Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 156

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 156/11 (2015:4)



„Si eu pudesse ter estrangulado o Sr. Gottschalk...“


Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro
de L M. Gottschalk (1829-1869) nas suas implicações políticas
- críticas de Ernani Braga (1888-1948) e Artur Imbassaí (1856-1947) -


 

Nos ciclos de estudos  promovidos em 2015 pela A.B.E. na América do Norte por motivo dos 450 anos do Rio de Janeiro, lembrou-se do pianista e compositor norte-americano Louis Moreau Gottschalk (1829-1869). Este virtuose altamente celebrado de sua época percorreu o continente americano, alcançando também no Brasil grande sucesso.Tendo vindo a falecer na antiga capital do Império, o seu nome adquire um especial significado para o Brasil.

Atualidade das atenções à vida e obra de Louis Moreau Gottschalk

A sua história de vida, personalidade e obra vêm sendo consideradas sob diferentes aspectos nas últimas décadas. (Veja) As suas composições, por muitas décadas silenciadas, vêm sendo descobertas, apresentadas em concertos e registradas em gravações.

Na atualidade, L. M. Gottschalk merece especial atenção no âmbito dos trabalhos euro-brasileiros voltados ao creolo, à creolofonia, ao creolismo e à criolidade nas suas dimensões mundiais.

Vários aspectos desse complexo temático foram refletidos e desenvolvidos no centro de estudos da „capital do creolo“ nas Seychelles por motivo de sua recente internacionalização. (Veja) O empenho francês partido de La Réunion na promoção e ampliação desse centro na antiga colonia britânica demonstra dimensões político-culturais no fomento da francofonia. Esta implica em valorização de permanências e substratos culturais remontantes à colonização francesa do passado e correspondente identificações.

Reflexões mais aprofundadas trazem à consciência a impropriedade, nos estudos culturais, de perspectivas que partem do idioma na consideração dessas questões, mesmo no caso deste tratar-se de uma variante ou derivação na fala da língua dos colonizadores a caminho de poder ser considerado como idioma em si. Como no caso da lusofonia, uma categorização do objeto de estudos segundo o idioma não leva em conta a possibilidade da sua perda dependendo de circunstâncias; a atenção deve ser, assim, primordialmente direcionada a processos.

A sensibilidade aguçada para interesses, significados e implicações políticas do criolismo no presente salienta a necessidade de análises mais diferenciadas do campo de tensões de interesses comerciais e político-econômicos britânico-francesas em processos culturais da história colonial, de independência de antigas colonias, de abolição do trabalho escravo, de formação de identidades nacionais do passado em diferentes contextos nas suas relações trans- e intercontinentais. (Veja)

Contrariamente ao que em geral se supõe devido ao uso vulgar do termo criolo no Brasil, trata-se aqui da consideração de processos culturais que apenas secundariamente dizem respeito a questões de mestiçagem, de resultado da união do homem europeu com a mulher não-européia, da terra, devendo incluir necessariamente também e talvez até mesmo prioritariamente o europeu já nascido nas regiões extra-européias.

O foco das atenções reside no complexo antes de características mentais e psíquicas de identificação com a terra, ao mesmo tempo diferenciadoras e afirmativas, de desejos, convicções e expressões de estar à altura dos desenvolvimentos na Europa em modos de vida, na cultura e nas artes.

É esse orgulho de duplas raízes que parece poder explicar não só a procura de enriquecimento e demonstração de riqueza material de regiões de formação colonial, mas também do refinamento no cultivo de formas e modos de vida, uma distinção em círculos privilegiados da sociedade que foram observados frequentemente por viajantes.

Talvez possa também elucidar ímpetos de superação e desejos de reconhecimento na cultura e nas artes, assim como o alto grau de erudição de intelectuais, o brilho da vida social e cultural, o perfeicionismo no domínio instrumental e técnico, o virtuosismo artístico nas suas diferentes acepções. Trata-se assim antes de impulsos e expressões de círculos que dispõem de meios e tempo livre, não de escravos ou de escravizados ao trabalho, de esferas sociais mais privilegiadas e de mais poder, em geral conservadoras, ainda que se difundam „do alto para baixo“ e se mantenham por mais tempo em meios sociais mais modestos. (Veja)

Louis Moreau Gottschalk sob a perspectiva dos estudos creolos internacionais

Louis Moreau Gottschalk, nascido em New Orleans, na Louisiana, filho de pai sefardita vindo de Londres e de família materna de S. Domingo, no Caribe, que transferiu-se para os Estados Unidos em consequência de questões de escravatura, que se formou na França e atingiu renome internacional surge, assim, como objeto exemplar para estudos do creolismo não apenas pelo fato de ter utilizado elementos da música identificada como creola na sua obra.

O patriotismo norte-americano de Gottschalk que se manifesta na consideração de cantos dos Estados do Norte dos Estados Unidos como Yankee Doodle, The Star Spangled Banner e Hail Columbia no triunfalista The Union, de 1862, permitia de forma singular que também considerasse na sua obra música de conotações patrióticas em outras situações norte-americanas e nas diferentes nações por êle visitadas do continente. Essa singular multiplicidade patriótica ou nacional não-nacional não pode ser vista apenas como manifestação oportunista de um artista itinerante à procura de sucesso financeiro e projeção. Ela representa, ou por intenção ou de fato, um posicionamento mais amplo, explicável por mecanismos de um processo ao mesmo tempo diferenciador e afirmativo no qual se inseriu e atuou.

Compreende-se, assim, que Gottschalk não apenas mereça ser considerado como músico dos Estados Unidos que percorreu outros países do continente, mas como objeto de estudos de processos culturais relacionados com a América no seu todo, com o americanismo, o interamericanismo e o panamericanismo.

Gottschalk nos estudos musicológicos de orientação cultural euro-brasileiros

Gottschalk foi considerado desde a década de setenta no âmbito do programa euro-brasileiro de estudos culturais e de musicologia cultural iniciados na Europa em 1974. (Veja)

O compositor e sua obra foram tratados em colóquios com Francisco Curt Lange (1903-1997) e Samuel Claro-Valdés (1934-1994) no âmbito do projeto „As culturas musicais da América Latina no século XIX“, levado a efeito no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia. (Veja).

Partindo-se dos estudos de Curt Lange dedicados ao pianista e compositor norte-americano, foram discutidas as possibilidades de renovação de perspectivas e prosseguimento dos estudos através de análises mais aprofundadas de processos culturais em que Gottschalk se inseriu nas Américas.

Essas reflexões com o diretor do Instituto Interamericano de Musicologia tiveram prosseguimento em homenagem a seus 80 anos em Forum e Semana de Música realizados sob patrocínios das embaixadas do Brasil e dos Estados Unidos, assim como de instituições de outros países sul-americanos, em 1983. Essas reflexões basearam-se em análises músico-culturais de obras como Union, Mardi Gras, La Bamboula, e The Banjo.

Nessa ocasião, salientando-se o significado de Gottschalk para o estudo histórico do interamericanismo, discutiu-se a necessidade de renovação desses estudos em função das transformações políticas atuais na Europa e nas Américas, o que valia também para os estudos transatlânticos.

Gottschalk foi considerado nos trabalhos dedicados a processos músico-culturais na América Latina no século XIX no âmbito do amplo projeto Music in the Life of Man/The Universe of Music: a History do Conselho Internacional de Musica da UNESCO. Nesse contexto, foi considerado no Encontro Regional para a América Latina e o Caribe realizado concomitantemente com Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia, em 1997.

Dos eventos mais recentes, Gottschalk foi alvo de consideração em cursos universitários de História da Música no Encontro de Culturas, Processos Musicais em Contextos Globais, e Música das Américas nas Universidades de Bonn e Colonia, realizados em cooperação com o I.S.M.P.S., As reflexões foram acompanhadas por estudos realizados em vários países de atuação do pianista-compositor, salientando-se aqui Cuba e o Havaí.(Veja)

Em seminário dedicado à Pesquisa Musical e Política na América Latina, em 2008, considerou-se o significado de Gottschalk no contexto político-cultural da sua época, marcado por anelos, lutas pela independência e afirmação nacional em vários páises da América Central e do Sul e de movimentos políticos nos EUA.

Nessa ocasião, salientou-se que o estudo político-cultural de Gottschalk  e sua obra não se limitam à época de sua vida. Êle deve abranger também a sobrevivência ou a retomada de suas composições com elementos nacionais no século XX.

Singular sobrevivência da Fantasia sobre o Hino Nacional Brasileiro

Enquanto grande parte da obra criadora de virtuoses do século XIX caiu no esquecimento e foi desqualificada com a mudança de critérios que procuravam uma renovação do repertório pianístico e do ensino do piano através da superação de fantasias, paráfrases, variações e outras peças de efeito brilhante do passado, paradoxalmente reviveu e se manteve por décadas no Brasil do século XX, a sua fantasia triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro.

A principal responsável por essa revitalização em inaudita revalorização da obra de Gottschalk foi Guiomar Novaes (1895-1979), a grande pianista que por décadas instituiu a prática nos seus concertos realizados no Brasil de incluir a composição como número extra, não mencionado nos programas.

Arquivo A.B.E.
Embora não incluida em geral nos programas impressos, o que seria visto como uma aberração no contexto de obras criteriosamente escolhidas, a fantasia triunfal de Gottschalk surgia já na década de 20 quase que como um emblema da artista, o que permaneceu durante a sua vida.

Não basta, para compreender esse gesto, que se considere paralelos de sua vida com a de Gottschalk, lembrando que também ela teve formação francesa, que viveu e atuou nos Estados Unidos, onde atuou em ações e meios patrióticos e alcançou extraordinário êxito.

Também não basta supor ou sugerir que a pianista, que cultivava um repertório internacional, com relativamente poucas obras de compositores brasileiros, e se encontrava praticamente radicada nos Estados Unidos, executava essa obra apenas diplomaticamente para demonstrar a manutenção de seus sentimentos para com a pátria e manter a simpatia de seus ouvintes.

A intensidade com que a obra de Gottschalk foi sempre esperada e recebida como encerramento de seus concertos no Brasil - e que atingiu quase características de culto - indica o quanto essa obra vinha de encontro a situações mentais e emocionais do público frequentador de concertos. Era esse que, em geral, clamava pela execução da obra após a artista ter-se despedido diversas vezes, levantando-se de suas poltronas e escutando-a em pé.

Esse ato de respeito com laivos de empolgamento e ufanismo conferia uma solenidade patriótica à fantasia triunfal do século XIX nos seus concertos que, embora contrastando com o seu repertório, conferia ao todo um sentido de orgulho nacional e de brasilidade, mesmo sem ter-se escutado obras de compositores brasileiros pela pianista que vivia nos Estados Unidos.

Esse fenômeno na recepção da obra e da pianista no Brasil deixa de ser paradoxal considerando-se ser êle expressão de situações e desenvolvimentos político-culturais possibilitados pelo desfecho da Primeira Guerra Mundial. Com a vitória de países como a França e os Estados Unidos - do lado dos quais o Brasil também lutara - acentuou-se o sentido de entusiasmo comum dos vitoriosos de guerra, de triunfo, de patriotismo militante.

Apesar de todas as aparências inócuas politicamente dos programas e da personalidade discreta da artista quanto a declarações expressas de convicções e posicionamentos, os seus programas adquiriram com o a fantasia triunfal de Gottschalk relevante significado político, não por palavras, mas por meios emocionais. A audição dessa obra vinha de encontro não apenas às predileções dos amantes do virtuosismo brilhante, mas também e sobretudo aos sentimentos nacionalistas daqueles que se mantinham na luta contra aqueles vistos como inimigos da pátria, esquerdistas, comunistas, ateus, imigrantes competidores. Era também meio suave, não explícito de propaganda, conquistando mentes através das emoções.

„Si eu pudesse ter estrangulado o Sr. Gottschalk ...“

Entre os críticos dessa prática de Guiomar Novaes de executar como número extraordinário a fantasia triunfal de Gottschalk destacou-se Ernani Braga (1888-1948), músico e professor nascido no Rio de Janeiro, mas que também atuou em São Paulo.

Nos seus comentários sobre o segundo concerto de Guiomar de Novaes em São Paulo a 19 de novembro, publicados no dia 21 de novembro no Jornal do Commercio, Ernani Braga, após reconhecer os altos méritos, a projeção internacional da pianista, e a sua trajetória marcada pela procura da perfeição, estipulou como uma tarefa a ser para ela cumprida deixar de incluir a peça de Gottschalk.

„Os fados tutelares da musica andaram, ante-hontem, amaveis a distribuir sorrisos. Coube um delles a Guiomar Novaes, que encontrou a sala do Municipal repleta, anciosa de lhe ouvir o segundo concerto. Segundo concerto de um virtuose, em São Paulo, com boa casa! Sie não se desse com quem se deu, esse phenomeno mereceria estudo serio.

Outro daquelles sorrisos me veio dirigido, permittindo-me ir applaudir a pianista patricia desta vez, pois da primeira ficara retido em casa, cuidando de doente grave.

Guiomar é uma artista cujo elogio está feito e estabelecido definitivamente, ha muito tempo. De todos os matizes. De todas as temperaturas. Em quasi todos os idiomas. Nenhum dos adjectivos em contraste que eu conseguisse enfileirar em algumas columnas neste jornal seria novo. De onde se conclue que a nossa patricia não é daquelles artistas que criaram fama e se deitaram a dormir. A sua trajectoria para a perfeição demonstra que trabalha sempre e esse esforço lhe realça o merecimento.

Menina dos olhos do publico de São Paulo, aureolada de uma sympathia que toca as raias do fetichismo, forte da autoridade que lhe dá a opinião de todas as platéas do mundo, brilhantemente prestigiada pelo juizo que a seu respeito teem formulado os criticos mais rabujentos, daqui e dalem, Guiomar Novaes tem um dever de consciência a cumprir: - extirpar do seu repertorio, da sua memória, das suas unhas, do teclado do seu Steinway, até os minimos vestigios da ignobil Fantasia Triumphal Sobre o Hymno Nacional Brasileiro.“

A crítica de Ernani Braga não se resumia a deficientes qualidades estéticas da obra de Gottschalk, qualificada não só como indigno do seu repertório como também infame. Nas suas duras palavras, a pianista cometia com essa obra um ato criminoso de envenenamento do público que, com confiante na sua autoridade e tomado pela fascinação de sua arte, deixava-se influenciar. O crítico chegava a desejar que Guiomar Novaes logo deixasse o país, voltando aos Estados Unidos.

„Porque a notavel virtuose commette, contra o publico, o crime dos vendedores de drogas nocivas. Envenena-o, dando-lhe a saborear o estupefaciente de sua predilecção. E o publico, criança grande e sem discernimento, recebeno e suas mãos, nas quaes confia cegamente, o pestilento repasto, regala-se gostosamente, certo de estar ingerindo o mais innocente manjar. Ah! si eu pudesse ter estrangulado o Sr. Gottschalck, antes do seu hediondo attentado contra Francisco Manoel, contra os nossos ouvidos, contra o bom gosto do publico paulista, contra Guiomar Novaes!...

Que a terra lhe seja leve e este meu desabafo lhe não faça perder tempo em suas transmigrações para mundos mais remotos, de onde nos não possa enviar prebendas como aquella.“ (Ernani Braga, „Concertos“, Jornal do Commercio, 21 11. 1926)


„idéia um tanto comica, já descambando para o burlesco, de se ouvir de pé ...“

Diferentemente, mas também com palavras ferinas, foi a crítica de Artur Imbassaí (1856-1947), médico, músico e crítico do Jornal do Brasil. Com a sua formação em banda de música e de salão e de geração mais antiga, não podia negar que não apreciasse a música de Gottschalk. A sua crítica dirigia-se sobretudo ao fato do público levantar-se para ouví-la. Por essa razão, negou-se a permanecer no Teatro Municipal do Rio de Janeiro até a despedida de palco de Guiomar Novaes por ocasião de seu recital de 12 de Junho de 1935.

Na sua argumentação, lembrava que à época do Império, quando o próprio compositor a executou em presença do Imperador, não houve tal gesto manifestador de respeito e mesmo veneração. Se o público não tinha escutado em pé as obras dos grandes compositores representados no programa, era inconcebível que isso acontecesse justamente na audição de Gottschalk.

Recital no dia 12 de Junho de 1935, Jornal do Brasil

Terminado o recital, concedeu Guiomar Novais, a toos os seus apreciadores, que são sem numero, varios extras. Destes, ouvi dois, apenas, que bem mereceram os aplausos que lhe foram rendidos.

Soube que ela, depois, e a pedido, executou o Hino Nacional, de Gottschalk.

Já eu me havia previdentemente retirado, não porque a musica não me agrade, sobretudo quando executada com a pericia da nossa estimada virtuose, mas para que da minha presença ali não se inferisse uma aprovação da minha parte á idéia um tanto comica, já descambando para o burlesco, de se ouvir de pé aquela musica.

Ainda não pude descobrir a necessidade dessa reverencia, que eu contuno a considerar sobremaneira irrisoria.

Quando pela primeira vez, aqui no Rio, Côrte do Imperio, se ouviu esse Hino, foi êle executado por seu proprio compositor, Gottschalk, e na presença do Imperador do Brasil, D. Pedro II.

Apesar desta circunstancia, suficientemente ponderosa, não consta que alguem se puzesse de pé para ouvir a inspirada fantasia do compositor norte-americano.

Mas, então, por que toda aquela gente pôs-se de pé, ante-ontem, quando Guiomar Novais se prontificou a dar execução àquele numero suplementar?

Por ir ser tocado por ela, uma brasileira?

Sete caso devia-se ouvir de pé, ou de joelhos, todo o recital, até porque no programa figuravam numeros da mais alta valia, a começar pela Fantasia Cromatica e Fuga, e Bach.

Teriam, porventura, se perfilado todos aqueles bons apreciadores da musica e respeitadores da memoria dos autores mortos, em homenagem póstima a Gottschalk, uma vez que se ia ouvir com recolhimento aquelas paginas que já parecem imprescindiveis nos recitas da distinta artista, aina que nos seus programas se registrem composições das mais notaveis celebridades da arte?

Se assim acontece, é de presumir que o espírito do defunto acabe invejado e por isso mesmo odiado por outros espiritos, que, encarnados no seu tempo, foram, na terra, notaveis compositores de musica, e daí o alvitre, talvez, do pianista, de pedir á sentimental platéia, embora gratissimo ao cativador obsequio, que se abstenha, d‘ora avante, dessa prova de veneração com que uma bôa parte da assistencia se aborrece e incomoda, vendo-se obrigada a hilariante atitude do levantamento, para não se retirar da sala, com escândalo.

Não creio que o gesto religioso seja oriundo do patriotismo, desde que tambem um nosso patricio, diretor de orquestra, já compôs igualmente uma fantasia sinfonica sobre o Hino Nacional, fê-la ouvir no mesmo Municipal, ficando todos sentados nos seus lugares.“ (Artur Imbassai, „Guiomar Novais“, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro 14 de Junho de 1935)

Esta observação de Imabassí de que o gesto que sugeria um ato de culto não podia ser considerado como expressão de patriotismo, pois em caso similar de composição sobre o Hino Nacional os ouvintes tinham permanecido sentados, denota as complexas conotações da peça de Gottschalk na interpretação de Guiomar Novaes. Na época, já não se tratava da situação dos anos posteriores à Primeira Guerra, mas daqueles que antecederam a Segunda Guerra.


„... para mais particular sympathia dos brasileiros na divulgação da nossa nacionalidade“

Em Julho de 1938, o Diário de Notícias publicou 24 edições sucessivas, consagradas ás relações do Brasil com os Estados Unidos, publicadas no ano seguinte em coletânea. (Brasil-Estados Unidos: Factores de Amizade entre as duas grandes patrias americanas, Rio de Janeiro: Diário de Notícias 1939)

A Fantasia Triunfal foi objeto de duas matérias, uma dedicada ao compositor  („D‘Or O grande compositor norte-americano Gottschalk e o Hymno Nacional Brasileiro e outra, em sequência, reproduzindo uma entrevista com Guiomar Novaes durante um ensaio, na qual a pianista fala sobre a arte musical nos Estados Unidos.

Contrastando com a opinião negativa das obras de Gottschalk formulada de forma tão drástica por Ernani Braga há anos, o crítico salienta o significado do pianista-compositor norte-americano. O fato de ter-se destacado pelas suas execuções de efeitos de técnica pianística é relativado com a citação de grandes pianistas e pelo gosto da época. Com a sua obra, Gottschalk teria ficado para sempre ligado ao símbolo musical do Brasil. Êle teria prestado um grande serviço cultural ao Brasil sobretudo por ter contribuído à simpatia dos brasileiros para com a divulgação da nacionalidade.

O comentarista sugere, assim, que a Fantasia Triunfal nos concertos de Guiomar Novaes tinha a função de conquistar a simpatia do público para a propaganda brasileira, tema de grande atualidade na época também nos Estados Unidos. Guiomar Novaes alcançava assim também simpatia para o seu papel na propaganda Brasil na América do Norte.

„Louis Moreau Gottschalk, pianista americano nascido em Nova Orleans, a 2 de maio de 1829, acha-se intimamente ligado á historia do Hymno Nacional Brasileiro, de Francisco Manoel da Silva.

Integrado na escola de Liszt e contemporaneo que foi do famoso Gismondo Thalberg - emulo e rival do primeiro - Gottschalk explorou um estylo cheio de bravura, orientado pelas grandes exhibições do virtuosismo technico.

Compositor inspirado, cedeu, porém, ao gosto do seu tempo quando compoz Fantasias, Arranjos e Paraphrases, em que as difficuldades de execução attingiam ao maximo e tornaram-se, por isso, um mostruario do acrobatismo pianistico a que se submettiam receosos os mais bravos dominadores do teclado.

Dahi haver Gottschalk realizado a sua celebre Fantasia sobre o Hymno Nacional Brasileiro, de Francisco Manoel da Silva, passando a se chamar simplesmente Hymno Nacional de Gottschalk e cujas harmonias de intenso brilho e maravilhoso effeito tanto empolgam a alma brasileira.

Deixando, embora, outras peças de real valor, sobretudo technico, foi aquella, porém, a que na realidade o immortalizou no Brasil, ligado como para sempre ficou á nossa musica-symbolo até hoje executada pelos mais eminentes pianistas patricios e a que o publico não se cansa de ouvir e admirar.

Mas Gottschalk não foi apenas o artista extraordinario que arrebatou a cidade do Rio de Janeiro. Deve-se a elle um dos maiores impulsos artisticos realizados em nosso paiz, não só pelos seus memoraveis recitaes, que constituiam verdadeiros acontecimentos na vida da nossa capital, como ainda pelas suas realizações symphonicas de grandiosas proporções, como aquella que levou a effeito em 2 de junho de 1869 e em que tomaram parte 650 musicos, inclusive 28 pianistas.

Suscitando um gosto mais elevado pela musica em nosso meio, encaminhando o paladar artistico do nosso publico para outras manifestações que não sómente as da musica lyrica, que então constituia a exclusiva predilecção do povo brasileiro, Gottschalk prestou relevante serviço cultural ao paiz, como efficaz orientador das preferências estheticas de nossa gente, contribuindo ainda, para mais particular sympathia dos brasileiros na divulgação da nossa nacionalidade, através varias das suas producções versadas sobre motivos da nossa paizagem.

(...)

Guiomar Novaes, a grande pianista patricia, não consegue finalizar um concerto no Brasil sem que o publico que a ouve não a convide a executar o Hymno Nacional de Gottschalk, o que ella sempre faz com a maior vibração patriotica, sob applausos os mais enthusiasticos. (op.cit. 297-298)

„... um prolongamento da gloria da interprete ...“

„Guiomar Novaes fala sobre a arte musical nos Estados Unidos“

„Suas primeiras palavras são incertas. Ella explica: está ensaiando peças novas, para os extras.

Uma velha historia nos vem á lembrança: as variações sobre o Hymno Nacional, que a sra. Guiomar Novaes tem de tocar em todos os seus concertos. Gottschalk, o celebre compositor americano, tendo estado no Brasil, onde foi recebido festivamente, decidiu agradecer a recepção com uma delicada homenagem. Fez, então, as variações sobre o Hymno Nacional, peça de execução difficil, que cedo se tornou pedra de toque da virtuosidade dos nossos pianistas. Sem que possúa valor musical de excepção, não constituindo mesmo uma peça de extraordinario valor musical para entendidos, tornou-se para os leigos que gostam de musica uma pura maravilha. Contribuiu para isso, a principio, a agradavel circumstancia de se tratar de uma peça que tinha como motivo melodico a musica do Hymno Nacional Brasileiro. Depois, porque encontrou certa vez em Guiomar Novaes uma interprete excepcional, que deu a essa peça tamanha e tão rara expressão que se tornou desde logo um prolongamento da gloria da interprete. Desde então, não ha concerto de Guiomar Novaes em que um publico exigente e enthusiasta não peça, aos gritos, o Hymno Nacional de Gottschalk - uma abreviação popular dessa peça.

Agora, vendo Guiomar Novaes ensaiar peças para os extras, lembramo-nos das variações sobre o Hymno Nacional e das historias que sobre Gottschalk se contava no Rio, ao tempo e sua visita.“ (pág. 300-301)


De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos reservados

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro de L M. Gottschalk (1829-1869) nas suas implicações políticas - críticas de Ernani Braga (1888-1948) e Artur Imbassaí (1856-1947)“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 156/11 (2015:04). http://revista.brasil-europa.eu/156/Fantasia_Triunfal_sobre_o_Hino_Nacional.html


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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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