História da Arte e Estudos Creolos: portraits
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 155

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 155/8 (2015:3)





História da Arte e Estudos Creolos Internacionais
Portraits em processos coloniais
Arthur Grimaud (1784-1869) e Adèle Ferrand (1817-1848)


Estudos promovidos pela A.B.E. no Musée Léon-Dierx de Saint-Denis, La Réunion
pelos 450 anos do Rio de Janeiro e 350 anos da chegada dos franceses nas Mascarenhas



 

Em ano em que são celebraos os 450 anos do Rio de Janeiro e, na França, os 350 anos da chegada dos franceses nas Mascarenhas (Veja), relações e paralelos entre as ilhas do Índico e o Brasil na pintura do século XIX adquirem particular significado.

Correspondendo a essa relevância e atualidade, a A.B.E. realizou uma visita ao Musée Léon-Dierx de Saint-Denis, capital de La Réunion, principal museu de arte do Índico, instituição central da difusão e valorização internacional desse patrimônio artistico através do monumental projeto Iconothèque historique de l‘océan indien promovido por órgãos oficiais desse departamento francês do ultramar.

A La Baie de Guanabara de Adolphe Martial Potémont (1827-1883), pintor francês que viveu durante vários anos em La Réunion, e cujo fascínio pela natureza do Índico é demonstrado numa obra como Paysage du Madagascar, evidencia o significado da consideração dessa atenção de pintores europeus à natureza nessas duas esferas do globo tão distantes entre si para a História da Arte no Brasil e em particular para o Rio de Janeiro. (Veja)

Esse interesse nas artes correspondeu àquele científico-natural de botânicos e de observação da natureza e dos homens por parte de viajantes escritores, como documentado exemplarmente nas obras de Ida Pfeiffer (1797-1858), em particular nos relatos de suas excursões com o acompanhamento de Friedrich Berchtold von Ungarschitz (1781-1876) nas circunvizinhanças do Rio de Janeiro e no interior fluminense. (Veja)

Esses elos entre interesses científicos e literários ou publicísticos, que tanto marcaram imagens do Brasil e do Índico na Europa, trazem à luz a necessidade de consideração dos pressupostos culturais dos observadores e da inserção das suas observações em processos culturais de sua época.

Como as descrições de Ida Pfeiffer no Rio de Janeiro demonstram, os olhares, a percepção e a interpretação do vivenciado relacionaram-se estreitamente com questões de emigração, imigração e de colonização européia no Brasil. Elas correspondem, no Índico, àquelas questões relativas a interesses colonialistas franceses no campo de tensões marcado pela concorrência de interesses entre a Inglaterra e a França. (Veja)

Também na pintura, as obras que registram paisagens, homens, usos e costumes do Brasil e do Índico não podem ser consideradas apenas como documentos históricos que retratam objetivamente ou cientificamente situações passadas, o que já levou a seu questionável uso como fontes fundamentadoras de hipóteses culturais que se revelam como inadequadas e mesmo errôneas.

Um exemplo dessa problemática no contexto Brasil/Índico é o da titulação indiferenciada de obra de Charles Merme (1818-1868), que não só deixou também uma Paysage de Madagascar, como também uma tela de floresta que é conhecida tanto como sendo do Amazonas como das Ilhas Comores, o que indica a projeção de uma mesma imagem de floresta tropical em duas regiões distintas. (Veja)

A consideração do olhar do escritor e do artista nos seus pressupostos culturais nas obras que criaram não surge como necessária apenas relativamente àquela de viajantes europeus e artistas-viajantes que visitaram o Brasil e o Índico. Ela se impõe também na apreciação e análise de obras de escritores e artistas nativos ou que se naturalizaram, assumindo a identidade e a visão da realidade a partir das perspectiva regional.

Tem-se aqui dois aspectos de processos culturais estreitamente relacionados com a colonização, colonialismo, imigração e pós-colonialismo que vêm sendo analisados nos trabalhos euro-brasileiros conduzidos pela A.B.E. e que levam, no corrente ano de 2015, à realizaão de ciclos de estudos e conferências em diferentes contextos internacionais.

No Índico, esses estudos assumem particular atualidade no âmbito da internacionalização dos estudos creolos. Diferentemente do uso convencional do termo no Brasil, creolo é compreendido aqui de princípio no sentido da língua falada, derivada do francês, correspondendo ou aproximando-se à compreensão do termo dos países hispano-americanos, no qual em geral designa aquele já nascido nas colonias, europeu ou filho de europeu com nativos.

Este último, sendo em geral fruto de miscigenação, tem cor de pele escura, o que explica a compreensão convencional do termo no Brasil.

Partir porém desse fato, reduz o significado do termo e a compreensão do processo cultural da creolização e que diz respeito à identidade, à consciência e ao orgulho de origens e, ao mesmo tempo, ao ímpeto de afirmação que explica tendências frequentemente observáveis de cultivo de modos de vida, de expressão e de criação artística segundo o mais avançado, mais renomado ou socialmente mais considerado da Europa, levando a excessos que surgem estranhos e por vezes ridículos a europeus.

Tratando-se assim fundamentalmente de uma questão de identidade, pode inserir-se no termo tanto europeus que se integram no meio, por exemplo através de casamento de uma européia com criolo, ou imigrantes de outras origens, como africanos, que, como demonstrado no caso das Seychelles, em pouco tempo assimilaram a religião, os hábitos e mesmo a vida dos creolos.

É essa compreensão do termo creolo que explica o extraordinário nível da vida cultural e artística dos colonos nas ilhas do Índico, em particular na antiga Bourbon, até mesmo cognominada de  „ilha dos poetas“. Obras de artistas creolos conservadas no Museu de Arte de Saint-Denis confirma a excelência técnica também alcançada na pintura daqueles já nascidos na colonia ou descendentes de colonos, assim como intuitos de valorização da gente de relêvo da terra, o que pode explicar a importância dada à pintura de portraits.

Arthur Grimaud (1784-1869): Portrait d‘un colon sur l‘Ile Bourbon


Talvez a mais significativa dessas obras sob o ponto de vista dos estudos culturais é o retrato de um colono da ilha Bourbon de Arthur Grimaud, nascido e falecido nessa ilha. Foi Arthur Grimaud que, como artista nascido na colonia, a representou nas exposições universais de Paris de 1855 e 1867, assim como na exposição de Londres, em 1862.

Arthur Grimaud deixou portraits de seu pai (1800), de si (1805) e de pessoas de relêvo na sociedade da Île Bourbon (Une familie à l‘Ile Bourbon).

No Portrait d‘un colon sur l‘île Bourbon, não é o trabalhador, o colono pobre ou muito menos o escravo que é retratado, mas sim um proprietário que se apresenta como modêlo ao pintor em postura aristocrática, formalmente vestido, com jaqueta e gravata, em atitude de serena segurança quanto à sua posição e de orgulho de sua terra e seus produtos. É representado de forma nobilitada em pose de atelier, convencional no jogo das pernas e no apoio da mão direita numa mesa, tendo por detrás de si reposteiro que se abre, descortinando uma paisagem que se abre ao mar no clarão rosáceo da aurora, vendo-se colinas já sem matas destinadas às plantações, dominadas por coqueiros e deixando entreve folhagens de bananeiras. Do seu lado esquerdo, podem-se ver ao chão frutos da terra.

O papel da natureza nessa tela difere daquele da pintura paisagística, como nas mencionadas paisagens de Madagascar. Se aqui as figuras humanas, se ocorrentes, não possuem características individualizantes, inserindo-se de forma minúscula na grandiosidade da natureza envolvente, o retrato do colono de Grimaud coloca o colono próspero no centro das atenções, situando em posição dominante e elevada com relação à paisagem que se descortina ao fundo.

Diferentemente de um Potémont, o interesse de Grimaud não residia tanto em paisagens, mas na natureza morta, sendo porém os seus frutos representados como produtos da terra, no orgulho creolo pelo torrão natal. Com isso, a sua obra adquire particular significado no estudo desse gênero, pois enriquece-o com o tratamento de frutas tropicais das Mascarenhas, tanto de La Réunion como na tela Coupe de fruits de Bourbon, como de Maurício, em Les Bananes Mauriciennes.

O fato de seu filho Antoine-Émile Grimaud (1821-1855) e sua filha Joséphine Grimaud (1826-1875) também terem-se dedicado à pintura indica o significado do ensino e do cultivo das artes na sociedade colonial de Bourbon.

Adèle Ferrand (1817-1848)

A artista Julie Adèle Ferrand, embora de origem francesa, nascida em Nancy, representa o francês que transferiu-se para a colonia, ali vivendo e vindo a falecer à época da estadia de Potémont em La Réunion.

Casou-se com um meio-irmão de Gabriel Le Coat de Kerveguen (1800-1860), aristocrata e possuidor de grandes propriedades e extraordinária riqueza em La Réunion, uma prosperidade possibilitada pela agricultura através do trabalho escravo e no seu comércio. O seu marido, Denis François Le Coat de Kervéguen, nascido em Saint-Pierre, na ilha de Bourbon, retornou  após o seu casamento em 1846 de Paris à ilha, ocupando cargos políticos na política local.

Adèle Ferrand surge como exemplo do papel da arte em círculos sociais de alta influência e cultivo de modos de vida aristocráticos na colonia.

Assim como a filha de Arthur Grimaud, Josephine, Adèle Ferrand traz à consciência o papel da arte na formação e na vida feminina na sociedade colonial e na recepção do Romantismo no meio colonial do século XIX.

Também na sua obra predominou a pintura de retratos de pessoas da família, do seu círculo social e de personalidades de destaque na sociedade da colonia. Deles, o portrait de seu marido Denis François Le Coat de Kervéguen, merece uma particular atenção. Adèle Ferrand apresenta-o como jovem de atitudes e trajes refinados, no centro da composição do quadro.

Também aqui tem-se elementos convencionais da pintura retratística de atelier, mencionando-se aqui a mesa lateral que, à esquerda do retratado, estabelece um equilíbrio com o cão do seu lado direito. A cortina que se abre coloca aqui o retratado no centro da encenação, sendo equilibrada pela moldura de um quadro do outro lado da tela.

O jovem aristocrata folheia um caderno de música, indicando suas atividades musicais e relações com a impressão musical da família. Sobre a mesa, veem-se também livros e um globo, sinais da cultura de Le Coat der Kerveguen, de seu interesse pela música, pela leitura e pelas viagens.

Se o Portrait d‘un colon sur l‘Ile Bourbon de Grimaud representa a prosperidade do colono através da agricultura, esta constituindo a cultura por excelência, o portrait de Le Coat der Kerveguen fala de uma vida de distinção e de cultivo da música, da leitura e de conhecimentos do mundo possibilitada pelo tempo otium cum dignitate daqueles que podiam fruir de tempo livre.

A consideração relacionada dessas duas obras revela aspectos da função da arte em processos culturais das sociedades coloniais, de um lado o da auto-consciência em orgulho da terra e da prosperidade e poder alcançados, de outro o do refinamento, distinção e cultivo intelectual e artístico possibilitados pelo fato de serem livres das algemas do tempo, diferenciando-se daqueles escravizados ao trabalho físico.



De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo

Todos os direitos reservados

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „História da Arte e Estudos Creolos Internacionais. Portraits em processos coloniais
Arthur Grimaud (1784-1869) e Adèle Ferrand (1817-1848)“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 155/8 (2015:03). http://revista.brasil-europa.eu/155/Portraits_na_cultura_creola.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Fotos A.A.Bispo, La Réunion. 2015 ©Arquivo A.B.E.