A Sega no Índico e a Latinidade 
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Mauricio. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright

Mauricio. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright

Mauricio. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright

Mauricio. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright

Mauricio. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright

Mauricio. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright

Mauricio. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright

Mauricio. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright

Fotos A.A.Bispo 2015 ©Arquivo A.B.E.

 

154/18 (2015:2)




A Sega no Índico e a Latinidade

Processos transculturais e fundamentos imago-antropológicos
em releituras de expressões de música e dança


Pesquisa da Música Popular em Processos Transculturais e Worldmusic 2015


Pelos 450 anos do Rio de Janeiro


 
Mauricio. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright
Sob determinados aspectos, o que o que o samba é para o Brasil, a sega o é para vários países do Índico: música e dança celebrada e apresentada como expressão própria de cunho regional/nacional,  importante fator de identidade e da imagem de ilhas como Maurício e La Réunion, Seychelles e Madagáscar.


Em ano no qual o Rio de Janeiro - e com isso o samba - se encontra no centro das atenções pelos seus 450 anos, surge como oportuno voltar a considerar nos estudos euro-brasileiros uma expressão de música e dança, de festividade e alegria que assume valores emblemáticos no oceano do outro lado da África, reinvidicada como característica não só por um país, mas por vários do universo insular índico.


Esses paralelos quanto à função de identificação, auto-apresentação e representação cultural, ao papel retratístico desempenhado e celebrado por
Mauricio. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright
diferentes expressões não encobrem as diferenças que se evidenciam entre o samba e a sega.


O observador pouco ou nada percebe de similaridades quanto a rítmo, melodia, movimentos, gestos e instrumentos entre ambos, ou entre aquilo que reconhece como sendo samba e a sega.


Em ambos os casos parte de estereotipos que não fazem jus à diversidade de expressões, de dança, música e instrumentário que trazem o seu nome e às suas diferenças regionais e no decorrer do tempo.


Mais uma vez manifesta-se aqui a inaproprieade que vem sendo continuamente constatada de se partir positivísticamente da realidade sonora e de movimentos percebida de imediato para uma análise mais profunda de expressões culturais e dos processos em que se inscrevem.


Querer tirar conclusões relativas a processos inter- e transculturais a partir de cotejos analíticos de configurações rítmico-melódicas, entre expressões sonoras constatadas empiricamente em diferentes contextos manifesta uma compreensão superficial de musicologia e de análise, também da visual e cultural em geral, levando a conclusões inadequadas e mesmo errôneas.


Mauricio. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright
O musicólogo, etnomusicólogo ou analista cultural que assim procede - mesmo utilizando-se dos mais avançados meios técnicos na comparação de configurações sonoras de diferentes contextos - retrocede quanto ao desenvolvimento do debate relativo à musicologia de orientação cultural e dos estudos culturais de condução musicológica das últimas décadas.


Os resultados de suas análises podem levar a hipóteses falsas de origens, desenvolvimentos e significados, favorecendo reconstruções artificiais ou mesmo ideológicas, correno o risco de distorção no julgamento de decorrências históricas, correndo o risco de fazer de injustiçados os culpados de injustiças.


O escutar e o ver ultrapassam o que se ouve e se enxerga superficialmente pelos sentidos. Tirar conclusões a respeito de origens a partir de uma consideração superficial de instrumentos, configurações rítmico-melódicas ou outras, por ex. de termos em outros idiomas mencionados em textos, equivale ao querer tirar conclusões de proveniência de expressões culturais a partir da cor da pele de participantes.


Não é pelo fato de músicos e dançantes ter cor de pele escura que as ações na qual participam seja necessariamente de origem africana. Seria assim inadmissível querer tirar conclusões relativas à África a partir de grupos de mascarados com face pintadas de preto do carnaval de diferentes cidades da Europa e do Brasil. Estes, representando negros, índios ou mouros, trazem até o presente atributos - entre êles instrumentos - que servem à encenação e sinalizam associações e sentidos.


Esses atributos e sinais devem ser vistos não como „extensões“ culturais, mas sim como expressões da recepção do negro, do índio e do mouro ao modo do recipiente, ou seja do europeu na tradição ocidental cristã. E isso em linguagem de imagens que indica uma distância para com o representado através do grotesco de suas expressões e suas funções de gozo hilariante.


Esse fato não significa, porém, que essas expressões de natureza encenatória não possuam extraordinária importância para o estudo dos representados. Os estudos de processos missionários e de colonização demonstraram que africanos, indígenas e outros grupos populacionais não-cristãos foram integrados de forma dirigida ou integraram-se de forma não-dirigida no edifício cultural ocidental com expressões e elementos culturais de origem que se resignificaram através de sua inserção em folguedos, equiparando-se a sinais atributivos da tradição européia, passando a servir à festa e ao riso.


A transformação de consciência identificatória com a mudança de posição e consequentemente de perspectivas, levando ao brincar com a própria cultura de origem, assim como o fenômeno que justamente essas expressões de folguedo e de carnavalização surjam como representações emblemáticas de povos e nações são os aspectos o que merecem particular atenção no estudo de processos culturais. É nesse sentido - ou nessa fase do processo transformatório -, com todas as questões que levanta quanto à auto-consciência e memória - que a realidade sonora, manifestada em configurações rítmico-melódicas ou outras adquire o significado.


A diversidade da sega nos diversos contextos e a questão do fator de unidade


Sem levar em consideração esses conhecimentos quanto a mecanismos processuais alcançados nas últimas décadas dificilmente se pode compreender a diversidade de expressões, de tradições e desenvolvimentos regionais da sega nas várias ilhas onde é cultivada.


Também dificilmente pode-se avaliar adequadamente explicações dadas quanto a origens, assim como a distinção entre formas mais antigas e mais recentes, mais tradicionais ou mais atuais, objeto de estudos de folcloristas, de pesquisadores de música popular e da Worldmusic.


A sega apresenta-se como um fenômeno cultural complexo, difícil ou impossível de ser considerado adequadamente sob perspectivas que distinguem esferas culturais como do folk e do popular.


Em apresentações, constata-se porém constantamente menção e exemplos dessa diferença, do rural e do urbano, do antigo e do moderno, da sega do passado e aquela do presente. Esse intento de cunho informativo tem-se tornado até mesmo característico de
apresentações e shows, sendo este constantemente acompanhado por comentários de um cantor principal, líder do grupo.


Entretanto, essas categorizações e distinções convencionais não fazem jus a uma dinâmica transformatória da sega, o que se evidencia em interações mais recentes com correntes internacionais várias, também daquelas provenientes do Caribe, como o reggae jamaicano, o assim chamado Seggae.


A internacionalide da sega como expressão celebrada de vários países da esfera do Índico relaciona-se aqui com a internacionalidade fomentada pela mídia, pelas gravações, pelos
festivais de música, pela mobilidade de músicos intensificada com as facilidades de transportes e pela Internet.


Esses desenvolvimentos evidenciam a necessidade de consideração da sega nas suas inserções em processos culturais mais abrangentes e que extrapolam a esfera do Índico, e, sobretudo, dos fatores a ela intrínsecos que possibilitam tal internacionalidade.


Compreendida aqui como Worldmusic, vem sendo assim considerada em curso e trabalhos universitários voltados a relações entre desenvolvimentos musicais e a globalização. Importante momento nesse desenvolvimento foi seminário realizado na Universidade de Bonn em cooperação com o I.S.M.P.S., em 2003. Esses debates forneceram as bases para Colóquio Internacional de Estudos Interculturais promovido em São Paulo e no Rio de Janeiro, em 2004, e que tiveram continuidade na ilha Maurício, em 2009. (Veja)


Essas observações e estudos in loco foram retomados em janeiro e fevereiro de 2015, em visitas promovidas pela A.B.E. não só nas ilhas Mascarenhas, em Maurício e La Réunion, mas também nas Seychelles e sobretudo no Madagáscar.


No foco das atenções esteve nos diferentes contextos uma problemática constatada em Maurício em 2009: a atribuição hipotética mas insuficientemente fundamenta de origens, de desenvolvimentos, funções e sentidos da sega. Ou seja, o da necessária diferenciação entre historizações e estudos históricos nas suas relações com a pesquisa empírica.


Historizações artificiais e questões de origens em encenações: a sega é africana?


Assim como muitas outras expressões de música e dança no Brasil, tematiza-se na sega - sobretudo em Maurício - constantemente a história da escravidão africana no passado.


Música e dança são explicadas em geral como de origem africana, de escravos que, nas plantações coloniais, continuaram a cultivar as tradições de regiões de proveniência, recebendo porém influências diversas da música européia das colonias, ou seja, da mistura de cultura africana e européia.


Esse quadro de origens e desenvolvimentos, não oferecido como resultante de tentativas elucidativas de cunho
hipotético, mas como correspondente a fatos históricos comprovados, pôde ser constatado e discutido já em 2009 in loco, a partir de apresentações em Maurício.


Tanto naquelas apresentadas como autênticas em nome da pesquisa folclórica como em shows, puderam ser registradas encenações claramente de cunho historicista ou de projeção anacrônica de visões históricas, do presente no passado, por parte de folcloristas e promotores turísticos.


Assim como em produções brasileiras de „aproveitamento do folclore“ de passado não muito distante - e que, em atributos e gestos encenavam aspectos da vida de
trabalho do passado - , também em Maurício puderam ser constatadas referências múltiplas e encenações de atividades agrícolas e da vida escrava em plantações de açúcar e de café, com uso de peneiras e outros apetrechos de trabalho, de explicações de efeitos de instrumentos como reproduções de vento e chuva na travessia do mar separador da terra natal e que dificultavam a vida nos canaviais. Atabaques com ornamentações africanas incluidos nessas apresentações servem para reafirmar tais atribuições de proveniência histórica.


Esse intuito teatralizante e informativo-educativo, denotador de concepções relativamente recentes no tratamento de tradições, levanta muitas questões quanto às suas razões e os seus sentidos, em particular daqueles relativos ao confronto com um passado que pesa na consciência.


Assim, surge como pouco plausível a explicação do uso de instrumento de percussão indiano no instrumentário da sega. Se os indianos foram trazidos para Maurício pelos ingleses no século XIX justamente para substituir a mão de obra escrava, qual seria a razão de uma influência da Índia em expressão originária e rememoradora da vida africana? E qual seria a razão de uso de instrumento da esfera árabe, os principais comerciantes de escravos? Em Rodrigues, conhece-se a sega tambour ou sega-acordeão, cantada sobretudo por mulheres que se acompanham com palmas ou instrumentos circunstanciais. Nas Seychelles, de forma similar à Réunion, pratica-se uma sega denominada de moutia, designação em geral do tamborete ou pandeiro de mão utilizado na sega. Constata-se também a presença do triângulo e, sobretudo da rabeca ou violino.


Do ponto de vista da pesquisa, impõe-se aqui a necessidade de estudos mais diferenciados, não só quanto a questões de origem, mas sim também quanto a estruturas e mecanismos que possibilitaram recepções, harmonizações, substituições e reinterpretações.


O instrumento indiano não se encontra na sega do Madagáscar, enquanto que aqui se pode registrar o marovane, instrumento ornamentado com representações sinalizadoras de conteúdos, tais como o boi. (Veja)


A perspectiva do analista deve ser o de revelar e estudar as fundamentos do edifício de imagens e concepções que torna coerentes essas simultaneidades e substituições de referências a africanos, indianos e árabes.


A recepção de imagens brasileiras em encenações „históricas“ da sega em Maurício


A discussão desses problemas levantados em Maurício foi agora prosseguida mais uma vez neste pais, nas Seychelles, em La Réunion e em Madagáscar, tanto em apresentações de sega de grupos denotadores de maior ou menor vínculo com a tradição de grupos populacionais menos privilegiados da sociedade, assim como na forma de shows.


Um desses shows mauricianos, em formas de expressão evidenciadoras de estreitos elos com a cultura popular contemporânea francesa, mostrou-se claramente estruturado em uma parte inicial „histórica“ e outra exemplificadora da sega moderno, ambas elucidadas pelo ator-cantor principal.


Na encenação da parte de intenções históricas, as dançarinas apresentaram-se com costumes e atributos que sugeriam a África Ocidental - e correspondentes a expressões afro-brasileiras, em particular da Bahia.


Tudo indica que os produtores, partindo da hipótese explicativa de uma origem africana da expressão, procuraram encenar essa sega histórica, que já estaria desaparecida, através de imagens que conhecem da Bahia!


Ou seja, uma explicação hipotética, de forma alguma definitivamente comprovada, passou a determinar a configuração da sega apresentada como „histórica“ - uma reconstrução arbitrária da expressão.


Nesse sentido, numa primeira parte do show da sega apresentam-se dançarinas vestidas de branco, evidentemente inspiradas naquela de participantes de práticas de culto conhecidas do Brasil e também do Leste da África, lideradas por um comentarista-cantor que apresenta nos seus trajes atributos conhecidos antes de culturas islâmicas norte-africanas. Já a idéia de que um árabe fizesse „dançar“ escravos teria aqui questionáveis implicações, de forma alguma compatíveis com uma rememoração da vida de escravizados.


A essa parte „histórica“, segue-se a sega atual, na qual os participantes - mulheres e homens - apresentam-se com trajes multicoloridos e outros atributos que lembram aos assistentes expressões conhecidas do mundo latino-americano, do fandango e de tradições de dança do Marajó ou do Amapá, das Guianas e do Caribe, em particular da América Latina hispânica, em linguagem visual que favorece associações com o gitano. Sem a consideração da música e dos movimentos, o assistente de um desses shows poderia supor tratar-se de alguma apresentação folclórica da América Latina ou do Caribe, transportando-se, por exemplo, para Puerto Rico.


Esses elos com a Latinidade constituiram o centro das reflexões euro-brasileiras levadas a efeito no Instituto Internacional do Creolismo, nas Seychelles. Também aqui constata-se uma intensa recepção cultural do Brasil que leva a interações dirigidas com tradições locais a partir de líderes que estudaram publicações referentes a tradições afro-brasileiras e internalizaram hipóteses de origens convencionais de etnomusicólogos.


Considerou-se que as dimensões latinas, em particular ibéricas, da sega, não são resultados recentes de shows que refletem a influência do teatro musical parisiense em ilhas de passado colonial francês, pois também se manifestam em grupos mais ligados à tradição popular, ainda que também estes utilizem a dança para fins de obtenção de recursos. Também nas Seychelles, como aliás em outras ilhas (Veja), os participantes apresentam-se com trajes e atributos de um „tropical internacional“ que evidenciam muitas vezes até mesmo rítmico-melodicamente similaridades com expressões conhecidas da América Latina e do Caribe.


Significado do Madagáscar para o questionamento de hipóteses de origens


O Madagáscar oferece possibilidades para o prosseguimento das reflexões de forma mais aprofundada, uma vez que traz à consciência a complexidade da história da escravidão e que não pode ser considerada de forma tão simplificada e mesclada com projeções de suposições e recriações como em geral se constata em estudos de expressões culturais.


Ainda menos do que em Maurício surge como plausível no contexto do Madagáscar que a sega rememore uma expressão de escravos africanos, considerando-se a estrutura da sociedade malgache e a história dos seus diferentes grupos populacionais, entre si por vezes conflitantes.


Se - apesar das incertezas e obscuridades históricas - tudo indica que grupos populacionais do Madagáscar, alguns dos quais islamizados e resultantes de cruzamentos em remoto passado, estiveram em estreito contato com povos islâmicos na África, estando êles próprios  próprios envolvidos no comércio escravo liderado pelos árabes, qual seria a razão de se rememorar em celebração o passado de trabalhos agrícolas de escravos africanos na ilha?


Se essa problemática deve ser considerada por ex. no caso dos Salakava (Veja) do litoral, ainda mais questionável seria a suposição mauriciana de uma origem escrava da sega no contexto dos Merina dos altiplanos centrais, o povo que dominou a ilha no processo histórico unificador, sobretudo do século XIX. A estruturação da sociedade, comparadas por viajantes do passado até mesmo com castas, uma vez que diferenciavam de forma estrita entre a realeza, livres, militares e trabalhadores - também quanto à moradia em altos e baixos - não torna plausível que classes socialmente elevadas celebrassem a vida escrava na sega.


Uma fonte histórica de fundamental importância do século XIX


O Madagáscar adquire nesse debate teórico-cultural uma posição chave, uma vez que a êle se refere uma das mais importantes referências históricas da sega, aquela da viajante austríaca Ida Pfeiffer que, em meados do século XIX, presenciou a dança em baile na Corte de Antinanarive. Essas notas foram enviadas ao Rio de Janeiro após a sua morte em 1858 e ali elaboradas para a publicação pelo seu filho Oscar Pfeiffer, pianista e professor de música na capital do Império. (Veja)


Deve-se considerar, de início, o contexto e as circunstâncias político-culturais em que a sega foi presenciada por Ida Pfeiffer. Tratou-se de um baile na Côrte, com a participação de dançarinas reais, de nobres, oficiais e personalidades prominentes dos livres de alta estirpe, na qual naturalmente escravos e muito menos a celebração da vida escrava não poderiam ter lugar. Realizando-se o baile em homenagem a empresário francês em contato com outro negociante francês envolvido no armamento do exército malgache empenhado em lutas internas para a consolidação do seu domínio, foi um evento que servia para a representação do país, uma demonstração de estar á altura da civilização européia, em particular francesa.


Particular atenção deve ser dada ao fato de que essa demonstração auto-afirmativa a serviço político e que procurava ao mesmo tempo ganhar a simpatia dos franceses e impor-se como parceiro à altura, era um baile de costumes, ou seja de referências históricas e nacionais. Esse tipo de baile, de antiga tradição na França, em particular na Corte, já era, em si, uma expressão da recepção francesa no Madagáscar.


Os trajes das dançarinas e dos participantes malgaches no baile evidenciavam essa recepção, tendo sido concebidos pela própria rainha com base em gravuras européias que conhecia e variados segundo o gosto e as possibilidades dos seus portadores.


Como Ida Pfeiffer registra, as meninas e jovens que tinham sido ensaiadas para o baile traziam antigos costumes à moda antiga da França, os menos trajes espanhóis do passado ou eram vestidos de pagens. Os mesmos costumes eram usados por adultos, homens e mulheres do baile que se seguiu. Esse uso de trajes - com as suas conotações de gênero - correspondia a costumes que Ida Pfeiffer tinha observado na Côrte do Rio de Janeiro em viagem precedente, ou seja, o de homens vestidos à antiga moda hispânica, as mulheres à antiga moda francesa, o que correspondia portanto a tradições supra-nacionais e à moda intensificada em época marcada pela Restauração.


Esses trajes eram associados de forma lúdica com costumes de povos e regiões, tendo a viajante austríaca também registrado na Côrte malgache polonesas ou polcas e escocesas, fato também comum no Brasil da época. Elas eram associadas sobretudo com as classes camponesas nos diferentes contextos nacionais, compreendendo-se aqui também a difusão das quadrilhas francesas já tão populares nos meios aristocráticos franceses já à época do império napoleônico com as suas referências à vida do homem do campo ou da terra.


Significativamente, o baile de costumes presenciado na Côrte de Antananarive tinha a sequência dessas danças representativas de diferentes povos aberta e fechada como uma dança de características nacionais, a „dança malgache“. Nessa expressão, as dançarinas traziam o elemento típico da vestimenta malgache, a espécie de toga branca envolvente do corpo, além de flores no cabelo, presas com tiras de tecido. Essa dança já tinha sido observada por Ida Pfeiffer em outras ocasiões, sempre dela valendo a menção de não ter para ela interesse e graça, sendo fastidiosa, apesar do encanto das dançarinas. Essa dança nacional, nos seus elementos básicos, era também executada por oficiais militares, ainda que de forma mais grave e com movimentos mais masculinamente vivos.


Assim como a anterior, essa dança tinha um caráter de reverência ao poder real e à memória dos ancestrais, ou seja, era como que se o povo representado realizasse um preito de lealdade ao poder instituído e a seus ascendentes. Esse sentido da dança malgache de abertura poderia ser visto como aquele da sequência das danças de conotações nacionais européias que se seguiram, ou seja, à de reverenciação e júbilo do monarca e da dinastia, uma função sob certos aspectos comparável àquela da cerimônia do „beija-mão“ dos imperadores que Ida Pfeiffer observara no Brasil após festividades.


A sega não é a „dança malgache“ - o complexo „mouro“ na tradição cristã-ocidental


É nesse contexto de baile de costumes históricos de referenciações nacionais que a inclusão da sega deve ser considerada.  Já de início, Ida Pfeiffer permite que se reconheça uma distinção fundamental: a sega diferenciava-se da „dança malgache“. Ela não era, assim, vista como característica do país, os participantes não traziam a „toga“ branca característica. Ela pertencia, porém, à sequência das outras danças de representação de costumes populares executadas pelos oficiais e era considerada como „indígena“ ou da terra. Evidencia-se aqui uma distinção entre a dança conotada como malgache e aquela considerada como do homem indígena ou ligado à terra. Não compreendendo bem essa distinção, Ida Pfeiffer dizia que os habitantes do Madagáscar queriam fazer passar como dança nativa uma dança que era proveniente dos mouros.


O fato dessa viajante que percorrera o mundo ter reconhecido as relações com o mouro na sega adquire extraordinário significado. Entretanto, essa menção de Ida Pfeiffer não pode ser entendida como uma indicação de proveniência, como se a sega tivesse sido introduzida pelos árabes ou mouros - que no sentido tradicional do termo, equivalia ao negro, o que pode ser constatado, por ex. no termo alemão „Mohr“.


O próprio contexto do baile de costumes da Côrte malgache, na sequência de suas danças européias, não permite supor a inclusão de uma dança que tivesse sido ali implantada por árabes ou muçulmanos em geral, executada por cortesãos vestidos à moda antiga espanhola e francesa.


O fato de Ida Pfeiffer ter reconhecido o cunho mauro da sega deve ser visto, como nos outros casos - da polonesa ou da escocesa -, como testemunho de referência a contextos tradicionais populares relacionados com os mouros na tradição ibérica, o das danças mouriscas de antiga proveniência e as múltiplas formas de expressão de danças ibéricas de referências árabes, relacionadas com determinadas regiões e cidades da Espanha.


Também essas tradições não podem ser compreendidas como extensões ou continuidades de povos islâmicos que tinham dominado a Península, mas sim como de permanências fundamentalmente transformadas a partir da perspectiva de um país católico como a Espanha, onde todos os indícios de manutenção de práticas e concepções religiosas de infiéis eram perseguidos. Os mouriscos conversos - obrigatoriamente ou não - correspondiam aqui sob alguns aspectos àqueles de outros povos cristianizados e integrados na cultura cristã-ocidental, como, entre outros, africanos e indígenas. Essa compreensão do termo indígena nas suas diversas abrangências fundamentava-se em imagem fundamental da antropologia cristã, a do homem tripartido que se manifesta na linguagem de imagens dos três Reis Magos. Um deles, representado por Baltasar, corresponde àquele do homem terreno ou carnal, simbolicamente „negro“, encenado nas tradições festivas como africano, mouro, indígena ou mesmo cigano.


Ida Pfeiffer, identificando a sega como moura, salientou a beleza das figuras, dos passos e da música, afirmando que a dança muito agradaria aos europeus, caso a conhecessem. Essa apreciação positiva vinha assim de encontro ao objetivo do baile da Côrte que era o de homenagear os franceses ali presentes, agradando-os, ao mesmo tempo representando o país. As palavras de Ida Pfeiffer indicam, porém, que a sega, ainda que correspondendo ao gosto europeu, não era de introdução recente, uma vez que os europeus muito a apreciariam se a conhecessem. Já havia, portanto, adquirido características diferenciadoras no Madagáscar.


„La société des danseurs, appartenant généralement à la haute aristocratie, exécuta, après différentes danses européennes, la Sega, que les habitants de Madagáscar veulent faire passer pour une danse indigène, mais qui vient des Maures et dont les figures, les pas et la musique sont si jolis qu‘elle n‘aurait besoin que d‘être connue en Europe pour y être bientôt à la mode.

Après cette belle danse, le bal fut encore longtemps loin de finir. (op.cit. 191)


Tendo Ida Pfeiffer reconhecido tratar-se de dança de conotação moura, tratar-se-ia de uma expressão de danças de antiga tradição no mundo ibérico, relacionadas com a identidade cultural de regiões e cidades que passavam a ser revitalizadas em época de intensificação do fascínio francês pela Espana como uma das expressões do interesse historicista pelo passado medieval da Reconquista e pelo exótico orientalista. 


Os comentários de Ida Pfeiffer permitem assim compreender não só a afirmação dos malgaches de que se tratava de uma dança indígena, como aquela atual em Maurício de que se trataria de expressão africana. Torna compreensível também a presença de instrumentos africanos, indianos, norte-africanos e representativos da terra e de animais nas diversas formas de expressão, assim como as sugestões gitanas dos trajes. Essa indicação, porém, não pode ser compreendida como de origem ou proveniência, mas sim como de recepção de linguagem simbólica européia.


Tarefa para a continuidade das análises - a questão terminológica: sega e o seguir


A sega merece assim ser mais acuradamente analisada no contexto de uma irradição no mundo extra-europeu das seguidillas e outras expressões tradicionais castelhanas na sua recepção francesa. Essa análise necessitaria também considerar formas literárias dos textos. No estado atual das discussões, tudo indica que o próprio termo sega - ainda hoje não elucidado de forma plausível - relaciona-se com seguir, seguida, ou o siga no comando da série de sua sequência. As diferenças entre as expressões de sega nos diferentes contextos insulares teriam provavelmente como as tradições castelhanas ou do flamengo a sua expressão sobretudo no rítmo que caracterizaria paisagens culturais. As expressões passionais de lamento teriam-se transplantado do contexto hibérico - em recepção francesa - àquele de recordação dos sofrimentos de escravos africanos no passado mauriciano.



De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo




Todos os direitos reservados

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „A sega no Índico e a Latinidade. Processos transculturais e fundamentos imago-antropológicos em releituras de expressões de música e dança“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 154/18 (2015:02).http://revista.brasil-europa.eu/154/Sega_e_Latinidade.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne
Corpo consultivo - presidências: Prof. DDr. J. de Andrade (Brasil), Dr. A. Borges (Portugal)