O Brasil no Patriotic Concert de Toronto - 1917
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 156

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 156/13 (2015:4)




Massey Hall 1917
O Patriotic Concert do Women‘s Musical Club
Brasil em Toronto: memória musical I


Trabalhos da A.B.E. no Canada 2015. Telus: Centre for Performance and Learning, Royal Conservatory of Toronto
Edward Johnson Foundation, University of Guelph

 
Arquivo A.B.E.
A passagem dos 450 anos do Rio de Janeiro, em 2015, cai em época marcada na Europa por rememorações da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Torna-se oportuno, assim, considerar com especial atenção essa época na história cultural do Rio de Janeiro, o período imediatamente anterior, aquele dos anos bélicos e os posteriores à derrota das potências centro-européias e a vitória da França, Grã-Bretanha e Império Britânico, USA e muitos outros países aliaos, entre êles também o Brasil. (Veja)

A Guerra e seu desfecho trouxe a derrocada da antiga ordem européia e uma profunda transformação da configuração poilítica e político-cultural internacional. Antigos referenciais culturais modificaram-se, centros e regiões até então menos relevantes nas interações mundiais passaram a ganhar em significado. Este foi o caso não apenas de metrópoles européias de países vencedores, em particular Paris e Londres, mas sim também e sobretudo dos Estados Unidos e do Canadá.

Na análise de processos culturais norte-americanos norte-americanos/brasileiros que então se intensificaram, cumpre dar uma especial atenção ao papel exercido por mulheres. Personalidades e associações femininas empenharam-se em tarefas humanitárias, de amparo a combatentes e de assistência a feridos, organizando para isso encontros vários e eventos de cunho patriótico, palestras e concertos, nos quais participaram também sobretudo artistas-mulheres. A Guerra constituiu assim importante fator na solidificação e dinamização dessas ligas e sociedades, no aumento de seu significado e influência, assim como também da carreira de pianistas, cantoras ou outras intérpretes e artistas.

Houve uma personalidade feminina brasileira que participou intensamente dessas atividades de grupos e associações femininas na América do Norte: a pianista Guiomar Novaes (1888-1984). Indo para os Estados Unidos justamente à época da Guerra, a sua trajetória foi estreitamente relacionada com a movimentação feminina de finalidades patrióticas. Foi essa sua participação em atividades patrióticas norte-americanas um dos caminhos que lhe abriram as portas da sociedade, de rêdes de influência, e um dos fatores da extraordinária simpatia e admiração que logo alcançou. O sucesso alcançado na América do Norte, por sua vez, repercutiu no Brasil.

O papel exercido pela pianista brasileira no movimento feminino patriótico dos Estados Unidos já foi alvo de estudos promovidos pela A.B.E.. (Veja) Cumpriu, agora, em estudos realizados em cidades canadenses, considerar com particular atenção a sua presença no Canadá sob condições similares, ou seja, no âmbito do empenho e ligas femininas voltadas a serviços humanitários durante a Guerra canadenses nas suas relações com as dos Estados Unidos.

Esse intento dirige o olhar à província de Ontario, relacionada na sua vida musical com aquela de cidades estadounidenses nas quais a pianista brasileira frequentemente atuou, e, sobretudo, com New York.

Esses estudos contribuem também ao aprofundamento da memória histórica da numerosa comunidade lusófona e seus descendentes dessa região canadense. Toronto, em particular, surge como uma cidade que, orgulhando-se hoje da sua diversidade músico-cultural, experimenta considerável atividades de brasileiros, especialmente no âmbito da música popular e da dança. O resgate de fatos e desenvolvimentos do passado torna-se, aqui, necessário para avaliação adequada e diferenciada de decorrências e seus pressupostos. Serve, assim, para um processo consciente e esclarecido de imigrantes ou residentes nos seus anelos e esforços integrativos e diferenciadores.

O Brasil em Toronto antes da Guerra e o Concerto Patriótico de 1917

Se já há muito o Brasil encontrava-se presente em Toronto devido aos vínculos econômicos e empresariais na área energética e de transportes no âmbito da Brazilian Light and Traction Company (Veja), os elos de amizade entre o Canadá e o Brasil tomaram novo significado com a Guerra Mundial, em particular com a declaração de guerra do Brasil à Alemanha e a entrada do país no conflito, em 1917.

Toronto. Foto A.A.Bispo 2015
No dia 20 de Fevereiro desse ano, a Women‘s Musical Club de Toronto organizou um concerto patriótico no tradicional Massey Hall com o objetivo de angariar fundos para a Cruz Vermelha de Toronto (Toronto Red Cross Society). O concerto inseriu-se na programação do Massey Hall da estação de 1916/1917.

A Red Cross no Canadá tinha sido reestruturada por um ato governamental em 1909, tornando-se uma entidade destinada à promoção de ajuda voluntária de acordo com a Convenção de Genebra.

A socieade possuia já um passado de décadas na assistência a militares, já tendo atuado na Rebelião Norte/Oeste de 1885. Fora fundada por George Sterling Ryerson (1855-1925), médico e político que organizou a representação canadense da Sociedade Britânica da Cruz Vermelha. A sociedade angariou fundos para a assistência de combatentes na Guerra Hispano-Americana em 1898 e da Guerra na África do Sul, em 1899, retomando com intensidade a sua ação com a eclosão da Primeira Guerra.

A sociedade, nesses anos conseguiu arrecadar grandes somas destinadas ao envio de mantimentos e à manutenção de hospitais para os combatentes na Inglaterra e na França. Também possibilitou eventos para a recreação de soldados. O Patriotic Concert de 1917 inseriu-se nesse contexto,

Anna Case (1888-1984), Lady Hendrie (1862/3-1928) e Lady Mary Pellatt (1857-1924)

Com os contatos que esse clube feminino canadense mantinha com similares instituições estadounidenses, alcançou-se a colaboração de duas artistas que se empenhavam em empreendimentos patrióticos similares organizados por associações femininas nos Estados Unidos: Anna Case , soprano do Metropolitan Opera de New York, e Guiomar Novaes (1895-1979).

Anna Case, que trazia o renome de ter participado na primeira execução de Boris Godunov de M. Mussorgsky (1839-1881) em 1913 no Metropolitan, foi acompanhada ao piano por Charles G. Spross (1874-1961).

O significado do Patriotic Concert do clube feminino revela-se no fato de ter-se realizado sob o patrocínio honroso da Duquesa de Devonshire e de Lena Maude Hendrie (Henderson), conhecida como Lady Hendrie, a esposa de Sir John Stratheam Hendrie (1857-1923), Tenente-Governador de Ontário à época (1914-1919).

Esse Governador, nobilitado em 1915, empenhava-se em dar apoio aos esforços militares do Canadá na Guerra, auxiliando soldados e angariando fundos. Apoiado em assuntos humanitários de assistência e na propaganda de arregimentação militar e de levantamento de ânimos pela sua esposa, co-organizou esta o Concerto Patriótico através do Women‘s Musical Club.

Damas de influência no Women‘s Musical Club, Toronto

O clube musical de mulheres de Toronto era presidido pela esposa de George Dickson (1846-1910), professor do Hamilton Collegiate e fundador, com a sua mulher, do St. Margaret‘s College de Toronto, instituição de preparação feminina. Com os seus elos em Hamilton, tinha proximidade com o Governador, através das suas atividades de ensino, com a formação feminina.

A Sra. Dickson era assistida por outras damas da sociedade como Miss Carolyn Warren ou outras casadas com homens influentes de Ontario (F. N. G. Starr, W. G. Lambe, J. F. Ross, Dalton Davies, W.J. McWhinney, W. J. Elliott, H. M. Wetherald, Austin Campbell).

Entre as patronesses do clube, distinguia-se Lady Mary Pellatt, esposa de Sir Henry Pellat (1859-1939), relacionado com o Brasil através de sua participação em companhias de força, luz e transportes em São Paulo e no Rio de Janeiro. (Veja) Lady Pellatt era, desde 1912, Chief Commissioner of the Girl Guides of Canada. Esse movimento, iniciado na Inglaterra em 1909, correspondendo ao desejo de jovens de participar no movimento dos escoteiros, passara já em 1910 a desenvolver-se no Canadá, estruturando-se nas várias regiões do Dominion. Desde 1913, Lady Mary Pellatt passou a organizar encontros de Guides na sua mansão - a Casa Loma. (Veja)

Nova música coral de teor patriótico e militar e visa recreativa

O dia do Patriotic Concert foi marcado por um almoço no Cafe Royal, acompanhado por apresentações de música vocal e instrumental patriótica e de arregimentação de soldados e novos compositores interpretadas pelo The Elgar Choir, de Hamilton - cidade do Governador - e pelo National Chorus, de Toronto.

O programa constou das seguintes peças: Ye Mariners of England e A Battle Ode de C. Lucas; Call all Hands, de A.A.Neephamm, Land of Hope and Glory de E. Elgar-Fagge; He Maketh Wars to Cease, de W. H. Bontemps, How Lovely Are Thy Dwellings, de S. Liddle-Fagge, Like as the Hart Desireth, de F. Allitsen, God and the universe, de C. V. Sanford, Fear Thou Not, de C. Lucas e The Nations‘ Prayer, de F. Allitsen.

No Cafe Royal, um dos principais centros da vida social e sócio-cultural de Toronto, realizavam-se jantares diários com a participação de artistas e espetáculos de cabaret e de dança. No European Plan, tinham lugar sessões do Dancing - Jardin De Danse - todas as noites.


O concerto de canto e piano no Massey Hall

O concerto no Massey Hall constou de alternâncias entre apresentações de Guiomar Novaes e Anna Case.

A pianista brasileira interpretou de início o Carnaval, Op. 9 de R. Schumann. Tudo indica que essa escolha foi feita por relações de sentidos estabelecidas entre o conteúdo literário da obra e a situação do momento, consubstanciadas na imagem da „Marche des Davidsbundler contre les Philistins“. (Veja)

Após as peças interpretadas pela soprano, apresentou Chant Polonais de F.Chopin-F. Liszt, significativo na situação da Guerra, Shadow Dance de E. MacDowell (1860-1908), representando a criação norte-americanada, e Feux-Follets de seu professor I. Philipp (1863-1958). Por fim, entre uma e a última apresentação de Anna Case, executou a 10th Rhapsodie de F. Liszt. A pianista brasileira soube, assim, na escolha do programa, reunir obras de conotação patriótica, de sentimentos norte-americanos e representativas da cultura francesa, vinculadas entre si através de sua própria biografia. Não foi, portanto, um programa arbitrário, mas refletido e com sentidos político-culturais.

Toronto como cidade de tradição pianística e de ensino do piano e do canto

Assim como o Rio de Janeiro, Toronto gozava fama de ser uma cidade onde se ensinava e cultivava intensamente o piano, considerado parte indispensável da educação feminina. Além de professores particulares, Toronto possuia a Canadian Academy of Music, Limited, „The School with an Artistic Reputation“, em cujo grêmio atuavam artistas reconhecidos pelos mais exigentes críticos. A Academia era presidida pelo Tenente-Coronel A. E. Gooderham, sendo o seu diretor musical Peter C. Kennedy.

A principal instituição de ensino musical da cidade era o Toronto Conservatory of Music era administrado pelo regente e organista Augustus Stephen Vogt (1861-1926), o fundador do Toronto Mendelssohn Choir e um dos representantes no Canadá do movimento de cultivo da música a cappella com os seus anelos de redescobrimento do antigo repertório coral e da reforma sacro-musical. O seu pai, George Vogt, construtor de órgãos, tinha imigrado da Alemanha para o Canadá à época da Revolução de 1848.

Significativo desse interesse pela música vocal de autores mais antigos em Toronto da época foi o fato de Anna Case, no seu programa, ter incluido peças como o Lamento de Ariana, de C. Monteverdi (1567-1643), e canções inglesas antigas como „My lovely Celia“. Tendo dirigido o Conservatório até 1917, passando então à sua administração, Vogt empenhava-se à época no projeto de criação de uma faculdade de música na Universidade.

Também o canto, tanto solista como coral, era em Toronto intensamente cultivado. Um dos professores de técnica vocal era Paul Morenzo, que mantinha um estúdio de „Voice Placing and Coaching“, oferecendo formação em canto em italiano, francês e inglês.

A tradição de construção de pianos e órgãos de Toronto

O programa do Massey Hall de 1916/17 era ilustrado com jovem tocando um piano Williams.  A firma R. S. Williams & Sons Co.Ltd., com loja na Yonge Str., no centro de Toronto, remontava a uma manufatura denominada de Canada Organ & Piano Company, estabelecida em 1873, adquirindo a denominação de R.S. Williams Piano Company of Oshawa segundo o seu Richard Sudgen Williams, a partir de 1888.


À época do concerto, a firma era conhecida como R. S. Williams & Sons Co. Ltd, tendo como co-proprietário Frederick W. Bull. No programa, a firma apresentava-se como sendo a mais completa loja de instrumentos musicais do Canada. Nela podiam ser adquiridos violinos, guitarras e bandolins, instrumentos de banda Boosey, Williams, Couesnon e outros. Também realizavam consertos de instrumentos. A coleção de antigos violinos incluia jóias de grandes mestres italianos, tais como Stradivari, Guarneri, Amati, Maggini, Cappa, Tononi.


Uma das firmas tradicionais de pianos de Toronto era o The Newcombe Piano Company, Ltd, que tinha a sua loja no centro da cidade, na Yonge St.. A firma remontava a Octavius Newcombe, um antigo associado de Thomas G. Mason e Vincent Rich na firma Mason & Risch Piano Company of Toronto, estabelecida em 1871. Passando a construir instrumentos sob o seu nome em 1880, Newcombe criou a The Newcombe Piano Company em 1900. Os seus instrumentos, também órgãos e instrumentos mecânicos alcançaram renome pela sua qualidade, sendo difundidos por várias regiões canadenses. A firma alcançou uma medalha de ouro na Exposição de Paris em 1900 e tinha orgulho do fato da rainha Victoria ter adquirido um de seus pianos para o Windsor Castle.
Firma de manufatura de pianos de alta qualidade destinados a concertos foi a Heintzman & Co. Ltda. de Toronto, fundada em 1866 por Theodor August Heintzman (1817-1899)), fabricante nascido em Berlim, onde trabalhara em fábrica de pianos juntamente com Henry E. Steinway. Heintzman imigrara para a América do Norte em 1860, inicialmente a New York, a seguir a Toronto. Também essa firma possuia uma loja no centro da cidade, na King St.. Pela sua formação, os seus
pianos foram frequentemente comparados com os pianos da firma Steinway & Sons.

No programa do concerto, a firma salientava a supremacia na construção, a beleza de sonoridade e o toque delicado e seguro, a capacidade expressiva, a durabilidade e a beleza do Heintzman & Co. Player-Piano. O player-action era ação em alumínio patenteado, que nunca podia ser prejudicada com interrupção de ar e consequente perda de volume.

Uma outra firma de manufatura de pianos de Toronto era o The Nordheimer Piano & Music Company, Ltda, também com representação no centro da cidade, na esquina da Yonge e Albert Streets. No reclame feito para o concerto de Guiomar Novaes, a firma dava preito ao trabalho de mestres-artesãos do passado, que haviam criado pianos de grande valor, lembrava porém que esses instrumentos não podiam ser comparados com um moderno Nordheimer. Este procurava vir de encontro às exigências em sonoridade no cultivo doméstico da música da época. A companhia também possuia tradição de décadas, pois fora estabelecida em 844 pelos irmãos Samuel e Abraham Nordheimer, judeus alemães. Inicialmente atuando na área de importação de instrumentos, passou a construir pianos a partir da década de sessenta do século XIX. A partir de 1886, passou a atuar em parceria com Gerhard Heintzman, o que levou à criação da firma Lansdowne Piano Company.

Na medida em que Guiomar Novaes preferia pianos Steinway nos seus concertos (Veja) - o que aconteceu também em Toronto - tomava partido nessa competição quanto à alta qualidade de instrumentos que vigorava sobretudo na cidade canadense. É significativo, assim, que no programa do concerto patriótico tenha-se mencionado que Guiomar Novaes nele utilizava um piano Steinway, mas que este era de Nordheimer.


De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „Massey Hall 1917- O
Patriotic Concert do Women‘s Musical Club. Brasil em Toronto: memória musical I“. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 156/13 (2015:04). http://revista.brasil-europa.eu/156/Patriotic_Concert_Toronto_1917.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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