Arquivística e estudos creolos
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 155

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 155/4 (2015:3)



Arquivística e estudos creolos
Colóquio nos Arquivos Nacionais das Seychelles em Victoria, Mahé



Promovido pela A.B.E. pelos 350 anos da chegada dos franceses nas Mascarenha e 450 anos do Rio de Janeiro


 

Um encontro nos Arquivos Nacionais das Seychelles, órgão do Ministério de Cultura e Turismo desse país, deu o início os ciclos de estudos realizados pela A.B.E. nas ilhas Mascarenhas em 2015, ano marcado pelas comemorações dos 450 anos do Rio de Janeiro e pelos 350 anos da chegada dos franceses na Île de France.  Esse encontro foi seguido por uma visita à Biblioteca Nacional de Seychelles.

Tema dos diálogos foi a situação das fontes documentais para os estudos históricos das ilhas, das condições e das atividades dos trabalhos de arquivo, dos estudos de fontes e historiográficos, dos elos internacionais, assim como da ação das pesquisas ali desenvolvidas na vida cultural do país nas suas inserções na esfera regional no seu todo.

A consideração das fontes de arquivo e bibliográficas, assim como da literatura historiográfica e das tendências metodológicas do estudo da história regional surge como ponto de partida para estudos de paralelos e relações no vir-a-ser dos descobrimentos e dos processos de colonização e emancipação no Atlântico e no Índico, assim como de processos culturais em dimensões abrangentes.

Favorecendo o conhecimento mútuo de concepções e metodologias, a consideração do trabalho em arquivos em diferentes contextos surge também como pressuposto para a condução fundamentada de cooperações e diálogos voltados ao presente. Esse significado estudo de fontes e de uma arquivologia de orientação cultural tem sido salientado em trabalhos internacionais da A.B.E. e desenvolvido desde a década de 70 do século findo com pesquisadores e arquivistas no Brasil.

De acordo com a orientação dirigida a processos, tem-se procurado tematizar os problemas derivados de distinções entre áreas marcadas por procedimentos históricos, empíricos e sistemáticos.

Essa superação de categorizações do objeto tem implicações metodológicas para as respectivas áreas dos estudos culturais, trazendo à consciência os problemas resultantes da distinção entre arquivos de fontes históricas e acervos de dados e objetos obtidos em pesquisas de campo ou de transmissão oral. Acervos de gravações, entrevistas e depoimentos e outras fontes conservadas em arquivos de etnografia, folclore, de imagem e do som ou de mídia exigem estreita colaboração com arquivos históricos, o que vale também reciprocamente.

Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e Centro Cultural São Paulo

Centro Cultural SP. Foto H. Huelskath 2004. Copyright
Com o sentido de discutir esses problemas e contribuir positivamente ao desenvolvimento das reflexões e da prática, criou-se já há décadas um arquivo inter- e transcultural da A.B.E.. (Veja)

Significativos momentos na história internacional desse desenvolvimento foram visitas a diferentes arquivos europeus e brasileiros e sessões dedicadas a fontes, bibliotecas e arquivos em encontros internacionais.

Entre êles, conta-se a sessão realizada conjuntamente com a Fundação Biblioteca Nacional por ocasião do
Centro Cultural SP. Foto H. Huelskath 2004. Copyright
Congresso Internacional pelos 500 anos do Descobrimento da América no Rio de Janeiro, em 1992, e o encontro  internacional levado a efeito no Centro Cultural São Paulo pelos 450 anos da metrópole paulista, em 2004.

Há um complexo temático que representa uma das principais preocupações dos estudos euro-brasileiros assim desenvolvidos e que deriva do programa Cultura/Natureza da organização. (Veja)

Centro Cultural SP. Foto H. Huelskath 2004. Copyright
Tem-se tematizado aqui diferentes aspectos de relações entre arquivos científico-naturais e culturais, entre outros o da consideração no arquivamento de fontes de dados relativos à ação do homem na modificação do meio ambiente e da vida vegetal e animal e o de cataclismas - terremotos, ciclones, erupções vulcânicas, secas, inundações - na história e no presente de cidades e regiões.

Essa preocupação exige obrigatoriamente a consideração de contextos internacionais, também devido às suas repercussões, como tratado no contexto do Madagáscar. (Veja)

As dimensões globais dessas questões ganham em atualidade devido às consequências das mudanças climáticas com o aquecimento da atmosfera, o que traz sérias implicações sobretudo para países insulares. As recentes destruições em Vanuatu, país no qual foram desenvolvidos estudos (Veja), trazem à consciência a necessidade de aproximações globais e do trabalho em conjunto na conservação e na análise de fontes.

Insuficiência de fontes históricas como problema de países de passado colonial

De início, a situação dos Arquivos Nacionais de Seychelles lembra aquela de arquivos de algumas cidades e regiões brasileira: a insuficiência de documentos históricos.

Na sua exposição de abertura, Pat Matyot, descreveu esses problemas básicos que enfrentam a instituição.

Tendo sido a sua independência relativamente recente, a documentação mais antiga se encontra em Maurício. Os pesquisadores a história da Seychelles devem assim dirigir-se a Port Louis para realizar consultas e estudos. Para além dos Arquivos Nacionais, o historiador em Seychelles pode contar ainda com os arquivos eclesiásticos, em particular da Igreja Católica, mas também da anglicana.

Como fato comum em países derivados do colonialismo, grande parte das fontes e da bibliografia se encontram em bibliotecas de países europeus, sobretudo na França e na Grã-Bretanha. Se o Brasil-Colonial teve apenas uma metrópole, concentrando-se assim as atenções primordialmente em instituições portuguesas ou em materiais trazidos para o Rio de Janeiro com a vinda da Côrte em 1808, Maurício e as Seychelles tiveram formação colonial mais complexa, inicialmente francesa - e que marcou os fundamentos de sua cultura - e, desde o início do século XIX, inglêsa.

Essa mudança de referenciais metropolitanos tem amplas consequências, entre elas aquela do idioma utilizado e da localização dos documentos. Os pesquisadores estrangeiros são sobretudo aqueles das antigas metrópoles, trazendo consigo diferentes formações, linhas de pensamento e de procedimento, assim como de visões de desenvolvimentos a partir dos respectivos patrimônios documentais. Essa situação modifica-se na atualidade, sobretudo devido à ação globalizante da Internet e da aproximação dos países europeus entre si, constatando-se, por exemplo, um crescente interesse pelo Índico por parte de estudiosos alemães.


Línguas não-escritas. O creolo na arquivística da capital mundial do Creolismo

Tratando-se do idioma, em ilhas do Índico e do Caribe, algumas delas agora países independentes, assim como em outras partes do globo, tem-se também a questão do uso do creolo - correspondente àquela que coloca o pidgin inglês em outros contextos.

Essa questão assume particular significado nas Seychelles, país que se considera como capital mundial do Creolismo e, assim, de um universo de lingua e cultura que ultrapassa nações e continentes, exigindo perspectivas globais no seu tratamento.

O domínio do creolo, necessário para os trabalhos nas Seychelles, é naturalmente mais fácil a pesquisadores que falam o francês. Como Pat Matyot porém salientou, é de se surpreender o domínio do creolo por parte de pesquisadores vindos da Alemanha, o que indica o estudo e a prático dessa língua em alguns centros.

A questão do creolo na arquivística exige procedimentos particulares, pois como outras formas de falar derivadas do processo colonial  e de línguas indígenas, não é lingua escrita, surgindo apenas relativamente em tempos recentes publicações em creolo.

O caminho tem sido aqui o seu ensino nas escolas, surgindo assim livros escolares em creolo. Para tal contribuem o Arquivo, a Biblioteca e o Centro Internacional de Estudos Creolos das Seychelles. (Veja)

Também neste caso demonstra-se a necessidade de uma concepção ampla de arquivística, incluidora também de registros orais. O arquivo torna-se êle próprio impulsionador de futuras fontes. A aproximação cultural na arquivologia através de procedimentos não propriamente históricos, mas da observação e do registro de expressões no presente, torna-se aqui evidente.

A mudança de referenciais metropolitanos na história colonial das Mascarenhas - do domínio francês ao inglês - teve a sua repercussão não apenas na língua, mas também na religião e, com ela estreitamente relacionada, com a educação.

Fontes publicadas pela Internet para pesquisas de fontes

A dispersão das fontes, que foi no passado série entrave ao desenvolvimento dos estudos históricos, em particular numa situação insular distante da Europa e dos EUA, é hoje compensada pelos materiais e textos colocados à disposição pela Internet. Com a publicação cada vez maior de antigos relatos, livros, jornais e outros registros documentais por parte de bibliotecas de todo o mundo, os historiadores de pequenas ilhas em distantes regiões do mundo encontram novas possibilidades para o desenvolvimento de estudos.

Esse trabalho possibilitado pela Internet é favorecido também pelos sites dedicados a genealogias, abrindo-se aqui caminhos para a reconstrução de rêdes familiares e sociais. A contribuição dessas iniciativas genealógicas para países como as Seychelles não pode ser suficientemente avaliada.

Os Arquivos Nacionais das Seychelles também desempenham um papel nesse sentido, sobretudo para as décadas mais recentes, uma vez que conservam acervos de cartórios, livros de registros de nascimento, casamento e óbito, assim como títulos de propriedade ou outros. É procurado, assim, também por moradores que, sem interesse de pesquisa histórica, procuram documentos para fins práticos, tais como de comprovação de situação civil, de posse de terras, de imobílias ou de heranças.

Devido ao peso dessa função dos Arquivos, este, sendo procurado por classes escolares, contribui para uma visão histórica predominantemente orientada segundo rêdes familiares e sociais de passado relativamente recente e, assim, para a memória da coletividade com estreitos relacionamentos com estruturas sociais vigentes na atualidade ou para uma história retroativa a partir do presente.


Memória e pesquisa de fontes na difusão científico-popular de conhecimentos

Um trabalho que contribuiu para a difusão da história das Seychelle pelo fato de procurar transmitir conhecimentos obtidos em fontes de forma de fácil leitura e assimilação por leitores não acostumados com textos acadêmicos é o Réveil Seychellois: Life in Seychelles 1770-1903, de Denise Lombardo, de 2009 (ISBN 978-99931-803-5-7).

A obra é dividida em nove capítulos, partindo dos pioneiros entre 1770 e 1810. A autora procura descrever a vida desses primeiros colonos durante esse início da presença francesa.

No segundo capítulo, sob o título „algodão, navios e escravos“, perfazendo a fase de 1811 e 1835, considera-se a chegada dos ingleses em época na qual a ilha experimentava um desenvolvimento econômico devido ao algodão e ao trabalho escravo, assim como como porto de navios que transitavam pelo Indico. A autora procura dar uma visão da vida da colonia entre a chegada do primeiro comandante britânico até à abolição da escravidão.

O terceiro capítulo, intitulado „lojas e igrejas“, cobrindo os anos entre 1836 e 1861, trata de uma época de grande recessão causada pela queda do preço do algodão, e do declínio da agricultura relacionado com a abolição da escravidão. Foi uma época de intensificação religiosa através de missionários anglicanos e católicos.

O quarto capítulo é dedicado apenas a um mês - outubro de 1862 - ano trágico das Lavalas, uma avalanche que destruiu grande parte da colonia e matou dezenas de habitantes.

No quinto capítulo, intitulado „A New Population“„, cobrindo o período de 1862 a 1879, trata-se da vinda de acima de 2000 africanos resgatados da escravidão e trazidos para as Seychelles por navios ingleses. Essa leva populacional de africanos libertos marcou a configuração humana e cultural da colonia, estabelecendo relações culturais com determinadas regiões e grupos étnico-culturais do continente africano.

No último capítulo, dedicado aos „dias vitorianos“, entre 1880 e 1903, a autora dedicou-se aos contrastes que marcaram a ilha no final do século XIX e início do XX. O velho e novo, o antigo e o moderno se confrontaram, uma época marcada não só por veículos de tração humana como também pelo telégrafo inaugurador de uma nova era de mais intensa comunicação com o Exterior.

Lavadas: Calamidade natural na visão histórica e seu monumento

Essa calamidade natural marcou de tal forma a história da ilha que passou a determinar periodizações no sentido de antes e depois das Lavalas, assim como a contagem de anos. As Seychelles conhecem, assim, um fenômeno de periodização historiográfica relacionado com calamidades naturais que é conhecido de outras regiões, tais como erupções de vulcões em La Réunion ou no Havaí, ou de ciclones como no Madagáscar. (Veja)

A memória das Lavadas é mantida em placas públicas como fotografias históricas na ponte sobre  a levada que, vinda das montanhas, corta a cidade.


Complexas relações entre memória e história

A autora de Réveil Seychellois-Life in Seychelles 1770-1903, Denise Johnstone, inglesa de nascimento, mudou-se quando criança às Seychelles, terra de nascimento de sua mãe. Explica-se, assim, o seu interesse pela história da vida insular na sua linha materna. A visão histórica que ganhou do passado foi marcada por recordações e histórias que ouvia quando criança de sua tia-avó.

As memórias dessa senhora idosa criou na autora uma imagem do passado que passou a ser fundamentada com a pesquisa de fontes. Trata-se, assim, de uma visão referenciada pela passagem do século XIX ao XX, nela interagindo recordações nostálgicas da infância de sua familiar com fatos históricos. A pesquisa de fontes serviu sobretudo para a reconstrução do passado anterior à passagem do século.

A complexa situação historiográfica marcada por memorialismo e pesquisa de fontes para a reconstrução de do período anterior à época guardada na recordação de sua familiar foi tratada assim com meios antes jornalísticos de exposição e linguagem. A autora, que transferiu-se para a Califórnia após atuar como publicista nas Seychelles, consultou também materiais conservados nos Estados Unidos, em particular nos National Archives em Washington D.C. e no Linda Hall Library.


Papel de imagens e de registros sonoros na arquivística

Outro aspecto tratado no encontro nos Arquivos Nacionais da Seychelles foi o do papel das imagens e registros sonoros a serem levantados, conservados e estudados. Antigas fotografias, desenhos e pinturas não apenas complementam informações escritas como adquirem em muitos casos o significado de serem os únicos registros para reconstruções históricas.

O procedimento de tratamento dos materiais exige neste caso formação especial do arquivista, assim como instalações próprias. Além do mais, em particular em contextos culturais nos quais a música é estreitamente relacionada com a dança, o teatro e festividades, a divisão entre arquivos de imagens e sons surge como artificial e levanta problemas.

Sobretudo, porém, são os problemas teóricos de leitura dos materiais que merecem ser considerados com atenção. No caso de obras de expressão artística, como desenhos, aquarelas, pinturas ou ilustrações nelas baseadas, os materiais não são apenas fontes de informações históricas, mas refletem também a visão do criador, o seu condicionamento cultural e a sua inserção em contextos de sua época, determinando, por exemplo, a escolha de motivos. Tomar assim pelo todo aspectos registrados por artistas sob o signo do Romantismo ou segundo interesses de instituições européias ou de obras a serem escritas, pode levar a reduções e mesmo a êrros na visão de decorrências históricas.



De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo

Todos os direitos reservados

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „Arquivística e estudos creolos. Colóquio nos Arquivos Nacionais das Seychelles em Victoria, Mahé“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 155/4 (2015:03). http://revista.brasil-europa.eu/155/Arquivistica_creola.html


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Fotos H.Huelskath, Seychelles e La Réunion
2015 ©Arquivo A.B.E.