O europeu nos trópicos e o creolo no mundo
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 155

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 155/1 (2015:3)


Tema em debate


Seychelles-La Réunion & Brasil
„Pronto para ilhas?“ O europeu nos trópicos e o creolo no mundo:
cultura, tempo livre e escravidão em processos coloniais


Estudos promovidos pela A.B.E. no Índico
pelos 350 anos da chegada dos franceses nas Mascarenhas e 450 anos do Rio de Janeiro


Agradecimentos aos Arquivos Nacionais, à Biblioteca Nacional, ao Instituto Creolo Internacional e à Galeria Val Mer de Seychelles,
assim como ao Museu Léon-Dierx de Saint-Denis, La Réunion



 

Este terceiro número da Revista Brasil-Europa de 2015 dá continuidade aos relatos de estudos realizados no Índico no corrente ano e que decorrem sob o signo dos 450 anos do Rio de Janeiro. Esses trabalhos foram preparados em Bruxelas e em outras regiões da Europa em 2014 (Veja).

Se no número anterior foram considerados temas relacionados com Madagáscar (Veja), a presente edição é dedicada a ilhas do mundo insular das Mascarenhas, em particular às Seychelles, La Réunion e, em menor escala a Maurício, país já considerado em ciclos anteriores de estudos. (Veja

Os trabalhos não poderiam ter sido realizados sem as cooperações dos Arquivos Nacionais das Seychelles,da Biblioteca Nacional, do Instituto Creolo Internacional e da Galeria Val Mer Art Gallery desse país, assim como do Museu de Arte Léon Dirx de Saint-Dénis, capital de La Réunion. Agradecimentos devem ser expressos também aos vários professores, pesquisadores, músicos e artistas desta última ilha e de Maurício que também possibilitaram a consideração de comunidades de brasileiros residentes nas ilhas, já em parte  francofones e integrados.

Mais do que lhas paradisíacas de praias e mar


As ilhas Mascarenhas são visitadas sobretudo para férias, turismo e lazer, pelas suas praias, para a prática de esportes marítimos e pela sua natureza exuberante. Correspondendo à expressão alemã „reif für die Insel“ - maduro para as ilhas -, surgem como regiões ideais para a recuperação de forças daqueles que se consideram exaustos pela vida ativa de trabalho.

Esse significado do fruir do tempo livre pode abrir caminhos para a compreensão de sentidos mais profundos do ter-se tempo como pré-condição da vida contemplativa, intelectual e artística, da dignidade de ter-se tempo livre como libertação das próprias algemas do tempo.

Esse sentido mais profundo da descontração,  da tranquilidade, do uso desacelerado do tempo, da libertação de imperativos de efetividade e produção na abundância da natureza tropical passa a ser redescoberto e revalorizado no contexto da superação do passado colonial de países que alcançaram a sua independência apenas recentemente. Esse resgate da liberdade representada pela descontração e lentidão tropical tem a sua expressão artística na obra de um pintor que acompanhou o processo de emancipação das Seychelles e marcou a sua imagem no Exterior: Gérard Devoud. (Veja)

Nas suas obras, nas quais as figuras humanas quase que não se movimentam, integradas no meio ambiente, é essa serenidade do não-ativismo pré-condição para uma visão hínica da natureza tropical, que surge irradiante de luz aos olhos de um artista que procura ressonâncias em sintonias, não em oposições no mundo natural. É esse vibrar em sintonia, um sentir e pensar correspondente a fenômenos acústicos que explica a musicalidade que se percebe no seu pensamento e na sua obra.

Em encontro na sua na Baie Lazare, em Mahé, pôde-se considerar as suas concepções nas suas relações com o debate que vem sendo desenvolvido no programa Cultura/Natureza da A.B.E., dando-se sobretudo continuidade às reflexões encetadas na Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, em 2007.

Tematizando a arquitetura creola, a obra de Gérard Devoud apresenta a moradia do homem dos trópicos também nas suas relações com a libertação dos imperativos do tempo. A arquitetura surge nesse sentido, como arte do espaço relacionada com o tempo, mas com o tempo a-temporal, não-passageiro, com o imóvel que é origem de tudo o que se movimenta, com o arquiteto do universo. (Veja)

Associações com o Paraíso e dimensões de significados de bananas e cocos

Seychelles. Foto A.A.Bispo 2015. Copyright

A imagem do paraiso ou do jardim de Éden são frequentemente evocadas na descrição dessas ilhas, em particular das Seichelles. Essa associação também abre caminhos para a compreensãõ da representação a natureza na pintura de Devoud, na sua profusão vegetal, sobretudo de bananeiras e coqueiros.

Se a banana, como estudado em outros contextos (Veja), foi dese remotas épocas associada com a sabedoria e consequentemente a bananeira com a árvore da Vida, o coco se associa com o fruto da árvore do Conhecimento, fato que se elucida no coco-de-mar, um dos emblemas das Seychelles.

Essa linguagem de imagens, esclarecida a partir dessa ilha, onde a respectiva palmeira é endêmica, mas remontante às Maledivas, abre perspectivas para a compreensão das tradições brasileiras de dança e música dos cocos praianos, corrigindo hipóteses e inserindo-as em contextos globais. (Veja)

Mundo insular não lusófono mas de denominação portuguesa

Já a denominação dessas ilhas, perenizando o nome do navegador, político e diplomata português D. Pedro de Mascarenhas (ca. 1484-1555), vulto da época do Renascimento, da reforma católica e agente da expansão missionária conduzida pelos jesuítas no mundo extra-europeu, traz à consciência o significado dessa esfera do globo para os estudos de processos culturais desencadeados pelas viagens dos portugueses, pelos Descobrimentos, pela missionação e pela transplantação de vegetais. As Mascarenhas, ainda que não lusófonas, insere-se assim na história da expansão portuguesa e dos processos em que se inseriu e que desencadedou. (Veja)

Dá-se continuidade, assim, aos trabalhos euro-brasileiros voltados a áreas de estudos relacionadas com as viagens de navegação, com os Descobrimentos e com a história missionária que vêm sendo desenvolvidos há décadas no âmbito da A.B.E.  e que levam, no corrente ano, à realização de conferências em diferentes contextos internacionais.

Atualidade das Mascarenhas: 350 anos da colonização celebrados na França

A escolha dessas ilhas do Índico para a realização de estudos euro-brasileiros adquire atualidade devido às comemorações, na cidade portuária de Saint Malo, dos 350 anos da chegada dos franceses nas ilhas Mascarenhas e, assim, do início de desenvolvimentos que marcaram de forma relevante a história colonial francesa e de interações coloniais européias no mundo.

Essa data traz à lembrança sobretudo o nome de Mahé de La Bourdonnais (1699-1753), vulto da história colonial francesa, celebrado em monumentos em La Reúnion e em Maurício, aqui como fundador de Port Louis, e eternizado em designações toponímicas. Tendo estado anteriormente no Brasil, La Bourdonnais estabelece a ponte entre processos coloniais no Brasil e nas Mascarenhas. (Veja)

As celebrações francesas dos 350 anos de colonização revelam diferentes pesos e perspectivas na visão histórica do passado decorrentes das decorrências históricas e da situação política atual das diferentes ilhas. O enaltecimento do processo colonial francês pode ser compreendido na própria França como antiga metrópole e em La Réunion, hoje nela integrada como departamento francês do ultramar, uma vez que aqui se tem uma continuidade histórica da presença francesa no Índico.

Diversa é a situação naturalmente no Madagáscar, país que se emancipou há poucas décadas do domínio colonial francês instituido em fins do século XIX. A presença francesa no Madagáscar é ainda mais antiga do que a da data agora festejada, tendo tido como um de seus principais centros no século XVII Port Dauphin, cujos habitantes se transferiram para a Île de France, hoje Maurício. (Veja)

Diversa é também a situação neste último país, uma vez que, apesar de sua formação cultural francesa, passou á administração colonial britânica já no início do século XIX, dela tendo-se emancipado apenas em meados do século XX. O fato de ter uma população sobretudo francofone, mas o inglês como língua oficial indica uma situação cultural marcada por mudanças de referenciações do passado colonial nas suas implicações populacionais e culturais,  e que se revelam em ano que, na França, se celebram os 350 anos da colonização e o vulto do fundador de Port Louis.

Essas comemorações dizem respeito assim a um passado remoto, à formação cultural do país e de época de seu grande desenvolvimento e significado como Ile de France, assim como a substratos e permanências no patrimônio cultural, que se evidenciam na história literária, artística, nas tradições populares e, em geral, na francofonia.

As profundas transformações causadas pela mudança do domínio colonial da França à Grã-Bretanha foram determinadas sobretudo pela ação anti-escravagista inglêsa, e que levou à substituição da mão-de-obra escrava africana pelo emprêgo de indianos vindos das possessões britânicas da Índia, início de um processo que hoje adquire características de uma „hinduização“ do Índico.

A lembrança do passado colonial mais remoto francês pelos 350 anos traz assim á consciência das profundas transformações causadas pelo combate e pela abolição da escravidão, assim como pelas imigrações, o que co-determinaram as diferenças étnicas e culturais entre as ilhas emancipadas do domínio britânico e a francesa La Réunion. (Veja)

Essa situação apresenta-se ainda de forma mais sensível nas Seychelles, país que se emancipou há algumas décadas, também deixando logo de pertencer á Commonwealth. Devido aos vínculos coloniais do passado recente, substancial parte da sua documentação histórica encontra-se em Maurício.

Esse fato, que coloca problemas arquivísticos, de estudos de fontes para a historiografia, pesquisa e educação, foi discutido em encontro realizado nos Arquivos Nacionais das Seychelles. (Veja) Este encontro inseriu-se na série de conferências internacionais sobre Imigração, Estudos Coloniais e Colonialismo 2015 que vêm sendo promovidas pela A.B.E. em diferentes contextos.

Relações interinsulares no Índico: diversidade e unidade

Para além de similaridades e mesmo unidade proporcionadas pelas condições geográficas e desenvolvimentos históricos resultantes de contatos com a Europa, com a África, com o mundo árabe, a Índia, o Sudeste da Ásia e o Extremo Oriente registram-se assim sensíveis diferenças entre ilhas como Seychelles, Maurício, La Réunion e Madagáscar.

O maior contraste pode ser observado já numa primeira aproximação entre o Madagáscar e La Réunion, o primeiro marcado por situação crítica econômica, social e mesmo extrema pobreza (Veja), o segundo por um grande bem-estar, dando realmente ao observador externo a impressão de uma província francesa particularmente próspera.

Os elos entre as duas ilhas são estreitos, encontrando-se em La Réunion sedes de associações culturais e de congregações religiosas que atuam no Madagáscar e de entidades e órgãos que apoiam e mesmo possibilitam eventos como o Donia de Nosy Be, o festival cultural e musical do Índico. (Veja)

Professores, intelectuais e artistas de La Réunion visitam frequentemente o Madagáscar, e manifestam em entrevistas críticas quanto a uma decadência que esse país teria experimentado desde a sua emancipação do regime colonial francês. Também no Madagáscar registraram-se vozes que surpreendem por lembrarem com nostalgia o tempo colonial, quando teria havido melhor situação sócio-econômica e progresso material.

A política cultural francesa é também intensa em contextos nacionais emancipados do domínio britânico, dirigindo-se à valorização da francofonia e de um patrimônio cultural remontante a um passado já mais remoto de formação francesa. Adquire, assim, características de fortalecimento de raízes, de resgate de expressões culturais e modos de vida que se manitiveram sobretudo em meios populares e em tradições.

Esta situação manifesta-se na valorização da cultura creola que, partindo sobretudo de La Réunion e relacionada com correntes políticas francesas, tem o seu principal centro nas Seychelles, país que surge como capital do creolismo internacional. As dimensões político-culturais e suas implicações teóricas no tratamento de questões culturais creolas foi objeto de visita da A.B.E. ao instituto internacional dedicado a esses estudos nas Seychelles. (Veja)

Estudos europeus não se limitam à Europa continental: La Réunion


A ilha de La Réunion apresenta-se como Europa no Índico. Como departamento e região do ulltramar francês, é político-administrativamente parte da França. Ela pertence à „France d‘outre-mer“, conjunto de territórios situados fora do continente europeu, conhecido abreviadamente como Drom-Com, départements et régions d‘outre-mer et collectivités d‘outre-mer.

Apesar das diferenças quanto à jurisdição e administração, esses territórios franceses do ultramar encontram-se representados no Parlamento francês e recebem, em geral, auxílios da França e da União Européia. Assim como outros departamentos e regiões do ultramar, também La Réunion resultou da história colonial francesa.

La Réunion encontra-se aqui não só ao lado das ilhas do Índico de Mayotte, Iles Éparses, Iles Crozet, Saint-Paul-et-Amsterdam e do arquipélago das Kerguellen, mas também ao lado da Antártica através da Terre Adélie, da Guiana Francesa na América do Sul, das Antilhas com as ilhas de Guadeloupe, Martinique, Saint-Martin e Saint-Barthélemy, das ilhas do Atlântico norte de Saint-Pierre-et-Miquelon, daquelas do Pacífico da Polinésia francesa, Nova Caledonia, Wallis-et-Futuna e Clipperton, assim como de terras austrais e antárticas não habitadas.

As „coletividades do ultramar“ - a Polinésia francesa, Saint-Barthélemy, Saint-Pierre-et-Miquelon e Wallis-et-Futuna - possuem legislação especial. A Nova Caledônia é considerada uma coletividade sui generis. de maior autonomia. A A.B.E. já promoveu estudos tanto na Polinésia francesa (Veja) como em ilhas do Caribe e na Nova Caledônia (Veja).

La Réunion e Mayotte compartilham neste conjunto com a Guiana, Guadalupe e Martinica o status privilegiado de serem ao mesmo tempo departamentos e regiões, equiparando-se nesse sentido com os departamentos e regiões da França metropolitana. Essas ilhas pertencem à União Européia como parte das regiões ultraperiféricas e seus habitantes possuem a cidadania européia. Diferenciam-se assim de territórios franceses do ultramar que não fazem parte da União Européia.


Estudos euro-brasileiros não se limitam a fronteiras nacionais - Norte do Brasil e Guiana

O Brasil, tendo fronteiras com a Guiana, e assim com um um departamento e região que, na sua parte continental faz parte da França metropolitana, tem no contexto assim esboçado limites com a Europa, apesar dos diferentes continentes e da separação oceânica.

Essa situação traz à consciência que delimitações geográficas não coincidem necessariamente com configurações políticas e mesmo culturais. Com a sua história diplomática de limites com a Guiana o Brasil tem contato direto com contextos e desenvolvimentos históricos da presença territorial francesa na América do Sul.

Como considerado sob diferentes aspectos em programas de pesquisas conduzidos pela A.B.E. e instituições afins desde a década de 70 do século XX no Pará e no Amapá (Veja), os intercâmbios e interações culturais entre a Guiana Francesa e regiões fronteiriças do Oiapoque no Amapá, a Guiana brasileira, assim como a inserção cultural dessas regiões brasileiras e de suas expressões culturais em amplo contexto do Norte da América o Sul e que inclui o Caribe, o Sul dos Estados Unidos.

Em publicações e simpósios, vem-se salientando a necessidade de consideração dessa dinâmica na ultrapassagem de fronteiras nos estudos sociais e culturais em geral, nos estudos indígenas e também naqueles concernentes à população estabelecida no decorrer do processo de expansão brasileira ou decorrente de miscigenações, mobilidades, migrações e interações culturais várias.

Estudos culturais brasileiros e a internacionalidade creola

Já em trabalhos desenvolvidos no Marajó, em 1979/80 (Veja), assim como em estudo publicado e discutido no simpósio internacional de 1981 dirigido a questões de diversidade e unidade nos estudos culturais (Veja), considerou-se traços comuns de expressões de dança e música, assim como de trajes, modos de vida e outros aspectos culturais que relacionam o Pará, o Amapá, a Guiana Francesa e a esfera das Antilhas.

Em particular sob o aspecto músico-cultural, a atenção a esse complexo cultural e sua dinâmica marcou não apenas a então fundada Sociedade Brasileira de Musicologia como, através de pesquisadores da Universidade Federal do Pará, o Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia, em 1987.

Particular intensificação experimentaram esses estudos no âmbito do projeto internacional dedicado às culturas indígenas iniciado no ano dos 500 anos do Descobrimento da América e da Conferência do Meio Ambiente do Rio de Janeiro, em 1992. Preparadas por viagens ao Amapá e ao Pará e por encontros com instituições e pesquisadores locais, constituiram-se grupos de pesquisadores ao Oiapoque, que, representando diferentes áreas de estudos, desenvolveram estudos interdisciplinares de processos inter- e transculturais na região.

Como então constatado e analisado pela pesquisadora cultural e filóloga Julieta de Andrade, essas pesquisas não puderam deixar de considerar o patuá falado na região.
O seu estudo merece não apenas particular atenção sob o ponto de vista linguístico, às transformações que se manifestam do francês falado e suas interações com o português, à sua cristalização como língua, como também e primordialmente no âmbito dos estudos culturais, uma vez que representa um fenômeno que ultrapassa a esfera regional marcada por transpasses de fronteiras, representando importante fator de
unidade na diversidade cultural da esfera do norte da América do Sul e do Caribe.
Esses estudos acentuaram a exigência sempre salientada de um direcionamento dos estudos culturais segundo processos - não segundo categorizações do objeto -, e que é determinante da orientação da organização constituida em 1968 e que tem hoje a sua continuidade na A.B.E. e instituições relacionadas. Salientaram também a necessidade de uma orientação prioritariamente cultural dos estudos - e não linguística ou
filológica - uma vez que o próprio falar derivao do francês constatado foi resultado primorial de processos histórico-coloniais e não o contrário.

Esse debate que vem sendo desenvolvido nas últimas décadas favorece a compreensão para estudos de relações e paralelos entre países e contextos culturais distantes geográficamente entre si, cujos habitantes não falam a mesma língua e que não possuem vínculos estreitos na sua história.

A perspectiva no tratamento de questões assim estudadas em contextos brasileiros foi agora ampliada na „capital“ do mundo creolo na sua globalidade. Em particular em visita ao Instituto
Internacional Creolo nas Seychelles, revelou-se a contribuição que os estudos relacionados com o Brasil pode dar ao estudo do Creolismo, uma vez que a orientação dirigida a processos, distinguindo-a da primazia da atenção à creolofonia observada no contexto do pensamento francês, abre novas perspectivas, coloca novas questões.

O papel do Brasil na colonização das Mascarenhas e na escravidão no Índico

Através de La Bourdonnais, o Brasil desempenhou papel de fundamental relevância no processo colonizador do Índico. Foi La Bourdonnais que, do Brasil, introduziu nas ilhas Mascarenhas a planta que favoreceu a vida sedentária de núcleos coloniais, a alimentação de trabalhadores, e que possibilitou a expansão agrícola, econômica e da escravatura: a mandioca. (Veja)

Embora tendo sido essa planta brasileira de início mal recebida, causando tensões que se tornaram conhecidas na Europa e que exigiu ações autoritárias para que pudesse ser introduzida, entrou na história como principal fator do processo de implantação e expansão colonial através do trabalho escravo nas Mascarenhas.

Compreensão de cultura e colonização: agricultura como „arte universal“

Esse significado da introdução da planta brasileira nas Mascarenhas foi reconhecido por Pierre Poivre (1719-1786), fundador do Jardim Botânico de Pamplemouses em Maurício (Veja) e introdutor do cultivo de especiarias que marcaram o desenvolvimento agrícola, comercial e econômico das ilhas, como lembrando em monumentos em La Réunion e nas Seychelles (Veja).

Como filósofo viajante, Poivre teve a sua atenção voltada primordialmente à agricultura nas muitas regiões que percorreu. Vendo cultivo da terra uma arte universal, ponto de partica na consideração dos costumes e das artes dos povos da África, da Ásia e da América, como exposto na sua obra de 1768  (Voyages d‘un philosophe, ou observations sur les moeurs et les arts des peuples de l‘Afrique, de l‘Asie et de l‘Amérique),

Poivre testemunha uma concepção de cultura a partir do cultivo da terra, de antiga proveniência, não apenas terminológica, mas também nas suas inserções no edifício de visões do mundo e o homem.

Apesar de suas antigas origens, a compreensão de cultura a partir da agricultura, revela no contexto da colonização das Mascarenhas, de forma exemplar as suas relações com processos sociais e econômicos de amplas dimensões e implicações na história da era moderna, entre êles do trabalho escravo, do desenvolvimento comercial, do surgimento de grandes riquezas e de círculos sociais de vida intelectual e artística refinada em círculos privilegiados.

O alto nível alcançado na literatura e nas artes na esfera social dirigente de ilhas enriquecidas pelo comércio de produtos agrícolas a partir do trabalho escravo - e este possibilitado na sua grande extensão pelos recursos alimentícios derivados da introdução da mandioca brasileira - marcou o passado da Ile de France, terra de origem de intelectuais e escritores que alcançaram projeção na própria França (Veja).

O mesmo deu-se na antiga Bourbon, a „ilha dos poetas“, destacando-se sobretudo a atividade artística de membros de famílias de grandes posses, de europeus que para ali se transferiram, salientando-se a prática artística de mulheres, assim como de artistas franceses que ali viveram temporariamente.

Como demonstrado nas obras conservadas no Museu de Arte de Saint-Denis e no monumental programa da iconografia do Índico, foi o paisagismo de grande significado na prática artística desses círculos de refinamento aristocrático. Há um artista que estabelece ponte significativa entre a pintura de paisagens do Brasil, do Índico e o movimento artístico de Paris, o francês Adolphe Martial Potémont (1827-1883), autor de quadros como „La Baie de Guanabara“ e „Paysage du Madagascar“. (Veja)

Posteriormente, foram as correntes artísticas relacionadas com o movimento restaurativo do Catolicismo francês e com a intensificação do galicanismo após a Guerra Franco-Prussiana que merecem ser particularmente consideradas na sua recepção em La Réunion, salientando-se aqui a influência de Puvis de Chavannes (1824-1898) através do seu discípulo Jules-François Moirod (1862-1920).

O estudo do grande mural „La France Chrétienne“ na catedral de Saint-Denis abre perspectivas para a análise da recepção francesa na história da pintura do Brasil no contexto da restauração católica e da influência do galicanismo francês no despertar de anelos nacionais. (Veja)

O otium cum dignitate das classes privilegiadas e a sujeição ao trabalho


A compreensão de cultura segundo o cultivo da terra de Poivre correspondeu ao desenvolvimento colonial que criou os pressupostos para o surgimento de círculos sociais que tiveram condições para o uso livre do tempo necessário para o desenvolvimento de aptidões artísticas, da vida intelectual e da fruição das belezas naturais que se manifesta no paisagismo do Índico.

A existência de círculos privilegiados que podiam fruir de tempo livre necessário para o desenvolvimento da vida intelectual e artística não pode ser assim considerada sem aquela da grande parcela populacional escravizada ao trabalho, cujo tempo livre era exíguo, resumido a dias santos e feriados.

O desenvolvimento da agricultura e o consequente aumento do trabalho escravo  representou uma mudança fundamental de modos de vida, que apenas pode ser implantada por meios de força da autoridade colonial. Como La Bourdonnais registrou, grande foi a sua luta para mudar mentalidades e modos de vida dos habitantes acomodados ao clima tropical, usando mesmo de meios de força para que perdessem a languidez, desenvolvessem ambições e espírito de empreendimento, fazendo com que outros trabalhassem, ganhando para si prosperidade e tempo livre.

A vida tranquila e acomodada dos habitantes das ilhas tropicais, cuja natureza fornecia meios suficientes de sobrevivência, precisou ser modificada para o aumento da produção capaz de desenvolver a economia regional e de toda a rêde colonial.

Criaram-se, assim, condições para a liberdade no uso do tempo para círculos dirigentes da sociedade, o otium cum dignitate que surge como pré-condição do desenvolvimento da vida contemplativa, intelectual e artística.



Antonio Alexandre Bispo

Todos os direitos reservados

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.,‚Pronto para ilhas?‘ O europeu nos trópicos e o creolo no mundo: cultura, tempo livre e escravidão em processos coloniais
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 155/1 (2015:03). http://revista.brasil-europa.eu/155/Creolo_no_mundo.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Fotos A.A.Bispo, Seychelles e La Réunion.
2015 ©Arquivo A.B.E.