Carl F.P. von Martius na Amazônia
L. F. Kaltner

Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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154/20 (2015:2)


Carl F. P. von Martius na Amazônia:
análise de relatos



Prof. Dr. Leonardo F. Kaltner (UFF)

 
Jardim Botanico RJ. L.F. Kaltner


Busto de Carl Fredrich von Martius. Jardim Botânico. Rio de Janeiro, 2015.


  1. 1.Introdução

No presente artigo, investigamos o relato do naturalista alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), na obra Flora Brasiliensis, sobre sua viagem à Amazônia no contexto da Missão Austro-Alemã que percorreu o território brasileiro entre os anos de 1817 e 1820. A expedição científica, que havia sido financiada por Maximiniano I, rei da Baviera, foi um dos grandes acontecimentos que marcaram o período diretamente anterior à Independência do Brasil em 1822. Analisaremos e traduziremos o relato de Carl von Martius, cujo título é Silva in Ripa Fluvii Amazonum, Caa – Ygapo Incolis Dicta (Mata nas margens do Rio das Amazonas, chamada de Caa-Ygapó pelos indígenas) e acompanha a primeira Tabula Physiognomica da obra Flora Brasiliensis.





Tabula Physiognomica I, Flora Brasiliensis. Apud MARTIUS, 1996, p. 24.



Nossa releitura e tradução do excerto selecionado da narrativa de Carl von Martius, à luz da teoria contemporânea da Linguística Textual, consiste notadamente em investigação sobre as cadeias referenciais do texto e a sua progressão referencial, como estratégias discursivas de construção de sentido textual, para a descrição da natureza brasileira. Nesse sentido, cumpre salientar que nossa análise textual, nesse artigo, embasa-se no uso de pronomes relativos, com função anafórica e catafórica, e o uso de expressões nominais definidas e indefinidas, que formam uma das estratégias discursivas do texto que dialoga com uma imagem: a tábua fisionômica, que acompanha a edição da Flora Brasiliensis, como veremos a seguir.


A obra Flora Brasiliensis foi publicada e editada entre os anos de 1840 e de 1906, possuindo quinze volumes e mais de dez mil páginas, escritas em apurado Latim científico. A obra teve por editor, incialmente, Carl F. P. von Martius, e, após sua morte, August Wilhelm Eichler e, em seguida, Ignatz Urban. Cerca de sessenta especialistas participaram de sua composição, que contém a taxionomia de mais de vinte mil espécies da flora brasileira, em especial angiospermas. Atualmente, a obra pode ser considerada um monumento da história da ciência e da intelectualidade ocidental, no contexto das relações Brasil-Europa.


  1. 2.A História da Gramática e da Filologia na História das Ciências

As pesquisas recentes na área de Linguística Textual remetem-se a um movimento iniciado pela Linguística na compreensão do Texto. Este movimento, na História das Ciências, por sua vez remete-se à própria origem da tradição filológica, gramatical e retórica nas Culturas da Antiguidade Clássica, sobretudo ao movimento filosófico no Oriente próximo, inaugurado pela Grécia Clássica, pelo período alexandrino e pela Época Clássica romana de finais da República e de início do Império. Entretanto, podemos ter como marco original da história da gramática e da Filologia, assim como dos Estudos da Linguagem, a investigação dos Vedas na tradição hindu, da qual resultou a obra de Panini, gramático do século IV a.C. Ainda que, inicialmente, esses estudos linguísticos fossem voltados ao estudo da teologia védica e dos textos sagrados hindus, este pode ser considerado um marco notório graças às teorias linguísticas aplicadas pelo autor. A obra de Panini foi redescoberta no século XVIII influindo profundamente no estabelecimento da Filologia moderna, sobretudo no contexto do pensamento alemão, com Franz Bopp e Wilhelm von Humboldt.


Posteriormente, a filosofia pré-socrática desenvolveu-se no Oriente próximo, tendo por base a cultura helênica. Os filósofos que antecederam a Sócrates, e de cuja obra só nos resta fragmentos e excertos, eram chamados de filósofos naturalistas, pelo fato de investigarem a phýsis, a natureza, buscando o princípio, a arché, do universo ordenado, isto é do Kósmos, que se opunha ao Chaos, a desordem. A relação entre o universo e as ideias, entre a natureza e a linguagem configurava-se a partir do conceito fundamental de logos, como intermediação entre o ser humano e o universo. Das diversas escolas pré-socráticas, podemos citar a Escola Jônica, cujos expoentes foram Tales, Anaxímenes e Anaximandro, de Mileto, e Heráclito de Éfeso; a Escola Itálica, representada por Pitágoras de Samos, Filolau de Crotona e Árquitas de Tarento; a Escola de Eleia, formada por Parmênides, Zenão e Xenófanes; havendo ainda outros renomados filósofos, que antecederam a Sócrates, como Anaxágoras, Leucipo, Demócrito entre outros. As questões filosóficas relacionadas ao conceito de logos eram ao mesmo tempo questões linguísticas e relacionadas à filosofia da linguagem.


Na obra de Platão, a investigação sobre a natureza da linguagem é patente, sobretudo no diálogo Crátilo, comumente citado na História da Linguística, pela criação do conceito de etimologia. A discussão iniciada, em sua obra, na Atenas dos séculos V e IV a.C., sobre a relação entre a palavra e seu significado, ainda é vigente, e parte da teoria da referenciação em Linguística Textual debruça-se ainda sobre este mesmo fenômeno, sobretudo em relação ao estudo da anáfora. Em seguida, com as obras de Aristóteles, que fora discípulo de Platão e mestre de Alexandre, o Grande, há a busca, pela Lógica e pela Retórica, de uma análise da estrutura da linguagem pela teoria da frase, com a distinção das partes do texto e a enumeração das categorias do discurso. A cultura helênica da Atenas da época clássica, marcada pelo aprofundamento do pensamento filosófico, ao afastar as explicações dos fenômenos naturais de sua intrincada mitologia, gerou naquele momento histórico um movimento fundamental para as Ciências como as conhecemos hoje.


Entretanto, o termo grego gramática, γραμματική, representando uma disciplina, vincula-se a um marco cultural posterior, que pode ser considerado um dos principais para a formação e a origem da Ciência ocidental: a fundação e as pesquisas dos sábios da Biblioteca de Alexandria, no Egito do século III a.C., a época alexandrina. A partir da conquista do Egito por Alexandre, e pelo trânsito de conhecimento proporcionado através da fundação de um centro irradiador do conhecimento das civilizações do Oriente, surgiu no pensamento alexandrino a percepção de que o conhecimento era universal. A noção incipiente de Cosmos, de Ciências e de saberes interligados, permitiu o estabelecimento e a especialização de diversas artes e disciplinas entre os sábios da Biblioteca de Alexandria, e a gramática seria um desses campos de saber. O desenvolvimento filosófico e científico desse período histórico incentivou a reflexão filosófica e científica a tal ponto que somente no Renascimento parte do conhecimento produzido pelos sábios de Alexandria pôde ser revisitado.


A Geometria de Euclides, a Astronomia/Astrologia de Ptolomeu, o saber multidisciplinar de Eratóstenes, que calculou o diâmetro da Terra, são exemplos de uma cultura baseada na livre investigação empírica dos fenômenos naturais e humanos. Se com os filósofos pré-socráticos, em seguida, na obra de Platão e de Aristóteles, e demais retóricos, a investigação da linguagem inaugura seus primeiros conceitos filosóficos, em Alexandria, o trato filológico com a exegese da obra de Homero, a partir de ecdóticos como Aristófanes de Bizâncio e Aristarco da Samotrácia, segundo registros da Suda, fundamentariam a base da Arte da Gramática, a Τέχνη Γραμματική, enquanto trabalho de crítica textual. Entretanto, o exemplar mais antigo e completo de um texto sobre gramática, oriundo da cultura alexandrina, que atingiu a posteridade tem sua atribuição de autoria a Dionísio, o Trácio, entre os séculos II e I a.C., sendo este considerado o pioneiro na arte da gramática. Dessa forma, a Gramática, considerada uma das Artes Liberais do trívio na Idade Média, gozava de grande prestígio entre os alexandrinos e se firmou como base do processo de sistematização da escrita ao longo dos séculos.


Em Roma, marca-se a chegada da arte da gramática ao ocidente, sobretudo por influência da retórica, e posteriormente pelas primeiras gramáticas especializadas em descrever a língua latina. A obra de Prisciano, de Donato e de Varrão são fontes para o pensamento gramatical romano, e seriam influências marcantes para a concepção de gramática durante a Idade Média, após a queda de Roma. Na Idade Média ocidental, os modistas defendiam a universalidade da gramática, até que no Renascimento, gramáticos humanistas, como Nebrija, iniciam novos processos de análise.


Em 1660, a Grammaire generale et raisonne de Port Royal torna-se o principal modelo para as gramáticas normativas das línguas ocidentais, até que as proposições de gramática comparativa surjam na Filologia dos séculos XVIII, cujo marco notório é a obra de Franz Bopp, ao comparar o sistema morfológico do grego, do latim, do sânscrito, do persa e do germânico, gerando a hipótese do indo-europeu. Entretanto, a Linguística passa a ser reconhecida como ciência moderna, a partir do Curso de Linguística Geral de Ferdinand de Saussure, de 1916.


3. Teoria da Referência na Linguística Textual


Mais recentemente, desenvolve-se na Linguística Textual, a partir de meados do século XX, o estudo das estratégias de referenciação discursiva, ou estratégias de progressão referencial, entre as quais se destaca o estudo da anáfora como conceito-chave para os estudos linguísticos. O estudo da anáfora remete-se à antiga Arte da Retórica, herança das Culturas da Antiguidade Clássica, reformulado por novas teorias nas ciências, cujo cerne é o Estudo da Linguagem. A partir da premissa de que a realidade é um produto de nossa percepção cultural, o referente extralinguístico apresenta-se como um derivado cultural, produto de atividades cognitivas de nossa percepção. Desta forma, a representação da Natureza pela Ciência é condicionada pela História Cultural das Ciências, sobretudo, o que se mostra evidente quando analisamos as obras escritas em Latim Científico pelos naturalistas, como a obra de Carl Friedrich Philipp von Martius.


A teoria da referenciação consiste, em suma, na análise da construção e na reconstrução de objetos-do-discurso, cujos referentes são percepções culturais que possuíam status de realidade ao enunciador do discurso. Dessa forma, interessa-nos analisar os processos empregados no texto para a construção de sentido. No caso, analisaremos, após apresentar o texto original, seguido de tradução, considerações acerca do uso de pronomes de forma anafórica e catafórica no texto, evidenciando como o uso destes pronomes em Latim estruturam e articulam uma sintaxe textual, permitindo uma descrição complexa da natureza observada.


Silva in Ripa Fluvii Amazonum, Caa – Ygapo incolis dicta


Vegetationem in ingenti fluvii Amazonum regno praesertim quo perfluit Brasiliam, proprii aliquid habere, multisque rebus a vegetatione terrarum affinium differre, pluribus iam locis operum, de Brasillia a nobis scriptorum commemoravimus. Cujus regionis longe máxima pars tecta est silva densa et alta, quae Indis tantummodo feris hominumque congressus et societatem fugientibus est domicilio. Coeli calor magnus est et aequabilis, qualis premit limitem aequinoctialem, et humor praepotens, qui plantis e pluvia frequenti nec non ex innumeris adducitur fontibus, quibus solum scatet constans saxo arenario, limi et margae stratis solemniter obtecto: id quod plantarum naturae summopere favet, ut vix uspiam orbis terrarum vegetationem invenias opulentiorem, splendidiorem, copia, magnitudine, varietate magis absolutam. Has plantas máxime propterea, quod tantopere iis favet Neptunus, appellavi plantas Najades, ut ab illis quae in aliis eminent Brasiliae partibus dignoscantur. Silva vero ipsa, quae est regni Amazonum fluminis, oppido inter se differt pro regionum situ: alia est próxima fluminis cursum, alia in ejus insulis submissis atque arenosis, alia quae longe distat ab amni in superioribus regni partibus.

Ea, quam hic proposuimus, tabula depingit silvam proxime flumen sitam, i.e. secundum ejus ripas procurrentem; exposita est illa fluminis inundationibus, quae infra locum, ubi conveniunt Amazonum fluvius et Rio Negro, celerrime adscendunt et altissime mensibus Martio et Aprili. Arbores, quae triginta pedes et altius inundantur, tum largissime promittunt folia floresque; atque his ipsis, quae quotannis ingruunt, altioribus aquis fit, ut ramos ibidem videas primários supra aquarum fastigium e cáudice enatos. Herbae vero et dumeta locorum demissorum, quae undis plane obruta computrescunt, ubi aqua decurrit, eo laetius redintegrantur. Haecce est quam tabula depingit régio prope fluminis litora et opidum Santarem. Conspicitur prodiga in litore herbarum cannarumque vegetativo, simul occurrunt densae series caudicum candidorum Aroidearum arborescentium, qui sunt ornati foliis magnis sagittatisque. E limo, ubi alia vacat vegetatione, ut parasita singularis, Helosis gujanensis, stirps aphylla carnosa, fungo simíllima purpúreo, emergit ex arborum radicibus. Arbores Ingae generis, teneris ornatae foliis e leguminibus magnis ac dependentibus insignes, atque alia Leguminosa parva multumque divisa fronde, Pithecolobium, nec non Triplaris americana, et quae latissime distributa crescit Cecropia peltata, cingentes litora amnis tranquillos sinus obumbrant, in quibus Nymphaearum diffusa sunt folia magna ac peltata. Palmarum graciles Astrocaryi Januari et Euterpes oleraceae cáudices vides aliarum arborum cacumina superantes. Theobroma Cacao ramis brevibus crassisque et in directum distensis modo in his, modo in cáudice ipso profert fructus melonibus haud dissimiles. Prope ab illa adspicies Smilacis brachia longis complexibus, cujus radices ab incolis colliguntur pro Salsaparrilla. Totius regionis flos magnificentissimus est Carolinea princeps, cui haud immerito hoc datum est nomen propter candidum splendorem petalorum, quae tomento fulvo obsessa pedis fere longitudinem assequuntur. Ficus doliariae ingentis magnitudinis coronant ripas inque hospitalibus ramis innumerae parasitarum turbae, Bromeliis, Pitcairniis, Anthuriis variis et Orchideis magnifica florum fabrica insignibus, praebent domicilia, dum Bauthiniae Outimoutae aliarumque complurium funes modo in aërem tendentes modo deorsum radicantes miris variisque formis illas circum circa complectuntur.


Tradução

Lembremos, pois, de outras obras escritas por nós sobre o Brasil, em outros lugares, que a vegetação no ingente reino do rio das Amazonas, principalmente na direção em que percorre o Brasil, tem uma característica própria, diferindo até em muitas características da vegetação das terras adjacentes. De longe, a maior parte desta região tem sido coberta por mata densa e alta, que, de tal modo, tanto os indígenas, quanto as feras, e os que fogem da sociedade e do convívio dos homens a tem por domicílio. A temperatura da atmosfera é alta e equilibrada, tal qual a que faz pressão sobre a linha do Equador, sendo também a umidade muito elevada, que é trazida pelas plantas a partir de uma chuva frequente, através assim de inúmeras fontes, entre as quais é abundante um solo que consiste de rochas arenosas, comumente coberto com uma superfície de limo e de marga, certamente isto a tal ponto favorece à natureza das plantas que qualquer um dificilmente encontraria, em outro lugar do globo terrestre, uma vegetação tão opulenta, esplêndida, mais completa em abundância, em magnitude e em variedade. Além disso, nomeei estas plantas de Náiades, sobretudo pelo fato de que Netuno lhes favorece de tal modo, para que, a partir delas, se distingam outras que brotam em outras partes do Brasil. Em verdade, a própria mata, que é típica do reino do rio das Amazonas, difere bastante entre si, em favor da posição de suas regiões: existe um tipo próximo dos cursos do rio, outro nas ilhas submersas e arenosas dele, outro tipo que se afasta longe do rio em locais elevados deste reino.

Esta imagem, que aqui demonstramos, representa a mata situada próxima a um rio, isto é, a mata que avança ao longo de suas margens. Ela tem sido exposta às inundações do rio que, abaixo deste lugar, onde o rio das Amazonas e o Rio Negro convergem, rápida e elevadamente sobem nos meses de Março e de Abril. Árvores, que são cobertas de água, em trinta pés e de forma mais alta até, então lançam longinquamente suas folhas e suas flores; e nestas mesmas árvores, que todos os anos são suspensas, ocorre que, com águas mais elevadas, se pode ver seus ramos primários acima da superfície das águas, nascidos a partir do cáudice. Em verdade, as ervas e os espinhais dos lugares profundos, que se decompõem totalmente submersos pela cheia do rio, quando a correnteza desce, são renovados mais facilmente por isso. É esta a região que a imagem retrata, próxima às margens do rio e da cidade de Santarém. Observa-se uma vegetação de ervas e de canas na margem fértil, ao mesmo tempos em que ocorrem densas séries de cáudices esbranquiçados de Aroideae crescendo como árvores que foram ornadas com folhas grandes e sagitadas.

Além do limo, no lugar que está livre de outra vegetação, emerge através das raízes das árvores a Helosis gujanensis, como parasita singular, espécie áfila carnosa, extremamente semelhante a um fungo de cor púrpura. Há árvores do gênero Inga, ornadas com tenras folhas e insignes por suas vagens grandes e balançantes, e outra leguminosa pequena também com a fronde bem dividida, a Pithecollobium. Não só a Triplaris americana, mas também a Cecropia peltata que cresce largamente distribuída, cingindo as margens do rio, escurecem com sua sombra os recantos tranquilos, nos quais as folhas grandes e peltadas das Nymphaeae têm sido abundantes. Pode-se ver os graciosos cáudices das palmeiras Astrocaryum jauari e Euterpe oleracea, sobressaindo-se quanto ao topo de outras árvores. O Theobroma cacao, de ramos curtos e grossos, também distendidos em linha reta, produz, ora nestes ramos, ora no próprio cáudice, frutos em nada diferentes a melões. Próximo dele pode-se observar os braços da Smilax em extensos abraços, cujas raízes são cultivadas pelos índios em lugar da Salsaparrilha. A flor mais exuberante de toda a região é a Carolinea princeps, a quem, não imerecidamente, foi dado este nome, por causa do cândido esplendor de suas pétalas, que, rodeadas por um tomento dourado, quase alcançam a grandeza do pé. As Ficus doliariae, de grande magnitude, coroam as margens, e em seus ramos hospitaleiros inumeráveis multidões de parasitas, Bromeliae, Pitcairnae, Anthuria, variados e Orchideae insignes, magníficas fábricas de flores, oferecem-lhes proteção, enquanto as Bauthiniae Outimoutae e os cipós de numerosas outras espécies cercam-nas, ora tendendo ao céu, ora se enraizando mais abaixo, com admiráveis formas, por todas as partes.


Uso de pronomes no texto

Há um abundante uso de pronomes relativos no texto, com função anafórica, como: regno... quo perfluit, por exemplo, contabilizamos dezesseis ocorrências de pronomes relativos anafóricos no excerto. A progressão referencial de um determinado texto configura-se por operações discursivas responsáveis pela manutenção de foco de objetos do discurso introduzidos previamente que originam cadeias referenciais em diversas estratégias de referenciação textual. A pronominalização, através de orações relativas, é uma dessas estratégias, devido ao fato de concatenarem sintaticamente um determinante com um pronome. Dos diversos casos de orações relativas que podemos observar no texto, há anáforas como: regionis... quae est Indis domicilio e também a ocorrência de dois pronomes catafóricos pela inversão do período subordinado, com típicas construções do Latim Clássico como: Haecce est quam tabula depingit régio prope fluminis litora et opidum Santarem.

O principal referente deste excerto é enunciado na abertura do texto: Vegetationem, com modificadores diversos que vão caracterizar a definição da vegetação observada. Ao longo de todo excerto a retomada deste referente é reativada no texto por diversos processos textuais e estratégias discursivas diferenciadas que permitem uma construção de sentido ampla do referente, como pudemos observar, através do uso de orações relativas.

À guisa de conclusão, pode-se afirmar que as estruturas sintáticas mais complexas do Latim Clássico são exploradas no texto de Carl Friederich Philipp von Martius, sendo registrado nesse excerto diversos exemplos de usos de estruturas complexas do Latim que necessitam de uma análise mais pormenorizada. Nesse estudo, buscamos contextualizar sua obra escrita em Latim Científico no século XIX nos estudos filológicos e gramaticais da área de Letras Clássicas e de Estudos da Linguagem, objetivando propor um novo viés para a análise de textos fundamentais para a História das Ciências no Ocidente, em que a obra do naturalista se insere.

Cumpre salientar que uma análise pautada pela Linguística Textual sobre textos científicos é um elemento que permite uma descrição da História Cultural das Ciências do Ocidente, pelo fato de que a análise linguística permite a comparação entre épocas e ciências distintas através da materialidade da escrita e da realidade textual, forma pela qual até os dias atuais as ciências registram o conhecimento.


REFERÊNCIAS

DUBOIS, Jean. Dicionário de Linguística. São Paulo: Cultrix, 2011.

GIULIETTI, Ana Maria & al. Biodiversidade e conservação das plantas no Brasil. In: Megadiversidade. Brasil: Conservação Internacional, Julho de 2005, vol. 1, no. 1., p. 52 – 61.

GODOY, Paulo R. T. de (org.). História do pensamento geográfico e epistemologia em Geografia. São Paulo: Unesp, 2010.

KOCH, Ingedore G. V. Introdução à Linguística Textual. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Flora brasiliensis. Stuttgartiae et Tubingiae: Sumptibus J. G. Cottae, 1829-1833, 2v.

_______. A viagem de von Martius. Flora Brasiliensis. Tradução de Carlos Bento Matheus, Lívia Lindoia Paes Barreto, Miguel Barbosa do Rosário. Rio de Janeiro: Index, 1996.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2012.

PETTER, Margarida. Linguagem, Língua e Linguística. In: Introdução à Linguística, vol. 1. Org. José Luiz Fiorin. São Paulo: Contexto, 2012, p. 11 – 24.

VASSANYI, Miklós. Anima Mundi: the Rise of the World Soul Theory in modern German Philosphy. Springer: New York, 2011.




Jardim Botanico RJ. L.F.Kaltner


Jardim Botânico, Rio de Janeiro 2015



iGIULIETTI, 2005, p. 53: “K. P. von Martius editou a Flora Brasiliensis juntamente com Endlicher, Eichler e Urban, de 1840 até 1906. Esse trabalho inclui 22.767 espécies de plantas (Daly & Prince, 1989), das quais 5.939 eram novas para a ciência.”

iiPETTER, 2012, p. 12 e seguintes.


iii
O conceito clássico de anima mundi, desenvolvido, inicialmente, por Platão (ψυχὴ τοῦ κόσμου), em Timeu e República, cuja concepção se baseia em tratar o Universo como um Ser vivo, dialoga intrinsecamente com o conceito de Cosmos, cf. VASSANYI, 2011, p. 1 e seguintes.


ivGODOY, 2010, p. 19 e seguintes.


v Cf. DUBOIS, 2011, p. 312: “Com sua preocupação de elaborar uma teoria da frase como parte ou aspecto da lógica formal, a fim de sistematizar o estudo das proposições e dos juízos, Aristóteles lançou as primeiras bases da gramática geral.”

viCf. MOISÉS, 2012, p. 135 “A crítica textual começou na Antiguidade com os sábios de Alexandria (Zenódoto, Aristófanes de Bizâncio, Aristarco), que curaram sobretudo de estabelecer os textos homéricos. No século XIX, com Karl Lachmann, a ecdótica ganha metodologia científica e entra a exercer considerável e ascendente influência entre os filólogos, linguistas e homens de letras.”



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Kaltner, L. F.. „Carl F. P. von Martius na Amazônia: uma análise de relatos“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 154/20 (2015:02). http://revista.brasil-europa.eu/154/Martius_na_Amazonia.html


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