Brasil em Ontario: Berlin/Kitchener 1935
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 156

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 156/18 (2015:4)





Presença do Brasil em comunidades teuto-canadenses de Ontário
Mabel Emilie Krug (1902-1984) e a música em Berlin/Kitchener

A.B.E. em cidades de Ontario 2015. Retomando estudos do seminário Migrações e Estética da Universidade de Colonia
pela passagem dos 30 anos de fundação do ISMPS: Mississauga, Burlington, Niagara on the Lake e.o.

 
Mississauga. Foto A.A.Bispo 2015

Mississauga. Foto A.A.Bispi 2015
Os ciclos de estudos promovidos pela A.B.E. em abril de 2015 em cidades de Ontario, Canadá, tiveram como objetivo principal estreitar contatos e atualizar conhecimentos pela passagem dos 30 anos de fundação e reconhecimento de utilidade pública na Alemanha do Instituto de Estudos de Cultura Musical da Esfera de Língua Portuguesa. As reflexões decorreram sob o signo das comemorações dos 450 anos do Rio de Janeiro.


Toronto, Mississauga e outras cidades dessa província canadense possuem grandes comunidades de imigrantes lusófonos, com os quais o instituto vem mantendo contato regular desde a sua fundação através do seu vice-presidente, Dr. Armindo Borges. (Veja)


Devido à sua configuração populacional e uma política que acentua os valores da diversidade cultural, essas cidades de Ontário surgem como particularmente adequadas para a condução de estudos culturais de migrações.


Histórico: 300 anos da imigração alemã à América do Norte (1983) e o Brasil


A consideração de questões relativas à emigração/imigração nas suas diferentes fases, nos diferentes países da Europa e de regiões extra-européias tem sido sempre objeto de observações, debates e seminários universitários realizados em cooperação com a A.B.E.. Esses trabalhos foram e são conduzidos sob o signo da necessária consideração relacionada de estudos transatlânticos e interamericanos.


Em evento internacional realizado em 1983, constatou-se a necessidade de uma atualização de perspectivas no tratamento de questões relativas à imigrações perante o processo de integração européia e de aproximação de países do continente americano entre si.


Emigrações/imigrações foram - e são - em geral tratadas a partir de nações segundo fronteiras atuais, o que nem sempre corresponde àquelas da época da saída ou entrada de migrantes. Além do mais transformações políticas das relações entre países e configurações internacionais condicionaram correntes imigratórias, impedindo-as ou promovendo-as, e influenciaram processos integrativos ou diferenciadores dos migrantes. Essas razões justificam assim uma consideração de questões relacionadas com migrações prioritariamente sob a perspectiva do estudo de processos culturais, não a partir de enfoques nacionais do presente.


O evento de 1983 realizou-se por motivo da passagem dos 300 anos da emigração alemã à América do Norte, desenvolvendo-se estudos e estabelecendo-se contatos com comunidades de origem alemã dos Estados Unidos e do Canadá, sobressaindo-se respectivamente St. Louis nos Estados Unidos e Kitchener no Canadá. O evento realizou-se com o apoio da Embaixada dos Estados Unidos na Alemanha, assim como de universidades alemãs e instituições do Brasil, do Chile, da Argentina e do Uruguai.


Uma das preocupações foi a de comparar os desenvolvimento histórico e a situação atual dessas comunidades com aquelas dos alemães e seus descendentes no Brasil. Considerou-se a inserção dessas comunidades nas diferentes nações do continente no decorrer das suas transformações políticas e o papel que nelas desempenharam.


Uma especial atenção foi emprestada às consequências para essas comunidades alemãs das guerras mundiais do século XX.


A situação anterior à Guerra era marcada por uma auto-consciência alemã derivada da vitória na Guerra Franco-Prussiana de 1870/71, levando a uma intensificação de sentimentos patrióticos de origens e mesmo à assimilação de tendências mais extremas de acentuação de Alemanidade para além fronteiras. Os desenvolvimentos nas várias áreas dos conhecimentos, das ciências, da filosofia e das artes do Império Alemão como maior potência da Europa tornaram-se condutores nas diferentes nações, ainda que nas latinas antes através de sua recepção francesa.


Essa situação que predominou até a eclosão da Guerra de 1914-1918 modificou-se fundamentalmente, levando a restrições no uso da língua alemã, na publicação de jornais nesse idioma, na vida das sociedades e sob muitos outros aspectos, tendo causado problemas de posicionamentos, identificações e conhecido também conflitos, tensões e atos de agressão.


Nos diferentes países do continente, as colonias de imigrantes alemães experimentaram não apenas problemas com as restrições e animosidades, mas também considerável desenvolvimento material, social e cultural. Com os obstáculos colocados à importação, empresas de origem alemã em situações coloniais concentraram as suas atividades nos países e passaram a suprir necessidades, abrindo novos e promissores caminhos de progresso material.


Esse desenvolvimento teve influência em processos integradores de imigrantes e seus descendentes. Em visão retrospectiva, constata-se uma complexa discrepância entre esse desenvolvimento empresarial e as atividades culturais e sociais que sofreram com as restrições relativamente ao uso do idioma, o que afetou sociedades de canto, instrumentais, de dança e leitura, de atiradores e de outras tradições alemãs, com escolas e outras instituições. Paralelamente, intelectuais e artistas alemães e seus descendentes passaram a ocupar altas posições na política e na vida artística e musical dos principais centros.


O desfecho da Guerra com a derrota da Alemanha e a desintegração do antigo Império Áustro-Húngaro criou uma situação para os descendentes de alemães nos diferentes países americanos que totalmente diferia daquela anterior a 1914.


Como estudada no caso do Brasil (Veja), os obstáculos e as restrições da Guerra não foram de todo negativas para as comunidades de imigrantes e seus descendentes, uma vez que, baseando-se nas suas próprias forças, voltando-se aos respectivos contextos e suprindo necessidades que não mais podiam ser satisfeitas com importações, muitos de seus empreendimentos industriais e comerciais atingiram alto grau de desenvolvimento e influência, invertendo situações no cenário internacional: os alemães e seus descendentes nas regiões coloniais encontraram-se em posição mais favorável do que a Alemanha que enfrentava a crise que se seguiu à sua derrota na Guerra. (Veja)


A derrota e a humilhação da Alemanha com o Tratado de Versalhes teve repercussões no continente americano, criando-se em vários casos complexas situações marcadas por sentimentos nacionalistas de vencidos nas suas tensões com a vida no contexto de países vencedores.


De Berlin a Kitchener - denominações no campo de tensões políticas


Kitchener, localidade na região do Grand River, há ca. de 100 quilômetros de Toronto e 80 de Mississauga, é até hoje o principal centro da cultura alemã no Canadá.


A presença alemã nessa região de Ontário manifesta-se na denominação de várias cidades, tais como New Hamburg, Baden Breslau. Também Kitchener foi, no passado, denominada de Berlin. Essas localidades surgem ao lado de outras que lembram cidades inglesas, como Cambridge, London ou, no caso de Waterloo, batalha fundamental da história britânica. Já esse fato traz à luz o campo de tensões político-culturais que necessáriamente resultou das guerras entre as nações européias e nas quais os EUA e o Canadá tomaram parte.


Como em algumas cidades de passado colonial de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, Kitchener distingue-se pelas sua Oktoberfest que, durando ca. de 9 dias, é considerada até mesmo a segunda maior do mundo. A cidade possui associações, clubes e restaurantes alemães, havendo assim grande similaridade com a vida de comunidades de passado colonial alemão no Brasil.


A cidade remonta a uma comunidade de colonos menonitas, na sua maioria, sendo denominada de Ebytown segundo o seu líder. A sua denominação passou a ser Berlin em 1833, nome significativo para uma quase que capital dos alemães no Canadá. A cidade alcançou prosperidade na segunda metade do século XIX e nos anos anteriores à Primeira Guerra.


O sentimento do Deutschtum foi acentuado na localidade, o que se manifestou durante a Guerra. Esta teria sido uma das razões da mudança de seu nome. Em lugar de Berlin, passou a ser designada significativamente segundo o nome do Marechal e Ministro de Guerra britânico Herbert Kitchener (1850-1916). Esse nome lembra até hoje um militar e político que entrou na história do Império Britânico pelas suas atuações militares em regiões coloniais e de arregimentação militar, entre outras na Guerra dos Buren ou na África do Sudoeste Alemão, tendo assim um significado provocativo para os habitantes alemães de Berlin.

Kitchener Collegiate Institute

Um dos principais edifícios do patrimônio histórico de Ontario é o do Kitchener Collegiate Institute, escola secundária das mais antigas da região de Waterloo. Essa escola remonta à Berlin Senior Boys‘Grammar School, instituição que, após ter funcionado em diversos endereços, também na antiga Swedenborgian Church, adquiriu em 1874 um prédio próprio, inaugurado em 1876 sob a denominação de Berlin High School.

Essa escola secundária foi modelar na sua época, tendo introduzido pioneiramente várias disciplinas, em particular de ciências e aulas experimentais de laboratório. Já em 1884 iniciaram-se aulas de comércio e de música, seguidas pela introdução de ginástica em 1991. Com o aumento dos alunos, o prédio foi ampliado, passando a instituição a denominar-se Berlin Collegiate Institute em 1904.

Redenominada com a cidade em Kitchener Collegiate Institute, em 1916, atingida no seu ensino e nos seus planos de extensão pela situação e pelas consequências da Guerra, a instituição ganhou novo alento sob modificado signo político-cultural na década de vinte. Um novo edifício, iniciado em 1922 e inaugurado oficialmente em 1924, marcou essa fase de florescimento do instituto, que logo alcançou um número de ca. 1500 estudantes, realizando cursos também nas escolas públicas  da Victoria Public School e na King Edward Public School.

Mabel Emilie Krug (1902-1984) e Guiomar Novaes (1895-1979)

Um marco histórico na vida musical e social desse tradicional estabelecimento foi o recebimento de uma das mais celebradas artistas da América do Norte em 1935, a pianista brasileira Guiomar Novaes.

O concerto, realizado no auditório da Kitchener-Waterloo Colegiate na King Street, surge como merecedor de atenção por diversos motivos. O auditório nem bem dispunha de piano adequado ao recital de uma pianista que no Brasil chegava até mesmo a fazer com que se transportasse o seu próprio piano para as salas de concerto.

Em Kitchener, a pianista brasileira dispôs apenas de um piano Hintzman, tendo os promotores salientado que o instrumento seria apenas adequado para acompanhamento, não para apresentações solistas.

Niagara on the Lake. Foto A.A. Bispo 2015

O concerto inseriu-se antes na série de apresentações da pianista em salas menores de instituições de ensino secundário e universidades, adquirindo assim um sentido marcadamente educacional.

Essa apresentação diferenciou-se, assim dos anteriores recitais da pianista no Canadá. Foi organizado pela sua agência promotora de Nova York, Hansel and Jones, em cooperação com a diretoria da instituição, tendo sido as pessoas de referência as senhoras Emma Lillian Breithaupt e Mabel Krug.

A primeira, então secretária da instituição, nascida em Kitchener, era filha de Louis Jacob Breithaupt (1855-1939), originário em Buffalo/Nova York, de ascendência judaico-alemã.

A segunda, casada com o industrial Henry Krug (1894-1965), filho de Hartman Krug (1853-1933) fundador da empresa Krug Furniture de Waterloo, descendente do imigrante alemão Johann H. Krug (1808-1853).

Mabel Emilie Krug parece ter desempenhado o principal papel no convite feito a Guiomar Novaes. Nasceu na Pennsylvania e fora, antes do seu casamento em 1924, cantora de sucesso nos Estados Unidos. Possuia, assim, conhecimento do renome que a pianista brasileira gozava nesse país.

Fixando-se em Kitchener, Mabel Krug passou a atuar intensamente em atividades humanitárias e musicais, chegando posteriormente a ocupar posições de influência em entidades voltadas ao canto lírico e ao teatro como a Canadian Opera Company, o Canadian Opera Guild ou o Cominion Drama Festival, à música sinfônica, como o K-W Symphony Orchestra Association, assim como entidades católicas como o Carmel of St. Joseph Guild, e a Catholic Women‘s League.

O fato de ter atuado posteriormente também na Edward Johnson Music Foundation, indica não só o seu empenho por questões de educação musical do público como uma proximidade ao grande cantor canadense Edward Johnson (1878-1959). Este cantor atuara com Guiomar Novaes no memorável concerto que tivera lugar dez anos antes em Toronto. (Veja) A apresentação da pianista em Kitchener recapitulava, assim, após uma década, um empreendimento  promovido por um artista da esfera lírica.

A atuação de Mabel Krug em organizações católicas e de senhoras católicas em ambiente marcado por imigrantes alemães menonitas e evangélicos de diferentes denominações - como Emma Lilian Breithaupt - torna compreensível uma afinidade com Guiomar Novaes.

O concerto surge assim como mais uma expressão da rêde de mulheres conservadoras de classes sociais de posses que colaborou e promoveu a carreira da pianista brasileira no Brasil e na América do Norte.

A apresentação da brasileira no Kitchener (Berlin) Collegiate Institute, instituição tão marcda pelas suas origens alemãs, perde, assim, o seu cunho enigmático, explicando-se pelo empenho da soprano americana, agora pertencente aos círculos influentes da sociedade canadense. A escolha do auditório da instituição teria sido assim antes circunstancial, sendo que o evento teria ocorrido sob o signo da política conservadora e nacional americana que se intensivava em meados da década de 30 perante os questionáveis desenvolvimentos políticos na Alemanha.

Hoje, a memória de Henry e Mabel Krug mantém-se viva através de prêmio anual instituído por membros de sua família para a premiação de estudantes de música por juri constituído por membros de faculdade de música. Torna-se atual, assim, recordar o contexto marcado por preocupações educativo-musicais de público que tanto determinou o empenho de artistas de orientação política conservadora da primeira metade do século XX, tanto no Brasil, como na América do Norte.


De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos reservados

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „Presença do Brasil em comunidades teuto-canadenses de Ontário
Mabel Emilie Krug (1902-1984) e a música em Berlin/Kitchener“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 156/18 (2015:04). http://revista.brasil-europa.eu/156/Brasil_em_Kitchener.html


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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
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Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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Coluna: Niagara on the Lake
Texto: Mississauga
Fotos A.A.Bispo, 2015 ©Arquivo A.B.E.