Alemanha, Brasil e Madagáscar nos anos 30
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos atuais: Nosy Be e Tamatave
A.A.Bispo 2015 ©Arquivo A.B.E.

 

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Alemanha, Brasil e Madagáscar nos anos 30
Orquídeas, cidades e ferrovias
relatos de viagens alemães
em estudos culturais do Colonialismo de entre-Guerras


Imigração, Estudos Coloniais e Colonialismo 2015
pelos 450 anos do Rio de Janeiro

Agradecimentos ao Arquivo Nacional das Seychelles e aos cooperadores em Maurício, La Réunion e Madagáscar

 

Em ano no qual o Rio de Janeiro se encontra no centro das atenções pela passagem dos seus 450 anos, o fato de ser uma cidade portuária não pode ser esquecido.


A remodelação do seu porto foi estreitamente relacionada com a reconfiguração de seu centro, criando a fisionomia que marcou através de décadas a imagem da antiga capital do Brasil e, através dela, do país. 



O melhoramento do porto relacionou-se estreitamente com projetos urbanísticos e arquitetônicos, com vias de transporte e com a técnica em geral. As concepções de cunho científico-natural evolucionista de cultura e civilização que guiaram os projetos urbanos, correspondiam àquelas de progresso da técnica, da indústria e da economia. (Veja)


Desenvolvimentos técnicos, industriais ou de transportes pertencem à história cultural, colocam porém problemas e exigem perspectivas que sob muitos aspectos diferem daquelas que guiam em geral estudos e reflexões voltadas à cultura.


O fato de tratar-se aqui sobretudo de importações de máquinas, aparelhagens, veículos e procedimentos da tecnologia e engenharia, também exportados para outros países, dirige a atenção de forma muito mais evidente a paralelos e desenvolvimentos comuns em diferentes regiões, o que exige a condução de estudos em dimensões globais e à consideração de países e contextos que, sob uma perspectiva histórico-cultural convencional poucas relações teriam entre si.


O desenvolvimento das vias de penetração no Brasil constituiram assuntos que mereceram particular atenção na promoção da imagem do país pela  Mission Brésilienne d‘Expansion Economique nos anos anteriores à Primeira Guerra, marcados que foram pela projeção da capital do Brasil então reconfigurada. (Veja)


Esse pêso dado a vias de transportes e comunicações explicava-se pelo interesse na promoção de uma imagem do país favorável à intensificação de relações econômicas, comerciais e da imigração, corrigindo por vezes imagens existentes.


Relatos de viagens e textos informativos que consideram vias de comércio e comunicação representam hoje fontes históricas de importância para os estudos culturais. Oferecem não apenas dados históricos, como deixam também perceber pressupostos, intenções e contextos políticos em que se inserem. Vêm de encontro à atenção dada a vias de comunicação em estudos culturais marcados por uma atenção privilegiada a processos e processualidades que vem sendo desenvolvidos desde a década de 60 do século XX .(Veja)


Remontam a iniciativas originadas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e do movimento de renovação dos estudos culturais que foi constituído em sociedade em 1968. Relações entre estudos de processos urbanos, de vias de penetração e comunicação e da vida cultural e musical tiveram a sua expressão em pesquisas realizadas em diferentes regiões do Brasil (Veja), em conferências e na formação de professores de música e Educação Artística. (Veja)


Interesse por desenvolvimentos técnicos e urbanos na Alemanha de entre-Guerras


Não apenas os anos anteriores à primeira Guerra como também aqueles de entre-Guerras foram marcados por um particular interesse na Europa por meios de transportes, vias e penetrações em regiões pouco conhecidas e exploradas de regiões extra-européias.


Também nessa época relatos e textos informativos tiveram em geral interesses pragmáticos, econômicos, de promoção de relações comerciais e de projetos de colonização. Devem ser lidos, porém, de forma muito mais atenta quanto a ideologias e Weltanschauungen, em particular na considerável literatura alemã de divulgação de regiões, países e culturas, salientando-se aqui o periódico Durch alle Welt (Berlin-Schöneberg: Peter Oestergaard).


Vários dessas descrições de viagens referentes ao Brasil foram considerados em ciclos de estudos promovidos pela A.B.E., como relatados em números anteriores desta revista. (Veja)


Nelas, viagens, transportes navais e aéreos, vias férreas e rodovias são frequentemente tematizados. Basta lembrar as descrições de jornalista e escritor alemão que tomou parte das primeiras viagens de Zeppelin ao Rio de Janeiro, e que, acompanhado por fotógrafos e apoiado por membros do partido nacionalsocialista, publicou matérias profusamente ilustradas com imagens que representam, hoje, valiosa documentação visual. (Veja)


Também as ferrovias que levavam a regiões que passavam a ser abertas e colonizadas mereceram particular consideração, podendo-se citar aqui a ligação férrea do litoral ao Mato Grosso, em particular a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. (Veja)


O interesse por ferrovias e estradas no Exterior correspondia aqui à política na própria Alemanha, como o provam textos dedicados a meios e vias de transportes publicados no Durch alle Welt.


Como países de todos os continentes foram considerados nesses relatos de viagens marcados pelo acentuado interesse em vias de comunicação, penetrações, desenvolvimentos urbanos, colonizações e empreendimentos, essas fontes fornecem dados e imagens relevantes para o estudo comparado de situações e de processos globais em diferentes contextos.


Em muitos casos, essas informações possibilitam até mesmo reconstruir realidades passadas, vias e meios de transportes e instalações técnicas e industriais já desaparecidos e que se mostram como de importância para a compreensão de desenvolvimentos urbanos, populacionais, de rêdes sociais e culturais e para a memória de regiões.


Com a crescente consciência pela história técnica e industrial, essas fontes de uma literatura de divulgação popular, hoje de difícil acesso, adquirem particular interesse histórico. A cooperação internacional pode favorecer o levantamento dessas fontes.


Museologia técnica, industrial e de vias de transportes e estudos de processos culturais


Não só no Brasil, mas em muitos outros países desapareceram linhas férreas que, no passado, acompanharam a abertura de regiões, a formação de cidades e determinaram rêdes. Esse desaparecimento dificulta o reconhecimento e a análise de desenvolvimentos, configurações sociais e culturais do passado e assim a história regional e local, uma vez que novas vias criam em muitos casos diferentes estruturas nos elos entre núcleos populacionais e canais de relações. A necessidade sentida de um maior conhecimento dessas vias do passado é assim mais do que expressão de nostalgia.


Nos museus de técnica e indústria, em particular também de história ferroviária que em grande número desenvolvem trabalhos em países europeus, sobretudo na Inglaterra e na Alemanha, muitas vezes instalados em antigas fábricas, depósitos, silos e antigas estações, torna-se evidente as dimensões globais da pesquisa e das atividades museológicas.


Num dos maiores centros de história industrial da Europa, Manchester, museus como das Museum of Science & Industry, o People‘s History Museum e o Museum of Transport, visitados por pesquisadores da A.B.E. em  2011, trazem à consciência que a história da técnica e da indústria não é só de interesse local, regional e nacional, mas internacional e de fundamental significado para os Cultural Studies.


Máquinas e veículos exportados para diferentes países no passado, levando a regiões extra-européias não só produtos, mas também resultados de invenções, desenvolvimentos, engenheiros e trabalhadores, foram importantes fatores de mundialização. (Veja)


Essas dimensões entre contextos locais e globais são repetidamente consideradas no museu industrial e no museu ferroviário próximos ao centro de estudos da A.B.E. na Alemanha, respectivamente em Engelskirchen e em Gummersbach, uma vez que apresentam também máquinas e locomotivas que sobreviveram em afastadas regiões e que são alvo de levantamentos, pesquisas, transportes e restaurações.


Nos países onde no passado foram importados maquinários, veículos e instaladas fábricas e vias, relitos da história técnica e industrial possuem também não apenas interesse para a reconstrução de desenvolvimentos regionais, de cidades, rêdes e da história do trabalho, mas também das relações com o Exterior nos seus diferentes aspectos e implicações. Isso vale sobretudo para países que foram submetidos a regime colonial de potências européias a partir do século XIX, o século da industrialização e do desenvolvimento da técnica dos transportes, em particular também das ferrovias. (Veja)


Como aparelhagem técnica e veículos de firmas européias foram exportados para diferentes regiões do mundo, oferecem hoje a possibilidade de reconhecimento de desenvolvimentos comuns ou paralelos. Como levaram a configurações similares da paisagem e da vida em diferentes países, em muitos casos distantes geográficamente, fazem com que o observador atual se confronte com situações similares às do seu país em distantes regiões.  A história da técnica, indústria e transportes surge assim como de importância para estudos de relações e desenvolvimentos globais, que não apenas exigem a consideração de diferenças, mas também de elos e traços comuns.


A ferrovia da antiga usina de Nosy Be


Nos estudos euro-brasileiros conduzidos no Madagáscar em 2015 (Veja), o significado da história  técnica, industrial e de transportes para encontros e diálogos culturais no presente evidenciou-se na ilha de Nosy Be.


Até há pouco anos, a destilaria de rum e os campos de canas de açúcar cortados pela antiga ferrovia para o transporte de canas e dos produtos constituia a principal fonte econômica e de trabalho da ilha e um de seus atrativos para visitantes, sendo considerada em publicações sobre o país e conhecida no Exterior. Crises várias levaram a que, - apesar de investimentos chineses em 2007 -, a produção de açúcar e de rum terminasse, hoje já não mais existindo. A população, paupérrima, passou a utilizar-se de materiais das instalações e dos veículos para fins particulares.


Restos da ferrovia e ruínas da usina, cobertos pela vegetação, continuam porém a ser mostrados a visitantes como relitos de um passado recente e que marcou a vida de trabalho, expressões culturais e a identidade da ilha, surgindo como ponto de partida para a discussão de questões políticas e sociais.


A usina foi uma das empresas que possibilitou com o seu apoio o principal festival de música da região, o Donia. (Veja) Referências nostálgicas de melhores condições de vida à época do regime colonial francês surpreendem aquele que se dedique a estudos da história colonial, uma vez que contrariam posições críticas quanto ao colonialismo e que ali surgem como indiferenciadas.


A estação central de Tamatave como novo centro sócio-cultural e fontes históricas



No Madagáscar - como em vários outros países - ferrovias e instalações técnicas e industriais do passado não constituem apenas tema de interesse histórico, de reconstrução de desenvolvimentos, cuja consideração decorre sob a influência de sentimentos de nostalgia. Há projetos de recuperação e desenvolvimento de transportes de trilhos, por exemplo de reimplantação de trens suburbanos na capital através de apoios e empresas européias, cuja realização é dificultada pela difícil situação econômica e política do país.


Um símbolo dessas intenções ou mesmo de uma nova fase que se abre à revitalização de antigas instalações e vias é a estação de Tamatave, porto da capital do Madagáscar. Dentre os edifícios dessa importante cidade portuária, em cujas redondezas se situa a principal rafinaria do país - SOLIMA (Solitany Malgasy),  que conta também com a atuação de brasileiros, a estação salienta-se pelas suas renovadas instalações. Situada em zona central da cidade, caracterizada por amplas vias e praças, atrás do principal edifício da administração, a estação revela a intenção de vir a ser novo centro social e cultural da cidade com o seu restaurante de alto nível para as condições locais.


Essa nova fase ganha em sentidos com a tomada de consciência do significado passado da estação e dessa ferrovia de ligação do grande porto com a capital do país.


Uma importante fonte para essa história, desconhecida no Madagáscar, pôde ser levantada no âmbito dos estudos euro-brasileiros de textos alemães dos anos 30, em particular daqueles publicados na revista Durch alle Welt. Logo após os textos que ofereceram relatos de viagens pelo Brasil e outros países americanos (Siegfried Schütze, „Auf dem Stahlroß durch Südamerika, 2: Brasilien“, Durch alle Welt 19, 1934, 13 ss.)(Veja) o leitor se depara com um pormenorizado relato de viagem no Madagáscar.


Com o subtítulo „Histórias de viagem de um país desconhecido“, esse periódico publicou, em 1935, um artigo em série de um pesquisador que percorreu o Madagáscar com o intuito de coletar orquídeas para possível aclimatação e cultivo na Alemanha (L. Fritz, „Auf Orchideenjagd in Madagaskar: Reisegeschichten aus unbekanntem Land“, Durch Alle Welt 20, 21, 22, 23, 24, 25). Com as suas muitas ilustrações (Kühnemann), esse texto oferece um dos mais amplos documentários fotográficos de interesse histórico de Madagáscar.


Porto de Tamatave. remodelação urbana e ligação férrea com Antananarive



Como muitos relatos de viagem de europeus ao Rio de Janeiro, o de L. Fritz sobre o Madagáscar inicia com a descrição entusiástica da baia de Tamatave e no seu então novo porto. O motivo condutor do seu relato é o da percepção de uma „voz do Madagáscar“, a alma e um país distante, desconhecido e misterioso.



O viajante salienta que esse maior porto do Madagáscar era uma entrada maravilhosa da ilha, prometendo mais do que Madagáscar jamais poderia oferecer.


Firmas alemães tinham reconstruído a cidade após o último ciclone à conta das reparações de guerra. Essa tormenta foi tão violenta que destruiu em poucas horas toda a cidade, casas, cabanas e árvores. Com a participação alemã, Tamatave foi reconstruída com ruas amplas e alamedas, com casas sólidas cercadas por jardins, resplandecente no branco de suas casas. O que tinha ocorrido com a reforma do porto e a demolição do antigo Rio antes da primeira Guerra, ocorrera agora no porto da capital do Madagáscar.


A viagem de trem dessa cidade portuária a Antananarive correspondia à primeira impressão que Madagáscar oferecia àquele que chegava. Como o autor salienta, se não fosse o calor, tudo podia lembrar a Europa. A estação de Tamatave era exatamente como as da Europa, apenas que ali havia mais barulho, ruídos e tinidos por todo lado, para além da profusão de frutas exotícas que ali se vendiam e, como as fotografias demonstram, a viagem de malgaches nas varandas dos vagões, envolvidos no tradicional manto branco (lamba).


É a partir da viagem do trem que o autor - como também aqueles que estiveram no Brasil - transmitem as primeiras impressões do país ao leitor europeu. L. Fritz descreve a transformação da paisagem, primeiramente aquela fascinantemente tropical, cuja rêde de canais de águas azuis e os grandes tufos de vegetação litorânea em meio a jardins de flores criavam uma quadro idílico de serenidade. O urbano e o rural se interceptavam, casas sólidas e bem cuidadas se misturavam com cabanas, povoados se sucediam a povoados, campos de arroz a lagunas. Após percorrer
essa baixada, o trem começava a subir em curvas e através de túneis as colinas e montanhas, o verde tropical forte dos baixos de Tamatave desapareciam, dando lugar a uma vasta e triste estepe, queimada pelo sol e pelas queimadas. No horizonte, o grande plano era fechado por escuras montanhas, o que dava receios ao viajante.


A vivência da paisagem descrita - que tanto lembra aquela de europeus no Brasil que subiam por trem do Rio de Janeiro ao Vale do Paraíba, não era apenas derivada das impressões visuais, mas marcada pelo calor, pela pressão do ar, o abafamento da atmosfera e as chuvas torrenciais.


Não só o Rio - Antananarive decantada como „cidade de sonhos“


Não se conhece descrição de Antananarive que suplante aquelas do viajante alemão em qualificações positivas quanto à sua posição geográfica e características urbanas.


A cidade, construída em amplos terraços sobre rochedos vermelhos, é comparada poeticamente como um sinal de chamas num quadro verde, tendo aos pés os tons suaves dos campos de arroz, cheia de vida e colorido nas suas ruas e ladeiras que levavam dos baixos ao colosso amuralhado do antigo palácio real com as suas quatro torres e quase sempre envolvido em névoas.


Como o autor salienta, a posição da cidade a 1400 metros de altitude, com a sua atmosfera clara e salubridade, dava testemunho da visão dos seus fundadores e construtores, os dominadores do país Imerina.


Apenas o antigo palácio real mereceu considerações antes negativas do viajante quanto às consequências do colonialismo. O edifício trazia à memória a última rainha, Ranavalona III, que terminou a vida no exílio e que teria assim sofrido o destino de soberanos de terras distantes que tentaram namorar a Europa e depois, sentindo as consequências, procuraram abandoná-la.


Cunho literário de relatos e estudos urbanísticos de orientação cultural


O pesquisador de urbanismo que se baseie em textos de viajantes europeus como L. Fritz deve considerar - como também naqueles referentes ao Brasil - o cunho literário das descrições. As impressões de edifícios e ruas misturam-se com percepções da vida dos espaços, fazendo dessas fontes sobretudo relevantes para estudos culturais ou de arquitetura e urbanismo de orientação cultural. A descrição de Antanarive vivenciada nas primeiras horas matinais do Durch alle Welt surge como exemplar nas suas observações da vida nas ruas e ladeiras da cidade.


Como o texto de L. Fritz demonstra, essas descrições caracterizam-se em geral por interações de percepções sensoriais, metáforas e associações múltiplas. Apesar do cedo do dia, em ambos os lados da rua já circulava grande número de habitantes, descrevendo o autor um suave puxar e empurrar, aglomerações em frente às vitrinas, risos e conversas de um lado para outro da cidade. O branco dos mantos usados por homens e mulheres, alguns deles vultos imponentes, criava para o observador um quadro surpreendente que lembrava a Antiguidade.  A toga - Lamba - no seu jogo de dobras sobre os ombros tinha algo de antigo, acentuando as faces que iam de cor de marfim até o bronze mais profundo, que transmitiam uma expressão ao mesmo tempo suave, inteligente e de orgulho.


Subindo as ladeiras em direção ao castelo, o autor descreve como as ruas, de terraço a terraço, em três planos, subiam ladeadas por residências em estilo de bungalow ou com telhados pontiagudos, com flores nos muros e varnadas, cujo odor misturava-se com o ar quente do trópicos.


Do muro vermelho, alto, nas proximidades do castelo, descortinava-se a ampla planicie com as áreas demarcadas de arroz e centenas de povoados; na clara atmosfera, podia-se observar nitidamente cada pormenor e ondulações. A paisagem era marcada pela grande área de corrida de cavalos.


Imerso nesse berço de veludo verde, distinguia-se o bairro de mansões brancas, que se diluia por fim na rede de ruas cheias de vida, ruidosas, o que soava como uma distante snfonia que não perturbava a calma da hora do almoço à sombra da magnificéncia real de tempos passados. 



O burgo dos principes dos Hova, de antiga estirpe, tornava presente a história do Madagáscar, uma vez que o edifício monumental envolvia ainda a modesta cabana dos primórdios. Ali se cultivava a memória do primeiro soberano que empreendeu a unificação dos grupos populacionais da ilha, o antigo rei Andrianimponimerina.


A modéstia da cabana trazia à lembrança as normas que negatizavam e mesmo proibiam desejos de enriquecimento que marcaram a cultura malgache no passado e que se opunham à orientação às riquezas materiais dos europeus. A mudança dessas normas com a ocidentalização teriam sido responsáveis por desenvolvimentos que levaram por fim ao estabelecimento do regime colonial.


A sua filha, Rasoherina I, teria representado já uma nova fase do desenvolvimento histórico-político do país, e essa transformação surgia demonstrada já no fato de ter-se transferido da modesta cabana para uma casa grande na cidade baixa, levantando um grande edifício de pedras ao redor da memorável cabana Hova. Como que em vingança dos ancestrais, essa procura de auto-valorização e de demonstração de riqueza material teria levado por fim à derrocada, à ocupação colonial, e o castelo passara a ser apenas um museu, cujo mais importante objeto era o cetro real.



Situações e transformações no interior do Madagáscar


Do ponto de vista etnológico e dos estudos de interações entre o urbano da capital e o rural do interior, a continuidade do relato de L. Fritz em outras regiões do Madagáscar ganha maior significado. Auxiliado por um estudante de medicina da Escola Superior de Antanarive que retornava à sua terra natal, Anthandroy, o viajante alemão pôde percorrer regiões de florestas do sul do país à procura de orquídeas que pudessem ser aclimatadas e cultivadas na Alemanha. O seu guia conhecia essas florestas das terra Besileo, entre os Anaivondros, onde se podiam encontrar as espécimes procuradas.


Retornando ao tema das vias e transportes, L. Fritz menciona que embora já se tinham feito trabalhos em estradas de rodagem no Madagáscar, as viagens pelo país ainda eram feitas da forma tradicional em cadeirinhas levadas por carregadores, as filanzana.


A viagem, iniciada de ônibus até Antsirabé no sul da capital, passou a ser feita por este meio de transporte. A linguagem do autor lembra em parte aquelas de publicações brasileiras do passado,  quando salienta impressões telúricas, um mundo que parecia estar imbuído em ânsias, tanto de decair como de recriar. Essa imagem é transmitida por meio de expressões literárias de múltiplas conotações, que salientam contrastes entre crateras e fogo de tempos primitivos e colinas pontilhadas de termitas que se estendiam ao horizonte e o verde de tufos de árvores, bananeiras e árvores-pão nos vales. A terra crua em todas as cores trazia a dor de saber que ali havia existido uma extraordinária flora e fauna, ali teria talvez vivido o lendário pássaro Rock, do qual um grande ovo se encontrava conservado no museu da capital.


Assim como também em relatos referentes ao Brasil, para o viajante europeu surgia no Madagáscar como um oáse encontrar uma cidade balneária, Antsirabé. Tratava-se de uma localidade com águas termais, visitada por doentes, também do Exterior, em particular da África do Sul. Com as suas ruas limpas, casas brancas, parques, jardins e flores, com o seu grande hotel e seu balneário, o europeu podia recuperar-se em meio familiar e ganhar novas forças para o procedimento da viagem.


Várias são as referências relativas á música no relato, ao canto de jovens ou ao canto dos carregadores da filanzana, de diferentes etnias.


A floresta tropical descrita na sua pujança e os espíritos na cultura do Madagáscar


É a partir dessa etapa de sua viagem que o autor passa a transmitir a seus leitores a pujança da floresta tropical do Madagáscar e dos povos que nela habitavam. Do ponto de vista etnológico e musical, adquire particular interesse o relato de um enterro que presenciou num povoado onde ficou abrigado.

Descreve como os presentes entoavam lamentos ao carregar o cadáver entre duas tábuas e envolto em folhas de palmeira, de como, parando em frente à cabana, bateram na porta, perguntando ao morto se nada tinham esquecido para a sua cerimônia, se lhe tinham agradado os cantos e as lágrias, se estaria satisfeito.

Com essa descrição, o autor salienta o significado da morte, dos enterramentos e do culto a ancestrais no Madagáscar. Partiam da idéia de que a alma do morto não queria abandonar a sua casa, e isso se manifestava também no ato de transporte do cadáver ao local de enterramento. Singularmente lembrando também práticas constatadas no Brasil, o autor descreve como os carregadores se locomoviam dando três passos para a frente e dois para trás, fazendo com que a alma fosse aos poucos atraída da casa ao túmulo. Paradoxalmente para o europeu, porém, nada se percebia de tristeza, o que se manifestava na música.


Nesse contexto, o autor oferece uma descrição de prática instrumental de significado para os estudos musicológicos de orientação cultural: o seu guia, embora marcado pela cultura européia como estudante de escola superior da capital, não resistiu ao chamamento da cultura tradicional de sua formação, participando na execução do instrumento. Com um pedaço de metal passou a tocar uma peça de bambú apoiada em dois garfos, conduzindo o canto de uma fila de meninas que também percutiam o bambú.




Na floresta, a atenção do viajante pôde por fim concentrar-se no objetivo de sua ida ao Madagáscar, ou seja, o da colheita de orquídeas para o seu cultivo na Alemanha. Essa atividade apenas podia ser feita com a ajuda dos malgaches, que conheciam as plantas e os locais onde viviam, assim como os seus sentidos, algumas delas consideradas como „fady“ e envoltas em observâncias e proibições. As investigações botânicas relacionavam-se assim estreitamente com concepções e práticas culturais.


De florestas a terras arenosas e inundações - o culto aos ancestrais no Madagáscar


Segundo o viajante alemão, em nenhum outro lugar da terra a vegetação mudaria tão rapidamente como no Madagáscar. De uma paisagem tropical com densas florestas passava-se a charcos pantanosos e terrenos arenosos como em Falaise. Os rios que desciam das florestas, ao cortarem essas terras arenosas, transformavam-se em grandes correntes à época das chuvas, fazendo com que Falaise fosse comparada pelos malgaches com o purgatório.


Essa menção surge como palavra-chave para a descrição de mais um aspecto fundamental para a cultura tradicional malgache: o do culto aos ancestrais.


Descrevendo a sua chegada ao povoado Isangana, o autor menciona o temor a maus espíritos que justificavam práticas, no caso o do sacrifício de um galo vermelho em honra de Andriamanitras acompanhados de cantos e música instrumental, entre elas de tambores e de instrumentos dedilhados, provavelmente o valiha ou maravane. (Veja)


Essas práticas incluiam danças que encenavam lutas, como uma representada por dois guerreiros armados com lança e escudo, acompanhadas por instrumentos de cordas de arames dedilhados com bojos feitos de cabaça.




Relato alemão como documento do passado colonial francês no interior da ilha


Na sua descrição da estadia em Ivongo, o viajante alemão oferece subsídios para a história da vida colonial sob o regime francês no interior do país. Relata o papel dos destacamentos militares e fortificações nas pequenas cidades - de tradição secular como o Fort Dauphin (Veja) - salientando o principal problema que haveria na administração colonial: o da centralização na capital, o do intuito de fazer da capital um centro representativo e, a partir dela, tal como coração do país, promover o progresso o todo.


Essa concepção - que singularmente correspondia àquela que também justificou o extraordinário empenho na reconfiguração da capital do Brasil - levava porém à pouca consideração de regiões provinciais.


O processo de implantação do regime colonial, já não de início recente, encontrava sobretudo no sul do país obstáculos com a resistência passiva da população. Em particular os Tanalas, para evitar recrutamentos ou levantamentos de impostos, desapareciam de seus povoados quando sabiam da aproximação de autoridades coloniais. Afirmavam que os europeus, que os obrigavam a trabalhar, eram nesse sentido piores do que à época em que os Hovas tinham governado o país. Essa mentalidade, segundo o autor, apenas teria mudado com o auxílio das missões religiosas estrangeiras.


Como já afirmado pelo autor alemão em relação à reconfiguração urbana de Tamatave, os trabalhos de colonização realizados pelos franceses teriam sido em grande parte realizados à conta da reparação alemã à França impostas pelo Congresso de Versailles após a derrota da Primeira Guerra.


Com esses recursos, teria sido possível edificar escolas superiores para os jovens malgaches, fomentando, assim, a difusão da cultura ocidental. Esses recursos teriam possibilitado o fomento de indústrias locais como da seda, do couro, a aquisição de máquinas, assim como o cultivo de plantas introduzidas como a baunilha, o gengibre, a mandioca, a banana e a laranja, o café e o chá, assim como o melhoramento dos limões nativos. A fabricação de rum pôde ser desenvolvida.


Como esse autor dos anos trinta da Alemanha por fim salienta, tudo demonstrava que o Madagáscar estaria no início de um processo que o tornaria terra de futuro para a Europa. Passados 80 anos de seu relato, não se pode confirmar essas suas previsões.




De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo





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Bispo, A.A.(Ed.). „Alemanha, Brasil e Madagáscar nos anos 30. Orquídeas, cidades e ferrovias
relatos de viagens alemães em estudos culturais do Colonialismo de entre-Guerras“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 154/16 (2015:02).http://revista.brasil-europa.eu/154/Alemanha_Brasil_Madagascar.html


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