfera do pensamento e de ação de Manuel de Oliveira Lima (1867-1928), então Ministro Plenipotenciário do Brasil junto ao rei dos belgas.


A orientação teórica dessa contribuição de M. F. A. Georlette vem de encontro àquelas expostas por M. de Oliveira Lima no Congresso dos Americanistas de Viena, no mesmo ano de 1908, ano da Exposição Mundial no Rio de Janeiro pelo Centenário da Abertura dos Portos.


Enquanto M. de Oliveira Lima revelou expressamente as bases conceituais da visão que apresentou nos termos de evolução, ontogenese e filogenese, o conceito condutor do texto de F. A. Georlette é o de metamorfose. Também este, porém, insere-se no mesmo repertório de vocabulário e de idéias mais avançadas do pensamento científico-natural da época, cujo maior representante era Ernst H. Ph. Haeckel (1834-1919).


A natureza do Rio de Janeiro e a sua imagem a partir do mar


O autor inicia o seu texto salientando que seria pretencioso querer descrever a baía do Rio de Janeiro. Grandes viajantes, como Bougainville, Cook, Dumont d‘Urville e autores como Arago, Saint-Hilaire, La Place, Darwin e Agassiz já haviam decantado a sua incomparável beleza em magníficos termos.


Todos conheceriam as descrições entusiásticas e todos já teriam procurado criar na imaginação uma imagem do panorama pitoresco por êles pintado como a mais grandiosa, „le plus sublime au monde“, „le chef d‘oeuvre de la création“.


F. A. Georlette parte, assim, de critérios visuais na sua explanação, do olhar daqueles que chegavam de fora, a partir do mar, dos panoramas que pintaram em textos, em ilustrações e em obras de arte, assim como da imagem da baia do Rio na imaginação de europeus que recebiam esses retratos.


Não se tratava, na breve comunicação ao Congresso, de oferecer mais uma descrição da grandiosidade da natureza da baia do Rio de Janeiro, e que necessariamente seria muito mais pálida do que as muitas outras. Georlette não a quis descrever, mas, com a finalidade de fazer que os ouvintes melhor compreendessem a natureza e a importância da transformação da cidade que pretendia sumariamente expor, mencionou alguns traços gerais desse panorama sempre tão decantado e que justificavam e tornavam compreensivel a grande metamorfose que se processava.


O autor passa assim, como aqueles vindos de fora, a pintar a entrada de navio na baía, o canal de entrada, o marco de imposante do Pão de Açúcar, descrito como curioso monolito que emerge a pique do abismo, o seu cimo cônico virgem de vegetação a 385 metros de altura, sendo desse lado que se oferecia aos olhos do viajante o panorama da cidade do Rio de Janeiro. Descreve, celebrando, como de um só golpe descortina-se ao viajante grande parte da cidade. Tão logo o transatlântico vence o canal de entrada, resplandecia o profundo golfo do Botafogo, ao redor do qual se estende o bairro mais belo, a região aristocrática por excelência do Rio.


Da natureza da baía à beleza dos bairros aristocráticos da orla - o Botafogo



Georlette salienta na sua explanação que era essa região aristocrática da cidade que chamava imediatamente a atenção com as suas residências elegantes e mansões suntuosas, suas moradias alegres e espaçosas ao longo de vias amplas e bem arborizadas que conduziam à montanha vizinha, ao fundo da paisagem encantadora, ao famoso Corcovado que, de 710 metros de altura lhe emprestava a base escura do quadro e a moldura luxuriante que envolvia todo o quadro.


A seguir, também a perder de vista, mirando-se nas águas límpidas da baia ou subindo os morros, o viajante percebia aglomerações isoladas que, em número superior a 50, parcelavam todo o espaço urbano e o dividiam em diferentes bairros.


O observador vindo de fora percebia assim que por todo o lado a cidade se estendia, imensa, interminável, aconchegando-se às encostas abruptas das montanhas que criavam a moldura. Georlette utiliza-se aqui para a sua descrição a imagem de um circo, de grades ao redor de uma área central, terreiro ou pista e que, no caso, escalando níveis dos mais elevados ou descendo a vales, serpenteando ao longe em muitas sequências de montanhas, era pontilhada pela altivez de gigantescas palmeiras.


Esse Rio de Janeiro constituido por série de palacetes, constituia por si uma cidade especial, bem distinta, de habitações espaçosas, cercadas de jardins ou de parques, de chalets rústicos de terraços floridos. Poucas cidades européias podiam oferecer à vista uma variedade mais bela e mais original.


Não era essa sucessão ininterrupta de bairros elegantes que reclamavam uma transformação ou trabalhos de saneamento. Nenhum deles seria inferior aos melhores de qualquer cidade das mais modernas do Velho Mundo.


A cidade do comércio como objeto da ação transformadora


Após decantar esse Rio aristocrático, à altura do contorno natural que o envolvia, Georlette passa a tratar do centro comercial do Rio, também visto como uma cidade por si, uma cidade do comércio.


A negatividade de sua descrição corresponde à negativa avaliação do passado colonial português que se revela na explanação. Georlette lembra que esse centro comercial remontava à localidade construída pelos portugueses no século XVI ao desembarcarem, e que na época nada mais era do que uma planície baixa junto ao mar, aquosa, quase que completamente inundável. Esse promontório era dominado por uma citadela elevada, o Morro do Castelo que a protegia, e no qual construiu-se uma fortaleza.


Ali se concentraram os imigrantes vindos em época mais recente e até três anos atrás, ou seja 1904/5, essa área, de centenas de hectares, não era mais do que um incrível emaranhado de ruas, ruelas e becos que se cruzavam e entrecruzavam, repletos de casas comerciais, de grandes depósitos de vendas, de escritórios de comércio e da administração pública.


Este era o centro essencialmente e quase que unicamente comercial de uma cidade de quase um milhão de habitantes. Nele se concentrava toda a atividade comercial e o movimento de um porto importante, que recebia anualmente mais de 2500 navios vindos de todos os pontos do globo.


Nesse sentido era uma cidade de negócios, comparável à City de Londres, esta de renome mundial. No caso brasileiro, porém, era também o velho bairro colonial, de construções de arquitetura pesada e de mau gosto.


Crítica à arquitetura portuguesa, à falta de arejamento, luz e higiene


Nessas explanações, manifestam-se os critérios estéticos do autor, que influenciam a sua visão histórica de desenvolvimentos, exprimem a sua visão crítica da cultura, da arquitetura, das artes e do modo de vida dos portugueses. Essa posição na apreciação negativa de expressões culturais e do „gosto“ português, que corresponde também àquelas de M. de Oliveira Lima expostas no Congresso dos Americanistas de Viena no mesmo ano de 1908, (Veja) revelam um condicionamento cultural europeu orientado segundo o modêlo de Paris.


Georlette salienta que as edificações dos portugueses tinham sido feitas para desafiar séculos, eram marcadas pela sua solidez, mas eram mal arejadas, em contraste flagrante com as mais elementares exigências da higiene, da estética e da saúde pública.


As ruas do velho Rio, na explanação do delegado brasileiro aos geógrafos, eram na maior parte ruelas, pois mesmo as maiores não mereciam o nome de ruas: eram tortuosas, tristes, insalubres, lembrando as velhas cidades do Oriente. Com essa menção, Georlette sugere - como Oliveira Lima aos americanistas - uma similaride do velho Rio com as cidades orientais, aquelas também atingidas pelos portugueses em remoto passado, os centros do Império Português do Oriente. A superação desse passado que se manifestava na demolição do antigo centro comercial correspondia assim a uma ocidentalização, à compleição de um processo de mudança de referenciais.


Critérios biológicos: o centro do Rio como foco de infecções do organismo urbano


O autor não se cansa em salientar como o conjunto urbano do velho Rio era muito diferente daquele dos superbos bairros inicialmente mencionados, em particular do Botafogo. O bairro comercial era vizinho ou um prolongamento do bairro portuário, borbulhando de população operária, e era este centro que desvalorizava todos os demais. Constituia um verdadeiro antro de infecção, auto-suficiente, comprometedor de toda a aglomeração urbana, de toda a capital, até mesmo de todo o país com a sua detestável e legendária reputação de insalubridade.


Essa argumentação de Georlette corresponde também àquela exposta por M. de Oliveira Lima, segundo a qual a capital representa o coração do país, órgão de circulação do sangue e de vida no sentido metafórico dos termos.


Na sua linguagem de imagens, o Vice-Consul brasileiro acentua a idéia da cidade como organismo, dirigindo porém a atenção a seu adoecimento a partir de um foco de infecções. A gravidade dessa forma de pensar manifesta-se no fato de que as explicações de Georlette não se limitam à arquitetura e às más condições de vida, mas à população operária e pobre que trabalhava na zona portuária.


Os termos que usa implicam em conotações negativas dessa população, que surgem associadas com o foco infeccioso que punha em risco todo o organismo urbano e, sendo este o coração do país, de todo o Brasil. A demolição desse centro colonial surgia assim como tarefa nacional.


Essa visão de Georlette era aquela da vista do Rio de viajantes vindos pelo mar, a do representante na Europa preocupado antes com a imagem do país e sua reputação. Essa má reputação do Rio - e do Brasil - era infelizmente merecida, como salientou na sua exposição, mas injusta.


Ela não valia de fato nem para o Brasil nem mesmo para a sua capital - como demonstrara na descrição dos belos bairros aristocráticos, em particular do Botafogo - mas sim apenas para esse promontório insalubre, de população excessivamente densa, em solo de várzea, uma população que se desenvolvera em meio à profusão de miasmas deletérios e contaminada por micróbios da febre amarela. Urgia, assim, num ato de anatomia, cortar esse mal, afastando o foco infeccioso que era o centro do Rio colonial - e, em consequência - de sua população.


Regeneração da capital como imperativo para um país que iria suplantar os EUA


O afastamento do foco infeccioso do organismo urbano significava para Georlette a regeneração de sua capital e, a partir dela, do Brasil. Significava recuperar a reputação a que a cidade e o país

faziam jus. A argumentação do Vice-Consul revelava também aqui a sua visão determinada pelo seu posicionamento externo de representação na Europa, associada porém com visões teleológicas do objetivo da nação em competição com os Estados Unidos da América do Norte.


Aos Estados Unidos do Brasil a Providência reservara o mais brilhante futuro. O país aspirava, e com boas razões, ainda antes que terminasse a primeira metade do século XX vir a ser a mais potente nação do mundo. O que os Estados Unidos da América do Norte eram no presente, isso seria o Brasil em algumas décadas.


Para poder alcançar esse futuro glorioso, o país tinha porém o dever imperioso de regenerar de imediato a sua capital.


Os poderes públicos, convencidos dessa necessidade, tinham até mesmo previsto através da Constituição republicana de 1889 o abandono do Rio de Janeiro e a fundação de uma nova capital no interior do país, nos planaltos elevados e salubres da região central. Esse, porém, seria um projeto difícil, com sérios problemas, que nunca tinham tido soluções.


Critérios estéticos nas relações cidade-natureza: a feiúra do Rio antigo


Por esse motivo, tinha-se que regenerar o Rio como capital, um empreendimento, porém, que parecia ilusório pelos altissimos custos que implicava. Tratava-se nada menos do que transformá-lo tão radicalmente quanto possível, não da cidade no seu todo - pois isso seria um crime de lesa-beleza devido a seus bairros aristocráticos - mas do bairro colonial.


Esse velho Rio era a única parte do organismo urbano que dava vergonha, aquele que era um raro espécime de feiúra encravado pela mão humana no âmago do mais belo panorama do mundo. Também nessa expressão - que o autor dizia emprestar de uma escritora - revela-se a predominância de determinados critérios estéticos na transformação do Rio e nas relações entre cultura e natureza. Afastando esse foco de infecções e de feiúra, o Rio ficaria à altura da beleza natural em que se encontrava inserido.


Esforços descomunais de toda a nação para a regeneração da sua capital


O delegado do Brasil em Genebra acentuou na sua memória os esforços hercúleos que se fizeram necessários para a consecução da obra gigantesca que foi a transformação do centro do Rio. Êle lembra que a glória desse feito coube ao Dr. Rodrigues Alves (1848-1919), Presidente que saíra do poder em 1906, auxiliado por três homens de grande talento e de extraordinária energia, o Dr. Lauro Müller (1863-1926) como seu Ministro de Trabalhos Públicos, o Dr. Pereira Passos (1836-1913) como Prefeito do Rio, que seria cognominado de Hausmann brasileiro (Georges-Eugène Barão Haussmann, 1809-1891), e o engenheiro Paulo Frontin (1860-1933), chefe de obras do empreendimento.


O país mal saíra de uma grande crise financeira que o levara quase a um abismo, quando o Presidente Rodrigues Alves, assim que subiu ao poder em 1902, anunciu consentir que se fizessem os mais pesados sacrifícios pecuniários para a transformação da capital no sentido que projetava. Esse projeto não ficou no papel, como em muitos outros casos, mas foi concretizado, o que exigiu pertinácia, energia e espantosos atos de força.


Comparação com o incêndio de Roma por Nero


O conferencista demonstrou- nas suas linhas principais , expondo, de forma tão breve quanto possível, a metamorfose que se operara em menos de quatro anos.


Já não se estava no tempo de Nero, quando um incêndio destruiu em uma semana a cidade que o imperador queria reconstruir. Quase quatro anos fizeram-se necessários para que o enérgico engenheiro Paulo Frontin pudesse realizar as desapropriações - todas tratadas de forma amiga, segundo o Vice-Consul - e para demolir até os fundamentos 641 imóiveis de grande valor locativo, derrubando ruas inteiras e aterrando completamente uma superfícia construida avaliada de 13 hectares, exatamente 131.400 metros quadrados.



Só para a construção da ampla avenida central que, partindo do terceiro lado do promontório, onde se encontram o cais até à praia de Santa Luzia, que defronta a entrada da baia, tornou-se necessário fazer um grande corte de 2000 metros de comprimento e 100 e largura no coração do velho Rio colonial.


Em menos de dois anos, essa avenida central foi completamente terminada. Em 1908, ela já se encontrava totalmente construida de ponta a ponta e ornamentada com construções de estilo, com palácios superbos e monumentos públicos do mais belo efeito arquitetural. Em poucos anos, surgindo do nada, levantara-se todo um cenário que emoldurava essa artéria central.


O Rio podia assim mostrar-se aos estrangeiros que desembarcavam quase que em plena cidade através de uma avenida superba, bem arborizada, edificada com luxo, capaz de suportar qualquer comparação com as mais belas das grandes capitais do mundo. E isso em local onde até há pouco existira um labirinto de ruas tortuosas e sórdidas, sem luz e ar.


Para a construção dessa avenida, Frontin tinha feito que desaparecessem todos os cortiços - cidades apinhadas de gente - todos os trapiches, casas comerciais e entrepostos caindo aos pedaços que entulhavam as inumeráveis ruelas e becos do bairro junto ao mar. Esse veio de vida criado tinha continuidade em direção à cidade industrial ao longe, esta se aglomerando atrás da cidade comercial em direção do fundo constituido pelas montanhas.


A demolição dos cortiços, trapiches e outras casas de comércio na exposição de Georlette significava uma transformação não só urbana mas social - uma vez que eram moradores, trabalhadores e comerciantes que eram afastados do centro, cortado do organismo como foco de infecções.



Porto do Rio nos seus elos com o porto de Antuérpia


Rodrigues Alves queria não só sanear do Rio, e transformá-lo numa nova cidade, arejada, cheia de luz, mas também dotá-lo de um porto à altura das exigências mais imperiosas da navegação moderna.


Georlette lembra na sua memória que todo o movimento marítimo se fazia ainda em recente passado, como nos primeiros tempos da era colonial, ao largo, onde os navios permaneciam ancorados, procedendo-se de lá o transporte à terra de milhões de toneladas de mercadorias as mais diversas, tanto de importação como de exportação.


Tratava-se portanto nas reformas não só de modernização do porto, mas de sua completa reinstalação segundo modêlos e técnicas mais avançados do mundo.


Os trabalhos deviam abranger áreas de grandes extensões, tendo-se de realizar grandes empreendimentos na baia para regularizar as numerosas curvas que ali existiam. Estas formavam diferentes recuos e recortes na costa, antros mal-cheirosos e focos de sujeira e miasmas.


Para a consecução desses trabalhos, dera-se concessão à firma Walker & Co de Londres, uma das mais renomadas pela sua competência técnica da época. Esses concessionários construiam um cais contínuo de 3500 metros de comprimento e mais de 10 a 12 de fundo - dos quais 1465 metros já estavam prontos -, vias de acessos, estradas de ferro e ruas, assim como depósitos com uma largura uniforme de 100 metros. Atrás, entre o cais e a cidade, projetou-.se uma larga avenida marginal às construções, com os armazéns gerais e os escritórios marítimos.


Os trabalhos deviam estar terminados em dois anos, ou seja, em 1910, e previa-se para breve o início da construção de uma nova seção de 2000 metros, do Canal do Mangue à Ponto do Cajú, o que perfazia cinco quilômetros e meio de comprimento de um cais acostável a todo tempo e que se encontrava assim à disposição do comércio marítimo justamente na data tão significativa do Centenário da Abertura dos Portos ao comércio mundial.


Georlette menciona no seu texto que o novo porto do Rio se assemelhava sob todos os aspectos àquele de Antuérpia, o grande porto belga. O porto de Antuérpia tinha servido de modêlo ao do Rio pelo tudo indicava, em particular no uso de compressoras de ar do sistema Hersent. De outras partes do globo tem-se referências de que os empresários ingleses tinham pouca experiência de trabalhos sob pressão de ar, sendo obras portuárias subcomissionadas a Couvreux, Hersent & Coisseau e a trabalhadores de Antuérpia.


Saneamento do Mangue e urbanização de grandes áreas



O Vice-Consul brasileiro emprestou na sua exposição aos geógrafos reunidos em Genebra particular atenção ao canal do Mangue e às grandes obras de urbanização possibilitadas pelo tratamento dos terrenos, obras de saneamento e canalização também realizadas pela concessionária Walker.


Já desde o início de sua exposição deixara entrever os problemas causados pelas áreas aquosas, de várzea no organismo do Rio. A solução desses problemas foi vista na canalização do Mangue, um curso de água pútrida que, atravessando toda a zona industrial, atinha os terrenos lodoso vizinhos à praia e que já estava há muito transformado em grande cloaca infesta.


O curso, de 1400 quilômetros de comprimento e 35 metros de largura, já estava completamente canalizado, correndo agora entre duas muralhas de granito. Construira-se aos lados do canal amplo boulevard que levava aos novos cais, assim como à avenida que os ladeia.


Os terrenos lamacentos, também melhorados e saneados, foram cortados por ruas novas que formaram bairros salubres.


Demolição do Morro do Senado e abertura de ruas


Para poder realizar esses amplos empreendimentos, que conquistaram 20 hectares das águas da baía, os concessionários precisaram draguear um canal de acesso aos cais, de 250 metros de largura e de 9 a 12 metros de profundidade, e que devia permitir a ancoragem a comprido de transatlânticos de grande porte.


Esses trabalhos exigiram a limpeza do fundo da baía, que era um vaso fétido, retirando 3 metros de fundo sujo em média de espessura que, após a desinfecção, foram transportados a 12 milhas da costa e jogados no alto mar. Após essa operação preliminar e necessária, chegou-se à camada de areia que podia ser utilizada nas construções.


Como, porém, essa camada de areia não tinha sido suficiente, determinou-se a demolição do Morro do Senado. Este morro consistia um dos numerosos conglomerados que se elevavam por todo o lado na cidade, emprestando a ela um cunho muito original, mas impedindo por outro lado o arejamento com os ventos puros do mar, capazes de refrescar e renovar o ar quente das zonas internas.


Este Morro do Senado já tinha totalmente desaparecido para o bem da higiene e da saúde pública, dando lugar a oito amplas ruas novas que foram então traçadas e implantadas.


Demolições e construções por parte da Prefeitura do Rio de Janeiro


Com essa exposição, o Vice-Consul brasileiro expunha aos geógrafos o conjunto da obra empreendida e conduzida pelo Govêrno do Brasil quanto à regeneração da capital da nação. Não  podia deixar, porém, de considerar os trabalhos conexos com esse projeto de extraordinárias dimensões, aqueles empreendidos por conta da Municipalidade do Rio. Também a Prefeitura, sob Pereira Passos, o mencionado Hausmann do Rio de Janeiro, dedicara-se com toda a energia à obra de regeneração do organismo urbano visto como infeccionado.


Georlette salientava que o Prefeito ordenou nada menos do que a demolição de mais de 1300 casas, fazendo desaparecer ruas e mesmo bairros inteiros. A cidade parecia ter sido atingida por um cataclisma natural, tais as dimensões dos arrasamentos. Nos espaços ganhos, foram traçadas três avenidas e numerosas ruas novas, bem pavimentadas, sendo doze outras retificadas e alargadas, sendo o porto em construção e a Avenida Central ligadas por amplas artérias de fácil comunicação aos bairros populares e à imensa zona industrial.


Avenida Beira-Mar, praias e jardins


Pereira Passos foi salientado no texto para o Congresso por ter sido aquele que fez construir a então já célebre avenida Beira-Mar que, embocando no seu ponto terminal à Avenida Central, na praia de Santa Luzia, ao pé do morro do Castelo, em parte demolido, seguia o contorno da baia até o fundo do Botafogo.


Essa avenida, com uma extensão total de 5200 metros e uma largura e via carrossável de 38 metros, com alamedas laterais amplas para pedestres e cavaleiros, tinha sido - em muitos cantos onde o espaço permitia - ladeada por belas praças e jardins floridos que duplicavam a sua largura. Da parte do mar, construira-se uma murada com parapeitos, tendo sido regularizadas curvas e recortes do litoral.


Em parte invadida pela maré alta e deixada descoberta com a maré baixa, revelando grandes extensões de areia, surgia à nova luz a série de praias que se estendia de Santa Luzia até o Pão de Açúcar e que eram rodeadas de numerosos bairros. A Avenida Beira-Mar já se encontrava inteiramente implantada e desenhada harmoniosamente com os seus jardins artísticamente elaborados.


Esses jardins configurados em desenhos florais da Avenida foram apresentados em fotografia apresentada aos geógrafos e publicada no texto de Georlette. A sua fotografia, ainda que tirada do mesmo ponto, era outra daquela de Marc Ferrez (1843-1923) e que seria divulgada na Europa de língua alemã atraves da obra „Brasil: um país do futuro“, de Heinrich Schüler. (Veja)



Saneamento, higiene, urbanismo e eugenia social


Esses trabalhos gigantescos, tanto do Govêrno Federal como da Prefeitura, realizaram-se concomitantemente com uma quantidade de outras transformações e melhoramentos, demasiadamente longos para serem tratados no Congresso. Entre êles, o Vice-Consul mencionou de passagem a construção, segundo as regras da higiene mais rigorosa, de um sistema de canalização subterrânea para os esgotos, a pavimentação de ruas, a edificação de monumentos públicos de arquitetura moderna, de teatros e palácios.


Lembrou que toda a cidade foi provida de jardins públicos, de praças e de largos à sombra de árvores. Em diversos locais construiram-se mercados cobertos e alinharam-se casas para trabalhadores. Estas, diferentemente daquelas do tenebroso Rio antigo, eram risonhas e confortaveis.


Na exposição de Georlette, o Rio malsano, triste e soturno dera lugar assim a uma cidade salubre, alegre, resplandescente de ar e de luz. O Vice-Consul não tinha salientado os trabalhos de higiene que preceram e acompanharam a transformação urbana da capital do Brasil, pois estes já tinham sido expostos em detalhes em recente congresso internacional de higiene levado a efeito em Berlin pelo próprio Dr. Oswaldo Cruz (1872-1917) como delegado do Govêrno brasileiro e que lhe valera o prêmio da Imperatriz da Alemanha.


O Brasil gastara no mínimo 400 milhões de francos nessa obra grandiosa de saneamento e transformação de sua capital. Ela foi regenerada, metamorfoseada, tornando-se digna do quadro maravilhoso natural que a rodeava. Deu-lhe , de mais, um porto de primeira categoria que, assim que fosse terminado, teria a sua importância duplicada, colocando-o entre os dez primeiros do mundo. E sobretudo, a transformação do Rio fizera desaparecer a febre amarela, de sinistra memória.


Metamorfose como conceito condutor


A comunicação do Brasil ao Congresso Internacional de Geografia de Genebra traz, no exemplo do Rio de Janeiro, o conceito de metamorfose à discussão. Esse termo indica a proximidade do edifício conceitual do autor - e das instâncias que representava - ao debate botânico-cultural da época, de grande atualidade. O conceito, em princípio entendido quanto à adaptação evolutiva de plantas ao respectivo meio-ambiente, estendia-se em analogia à cidade ou antes à sociedade, compreendida como entidade viva, agora individuada.


Como manifestou na sua explanação, na qual o novo Rio regenerado servia ao objetivo último de tornar os Estados Unidos do Brasil primeira potência mundial em substituição aos Estados Unidos da América do Norte, a analogia com a botânica também incluia a necessária adaptação evolutiva às condições ambientais a fins de sobrevivência do mais forte. Tratava-se, nesse pensamento em analogias, de transformar órgãos de acordo com as novas exigências e necessidades, possibilitando a conquista de novos espaços vitais. Também no Rio deveria assim ocorrer uma transformação evolutiva de suas raízes junto ao mar, de seu caule - as grandes avenidas - e de suas folhas ou ramagens dos bairros florescentes.


O termo metamorfose empregado pelo Vice-Consul do Brasil indica a recepção de antiga tradição de pensamento, em particular alemã, tornada atual à época sobretudo devido à difusão popular do pensamento evolucionista e que não deixou de ser acompanhado por grande polêmica.


Se já J.W. von Goethe (1749-1832) marcara o conceito de metamorfose, este adquiria nova relevância e significado no pensamento de Ernst Haeckel (1834-1919), que escrevera já há décadas sobre Princípios da Morfologia Geral dos Organismos (Prinzipien der generellen Morphologie der Organismen, 1866) e que levava à teoria da evolução a dimensões filosóficas com o Monismo. Este, como visão do mundo, na sua popularização, levava a analogias ao mesmo tempo instigantes e questionáveis, e no caso, a realidades construidas.


De ciclos de estudos da A.B.E. sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo




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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A..„ A metamorfose do Rio de Janeiro pelo Vice-Consul do Brasil em Antuérpia no Congresso Internacional de Geografia de Genebra no Centenário da Abertura dos Portos.“
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 153/4 (2015:61). http://revista.brasil-europa.eu/153/Metamorfose-do-Rio.html