Concertos sinfônicos e educação estética
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 156

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

N° 156/9 (2015:4)



Concertos sinfônicos e educação estética no Rio de Janeiro
nas suas dimensões político-culturais antes e depois da Primeira Guerra
A
Sociedade de Concertos Symphonicos



Em continuidade a seminário de Pesquisa Musical e Política na América Latina da Universidade de Colonia

 

As atenções dirigidas ao Rio de Janeiro no ano das comemorações de seus 450 anos vem-se concentrando, nos estudos promovidos pela A.B.E., nas primeiras décadas do século XX. Esse fato resulta da concomitância da data com a das rememorações dos cem anos da Primeira Guerra Mundial na Europa. (Veja)

Como trágica cisão na história, a Guerra deu término a desenvolvimentos remontantes ao século XIX impregnados de confiança no progresso contínuo das ciências, da técnica, dos conhecimentos, da cultura e das artes.

A reconfiguração que transformou a antiga capital do Brasil - a mais extraordinária obra de urbanismo da Belle Époque - decorreu em anos de culminação dessa certeza no progresso e na evolução. Tinha como modêlo as grandes metrópoles européias, irradiantes no brilho representativo de sua arquitetura e avenidas, modernas nos seus meios de transportes e iluminação, pulsantes de vitalidade e energia criadora.

Entre as grandes capitais européias destacava-se Berlim, centro do Império fundado na Guerra Franco-Prussiana de 1870/71 - em Versailles, para a humilhação da França -, principal cidade da maior potência européia, intimidadora no seu poder, causa de admiração, inveja, de despertar de ambições e de acentuação de ressentimentos.

O esforço hercúleo de reconfiguração do Rio de Janeiro não foi simplesmente resultado de emulação de Paris, não foi ato gratuito de extravasão de vaidades ou de marcação de importância pubertária da maior república sul-americana. Ela baseou-se em visão do mundo e do homem de fundamentação científico-natural em dimensões ampliadas dos conhecimentos alcançados da Evolução das espécies, ultrapassando divisões entre ciências naturais e humanas, biologia, antropologia e sociologia.

Como salientado por representantes oficiais do Brasil em congressos internacionais na Europa Central, a metamorfose do Rio de Janeiro era uma questão de Evolução, a ser considerada sob critérios como ontogenese, filogenese e de recapitulação biogenética. (Veja)

Essa concepção revela o pensamento científico-filosófico do zoólogo e livre-pensador alemão Ernst Haeckel (1834-1919 ) que, apesar de reações contrárias, alcançara repercussão e aceitação internacional, também na França, sempre observadora atenta aos desenvolvimentos na nação vizinha rival.

A recepção latinoamericana do Evolucionismo - e assim do socialdarwinismo - deu-se, como de outros pensadores alemães, através da sua recepção francesa, sendo significativo que aqueles representantes do Brasil que salientaram o papel da metamorfose do Rio na Evolução tinham o seu centro de atuações na Bélgica, país de encontro, confronto e interações de esferas culturais franco-alemãs. (Veja)

Dimensões de conceitos de saneamento, higiene e revigoramento

Como a argumentação da representação do Brasil na Europa revela, a Evolução que se manifestava na reconfiguração do Rio era compreendida na sua integralidade, abrangente de todas as áreas culturais e da vida em processo saneador, de higiene e saúde física e mental, extirpadora de doenças de corpo e de psique, que em processo operativo radical possibilitava a recuperação e o revigoramento.

Nessa argumentação - e correspondendo à fundamentaç√ão científico-natural das concepções evolucionistas - a observação da natureza desempenhava papel metodológico básico, o que assumia importância transcendente na natureza inegualável do Rio.

Tratava-se nesse esforço gigantesco de fazer a urbe estar à altura de sua exuberante natureza de um procedimento que valorizava a Estética, compreendida como uma ciência da percepção visual e em geral do captável pelos sentidos.

Compreende-se, assim, que a propaganda brasileira centralizada no Rio metamorfoseado na Europa incluisse crítica cultural e estética, salientando o mau gosto e a falta de qualidade estética da arquitetura, das artes, na música e na condução de vida decorrente por último da colonização portuguesa, falhas não supridas, até mesmo acentuadas no século XIX.

Crítica cultural, reforma da urbe, da sociedade e anelos de re-educação

O edifício de concepções que justificou o novo Rio possuiu não apenas conteúdos de crítica político-cultural, como também intenções educativas.

A educação do gosto não partia do zero, mas representava também um saneamento, um tratamento de cura e recuperação que tinham como pressuposto a extirpação do mau gosto e a superação de problemas culturais vistos como doentios como a cidade velha comercial atacada por febres e epidemias. (Veja)

A música desempenhou uma função relevante tanto na crítica cultural e estética do passado, como nos esforços de regeneração e de (re-)educação estética na metamorfose do Rio de Janeiro.

Diferenças na compreensão de processos revigoradores e renovadores

Constata-se, porém, significativas diferenças quanto a concepções relativas à estética e à educação estética. Se na dança - como exemplificada na atuação de Maud Allan (1873-1956) no Rio de Janeiro - os intuitos renovadores eram muito mais amplos e fundamentados  em visões o mundo e do homem a partir do movimento na natureza e do natural no homem em libertação de normas estreitas do ballett (Veja), na música constata-se um muito maior conservativismo.

A educação estética foi aqui compreendida sobretudo no sentido tradicional de educação que não questiona fundamentos de concepções culturais, procurando apenas a sua renovação em sintonia com situações internacionais. Em ambos os casos havia porém um foco comum de crítica: a vida operística, de tanta importância para a sociedade do Rio de Janeiro.

A Socieade de Concertos Sinfônicos no ano da eclosão da Guerra

Um texto que merece ser reconsiderado como testemunho da ampla vigência e difusão publicística de concepções, assim como de sentidos de iniciativas e esforços estético-educativos foi publicado na revista A Illustração Brazileira, em 1914, ano da eclosão da Guerra.

O artigo traz à consciência dos leitores que ainda não se tinha bem compreendido os objetivos e a função da Sociedade de Concertos Sinfônicos. Estes eram dirigidos ao futuro, e a sociedade estava destinada a desempenhar importante papel na formação do gosto musical. O texto lembrava que se tratava de uma instituição formada por um grupo de artistas abnegados e idealistas que, enfrentando todas as dificuldades, cultivavam e difundiam programas sérios.

„Parece que o publico não comprehendeu, ainda, o papel que está reservado no Rio de Janeiro á Sociedade de Concertos Symphonicos. No entanto, esse esforçado grupo de artistas, que entre mil difficuldades se vem mantendo e cumprindo um programma serio, estaria destinado a ser um grande educador do nosso gosto em assumptos de musica.“

O artigo referia-se à Sociedade fundada dois anos antes, a 12 de outubro de 1912, que tinha como principais mentores os músicos, professores e compositores Francisco Nunes (1875-1934) e Francisco Braga (1868-1945).

Ambos tinham tido a sua formação na prática instrumental de música de banda; o primeiro, nascido em Diamantina e formado no Rio, era professor de clarineta no Instituto Nacional de Música, o segundo, também clarinetista, desenvolvera estudos na Europa, na França, mas em particular na Alemanha, tendo residido em Dresden e acompanhado de perto o debate estético-musical e político-cultural alemão, inserindo no rol dos brasileiros que visitaram Bayreuth. (Veja)

A educação do gosto não podia ser feita por companhias líricas

O autor do artigo de A Illustração Brazileira salienta esse papel educativo a que se propunha e ao qual estava destinada a Sociedade, lembrando que essa tarefa não podia ser cumprida pelas companhias líricas que visitavam o Brasil.

A ópera não seria adequada para esses fins, e a finalidade dessas companhias estrangeiras era comercial, oferecendo assim ao público o que este queria ouvir. Os programas apresentados não obedeciam assim a critérios coerentes, não possuiam uma linha diretiva refletida, mas eram marcados pela heterogeneidade derivada da intenção de corresponder ao gosto do público.

A ópera, assim, tão importante para a sociedade do Rio, não estava em condições de ser veículo de uma educação estética sistemática e racionalmente conduzida, justamente por ter finalidades comerciais, ou seja, não ideais e desinteressadas.

„Não serão, sem duvida, as companhias lyricas, que aqui se apresentam com fins exclusivamente mercenarios, com elencos de celebridades mais ou menos duvidosas e com repertorios heterogeneos, em que ha de tudo, desde Wagner ao insipido Puccini, que desempenharão esta nobre funcção. Nem se lhe póde exigir tanto.

As emprezas estrangeiras, que fazem uma temporada de dous ou trez mezes, precisam de arranjar grandes lucros. São emprezas commerciaes. Para isso é natural que procurem agradar o publico que paga, ou não terão publico. Não se podem occupar em manter um programma systematico, racional de educação esthetica. Nem a opera é o meio mais adaptavel a esse fim.“ (loc.cit.)

Essa crítica à cultura musical marcada pela ópera e por fins „mercenários“ do sistema dominador da vida musical reflete aquela de R. Wagner (1813-1883), resultante sobretudo de experiências em Paris e que se tornou um dos fatores fundamentadores da criação da Casa dos Festivais e presentes no movimento wagneriano.

Mesmo sem expressar as questionáveis conotações antisemitas de Wagner, o texto de A Illustração Brazileira reflete similar crítica aos interesses mercantís da vida musical centralizada na ópera e a sua ação deletéria no gosto do público, aos quais deveriam contrapor-se esforços idealistas e educativos de músicos de nobres e desinteressadas intenções.

Precedentes: a Sociedade de Concertos Populares de Carlos de Mesquita (1864-1953)

Aqui se revelam concepções e convicções que se coadunam com os contatos de Francisco Braga com o universo wagneriano de Bayreuth. Elas não foram, porém, resultantes dessas suas visitas, mas sim antes a elas precedentes, representando até mesmo um fator de importância que o conduziram à Alemanha, a Dresden e a Bayreuth.

Representam um duplo processo receptivo: o da recepção francesa da posição crítico-cultural alemã personificada em Wagner e a recepção brasileira dessa recepção francesa. Ela remonta a seus estreitos elos com Carlos de Mesquita (1864-1953), seu professor, fundador, em 1887, da Sociedade de Concertos Populares. (Veja)

Com essa fundação, Carlos de Mesquita, que se formara e se estabelecera em Paris, criara no Brasil uma instituição que não sí na sua denominação relacionava-se com os Concerts populaires de Jules Pasdeloup (1819-1887), falecido no ano da fundação brasileira.

Os Concerts populaires de Pasdeloup, tendo-se iniciado em 1861, ou seja, antes da Guerra Franco-Prussiana de 1870/71, salientara-se na difusão de obras de compositores alemães na França, como R. Schumann (1810-1856) e R. Wagner. Esses concertos populares foram sob muitos aspectos pioneiros na divulgação e no fomento do repertório sinfônico na França, demonstrando, nas circunstâncias de suas apresentações no Cirque d‘hiver em fins de semana - e não em concertos noturnos em recinto reservado de teatros-, intuitos de difusão de repertórios „sérios“, conquista de audiência e, portanto, de sentidos educativos.

A Sociedade de Concertos Sinfônicos no Rio de Janeiro de antes da Guerra não foi portanto  sem precedentes, pois já o seu principal regente - Francisco Braga - tinha participado da Sociedade de Concertos Populares há décadas atrás, para qual escrevera até mesmo a sua primeira obra de maior porte, diferenciando-se porém devido ao contexto cultural desde então modificado tanto na França como no Brasil.

Modêlos: Concerts Colonne e Lamoureux na difusão de música alemã na França

À época de seus estudos em Paris destacava-se sobretudo a Association artistique des Concerts Colonne ou Concerts du Châtelet, fundada em 1873 por Édouard Colonne (1838-1910), violinista e regente, cujos concertos eram frequentados por alunos do Conservatório e que se distinguia na difusão de obras sinfônicas de autores contemporâneos franceses e alemães, entre êles R. Wagner e R. Strauss (1864-1949).

Concorrente nessas atividades de difusão da música sinfônica era a Orchestre Lamoureux, fundada por Charles Lamoureux em 1881, violinista e regente, criada como sociedade em 1897 e sediada na Salle Gaveau. Também essa instituição de „novos concertos“ era dedicada à propagação de correntes novas e à conquista de público, em especial de obras de R. Wagner.

Lamoureux, que visitou Wagner em Bayreuth, apresentou pela primeira vez Lohengrin (1887) e Tristan und Isolde (1899) em Paris. A sua orquestra distinguiu-se também na execução de obras de J. Massenet (1842-1912), o mentor de Francisco Braga.

O artigo de A Illustração Brazileira menciona essas atividades de associações orquestrais sinfônicas em Paris na sua função de difusão refletida de obras e de criação de público com cultura musical, apresentando-as como modêlo da Sociedade de Concertos Sinfônicos do Rio.

É sabido que em Paris a cultura musical foi feita, a custo de enormes sacrificios, pelos concertos Pasdeloup, Colonne e Lamoureux. Foi das suas grandes audições, methodicamente preparadas, que sahiram os diletantti que enchem a sala da Opera ou da Opera Comica.

Em nossa capital, a Sociedade de Concertos Symphonicos poderia ter e deveria ter um destino semelhante.

Idealismo e pedido de amparo governamental ao programa educativo do gosto musical

O texto clama porém por auxílio governamental para os músicos associados e dedicados a tão nobres e idealistas tarefas estético-educativas e culturais.

Os concertos da sociedade eram pouco frequentados, pois não eram de moda, como a assistência às óperas do Teatro Municipal. Essa ajuda financeira por parte do Govêrno não deveria ter implicações na orientação programática da entidade, mas possibilitar que esta ampliasse as suas atividades. Seria necessário criar e manter um quarteto permanente - como aquele de Lamoureux ou das Séances Populares de Musique de Chambre - que se dedicasse à propagação de música de câmara, lembrando-se aqui quartetos da tradição austríaco e alemã de Mozart e Beethoven.

Para isso, porém, seria ncessario não deixal-a entregue aos seus proprios recursos, que são minguados. Se a moda ainda não impoz a necessidade de frequentar as suas audições, cumpriria, muito justamente, ao governo estimulal-as, amparando-as moral e materialmente, sem nenhum espirito administrativo, é claro.

O grupo que mantém esse gremio artistico é sincero, corajoso, abnegado, cheio de boa vontade. Não basta. A Sociedade é um esplendido nucleo que, para preencher todos os seus fins, tem de desenvolver-se, ampliando sua esphera de acção. Ser-lhe-ia indispensavel a manutenção de um quartetto permanente, que nos revelasse o que ha de melhor em Beethoven e em Mozart, para só lembrar estes dois grandes nomes.“

A Sociedade de Concertos Symphonicos, apesar do seu nome, deveria também possuir um coro e até mesmo uma escola de cantores de coro, para que pudesse executar e difundir no Brasil obras monumentais da música mais antiga como oratórios de G. F. Haendel, ou de J. S. Bach, citando aqui como desideratum a missa em si menor. Esse corpo coral seria necessário também para a realização de obras de um H. Berlioz no Rio de Janeiro.“

Educação do gosto musical através da difusão de obras do passado

Essas menções revelam mais uma vez o significado exemplar de Charles Lamoureux na Sociedade, uma vez que, após ter tido contato com as obras de Bach e Haendel na Alemanha e na Inglaterra, dedicara-se à sua divulgação na França, chegando para isso até mesmo a constituir uma sociedade (Société de l‘Harmonie Sacrée). A menção a Berlioz indica porém não só o empenho de Lamoureux como também o de Édouard Colonne no cultivo e propagação de obras do compositor francês.

„Não se comprehende, igualmente, que não disponha a Sociedade de um bom conjunto coral, eventualmente uma boa escola de córos, para que em seus concertos, além das paginas puramente symphonicas, nos desse a ouvir aquellas em que as vozes têm o seu papel indispensavel, e afim de que os grandes oratorios de Haendel, as composições de Bach, como a grande missa em si menor, ou de Berlioz, e tantas outras de incomparavel belleza não sejam um ideal inattingivel.“

O desejado apoio governamental possibilitaria que a Sociedade de Concertos Sinfônicos desenvolvesse plenamente o seu potencial de realização de um grande programa de educação estética, do gosto e de formação de público culto e de culto à arte.

O seu trabalho era movido pela constatação da superficialidade da vida musical concentrada nas temporadas oficiais, onde reinava o luxo e a moda, constituindo ocasiões antes sociais do que culturais. Voltando novamente à comercialização da vida musical, o autor de A Illustração Brazileira salienta a falta de renovação de repertórios e de artistas.

Repetia-se há anos as mesmas óperas por serem de gosto do público e satisfazerem assim interesses econômicos. Esse repertório italiano - o autor menciona de forma desvalorizadora G. Puccini (1858-1924) e A. Ponchielli (1834-1886) -  não podia ser assim substituido por outro de mais valor artístico, como de obras mais antigas de Mozart ou de C. W. Gluck (1714-1787), que então eram redescobertas na França.

„E a Sociedade de Concertos Symphonicos teria elementos para um grande programma educativo de arte, se em seu auxilio, e ao encontro de suas boas disposições, viessem os poderes publicos. Mas em assumptos de musica, o que nos preoccupa é o luxo das temporadas officiaes, que é antes um preito á moda e ás costureiras do que uma prova de bom gosto e de culto artistico. Nessas temporadas, ha vinte annos, ouvimos as mesmas operas estafadas, pelos mesmos artistas cansados e envelhecidos.

O criterio dessas representações é puramente economico. Se o publico gosta de Puccini, por que lhe havemos de dar Mozart? Se delira com Ponchielli, para que ir desencavar Gluck, cujas operas a França tem tirado uma a uma, dos archivos, com esplendido exito?

Nos proprios concertos do Municipal, na época official, além das tres ou quatro symphonias de Beethoven, sempre as mesmas, que é que se ouve?

Vida musical restrita às temporadas líricas e o „papel deseducativo“ da ópera

Prova de falta de cultura do público carioca e dos problemas das convenções da vida musical centralizada nas estações foram o pouco sucesso de audiência quando da apresentação de Richard Strauss no Rio de Janeiro.

Este anno tivemos Strauss com as suas maravilhosas composições de orchestra, e ninguem foi lá. Strauss chegou fóra da época, e o gosto, aqui, só conhece e só aprecia a musica no periodo da season. Tanto peor para o Sr. Strauss, que não veiu mais cedo, e teria então recebido as palmas convencionaes, que, no tempo opportuno, não se fazem esperar, nem rogar.

Tudo isso prova que educação musical no verdadeiro sentido da palavbra, não a temos, porque nunca se nos offereceu occasião de a fazer. Temos uma certa intuição, um gosto natural, estragado pelo uso dos grandes tenores e das estrellas do garganteio que nos deram do canto uma noção acrobatica.“

Desinteresse por L. v. Beethoven: insucesso de É. J. Risler (!873-1929) no Rio

Caso ainda mais grave fora o desinteresse do público do Rio de Janeiro por Édouard Joseph Risler (1873-1929) que, embora alemão de nascença, era considerado um dos maiores pianistas da escola francesa, distinguindo-se na interpretação e difusão de obras de Beethoven, tendo realizado o feito pioneiro de realizar o ciclo integral de suas sonatas em Berlim, em 1906.

„Tanto é assim que Risler, talvez o maior pianista que nos ultimos tempos passou pelo Rio de Janeiro, andou aqui despercebido, e um bello dia mandou-se mudar, tão discretamente como aqui chegára. Ninguem deu pela sua partida inesperada, como ninguem dera pela sua entrada aqui“.

Educação de gosto e êxodo de pianistas: L. d‘Alexandrowska e G. Novaes

O mesmo aconteceu com a pianista Luba d‘Alexandrowska, que dera no Rio de Janeiro apenas um único concerto, sem auditório.

Essa artista, hoje caída injustamente em esquecimento, nos seus programas no período posterior à Guerra na Europa e nos Estados Unidos sempre considerou obras de autores brasileiros, desenvolvendo papel significativo na formação de pianistas. Assim, na estação de 1921 da Società del Quartetto no Conservatório G. Verdi de Milão, ali executou obras de H. Oswald (1852-1931) (Chauve-Souris, Bébé s‘endort, Studio n°2) e A. Cantú (Egloga).

Esse desinteresse do público pela arte de Luba d‘Alexandrowska era motivo de uma previsão feita pela Illustração Brazileira, que afortunadamente não se realizou. O comentarista previa que o sucesso que alcançara a jovem Guiomar Novaes no Rio de Janeiro era passageiro, um fogo-fátuo, pois não era expressão de um público realmente culto musicalmente, de sólida formação estética.

„Ainda ha pouco Luba Alexandrowska, pianista de incontestavel vigor, deu um unico concerto, sem auditorio.

A Sra. Guiomar Novaes lá vae para os Estados Unidos, onde a apreciam e applaudem. E faz bem, que se ficasse, o successo que aqui tem alcançado havia de arrefecer, porque não é a expressão de um enthusiasmo real pela sua grande arte.“

Crítica à política cultural: organização de temporadas líricas por Walter Mocchi

Objetivo final de todas as considerações partidas da exemplaridade da Sociedade de Concertos Sinfônicos para a realização de um programa sistemático e racional de educação estética foi a crítica da política cultural da municipalidade do Rio de Janeiro que concedera permissão por cinco anos ao empresário Walter Mocchi para organizar as temporadas líricas. O Rio de Janeiro estava assim destinado a passar anos em estagnação quanto a repertórios e intérpretes, uma vez que apenas interesses comerciais determinariam as atividades.

„Agora teremos o Sr. Walter Mocchi com o monopolio de nos dar musica por cinco annos, absolutamente desembaraçado de concurrencias importunas, dono do campo, e portanto livre de nos impingir, a peso de ouro, o repertorio de ha cincoenta annos, com artistas da mesma edade.

Não se comprehende a que idéa bizarra, a que mysteriosos ideaes estheticos obedeceu a administração munipal para estabelecer semelhante privilegio, que põe nas mãos de uma empreza unica o direito incontrastavel de trazer ao Rio companhias lyricas.

Sem duvida o governo da cidade, em sua alta sabedoria, descobriu vantagens, que o publico ainda não entreviu, nessa forma de arranjar arte por empreitada. Não queremos prejulgar, embora o nosso scepticismo seja grande em relação a monopolios de qualquer natureza, mas, principalmente, aos monopolios em assumptos de arte.

Aqui ficamos, pois, na estacada, munidos de uma enorme boa vontade, para registrar as vantagens dessa providencia, e applaudir a Prefeitura e o feliz emprezario.“

Implicações políticas da crítica da ópera italiana: sindicalismo socialista

A crítica aqui formulada a Walter Mocchi (1870-1955) traz à luz dimensões políticas das questões tratadas e mesmo das posições e intenções de educação artístico-cultural e de formação de público da Sociedade de Concertos Sinfônicos.

O empresário nascido em Turim, que passou a interessar-se pela música através de sua esposa, a cantora Emma Carelli (1877-1928), após atuações como empresário teatral em Florença e em Milão, fundara em 1907 a Società Teatrale Italo-Argentina, empresa que procurava aumentar a lucratividade das realizações operísticas aproveitando a defasagem das estações líricas anuais na Europa e na América do Sul, levando, em 1908, à fundação da Società Teatrale Internazionale, adquirindo o Teatro Costanzi de Roma.

A crítica de a Illustração Brazileira revela-se como não totalmente justa, uma vez que, apesar de todo o interesse econômico, sobretudo as atividades de Emma Carelli não se caracterizaram apenas pelo cultivo de um repertório repetido, incluindo a interpretação de muitas obras novas.

Walter Mocchi tinha, porém, o seu nome marcado pelas suas atividades políticas de militante no partido socialista italiano; dirigira órgãos de publicidade partidária, entre êles o jornal Avanguardia Socialista e defendera um direcionamento revolucionário do socialismo em Milão e na Lombardia, empenhando-se a seguir em transformar o movimento socialista revolucionário em sindicalismo revolucionário.

Os elos de Walter Mocchi com o Brasil foram duradouros, estreitando-se após a morte da sua esposa, quando se casa com a cantora Bidu Sayão (1902-1999), atuante no Teatro Costanzi em 1926 e cuja carreira internacional organizou.

O sindicalismo revolucionário tão vinculado com o nome de Walter Mocchi, exerceu influencia em Mussolini e no fascismo. Abre-se aqui assim um complexo de relações e transformações políticas que, na sua internacionalidade, merece ser analisado diferenciadamente, uma vez que surge como de particular relevância para os estudos músico- culturais concernentes ao Brasil, em particular ao Rio de Janeiro.

O texto da Illustração Brazileira, ainda que destinado a um amplo círculo de leitores, pode ser considerado como significativo documento de concepções e intentos político-culturais e educativos do período anterior à Primeira Guerra.

É tarefa a ser desenvolvida em outros contextos considerar como as atividades da Sociedade de Concertos Sinfônicos no período posterior à Guerra revelam continuidade e transformações de diretrizes e intenções.

Esses estudos surgem como relevantes sobretudo para a consideração adequada de Francisco Braga, principal regente da instituição nos anos vinte. A Sociedade encerraria as suas atividades no início da década de 30 com a Nona Sinfonia de L. v. Beethoven. Sem apoio financeiro oficial - como salientado já em 1914, a sociedade não pôde sobreviver apesar do idealismo e dos esforços dos seus membros e dirigentes. Modificara-se, também, o contexto político-cultural nacional e internacional em que se inserira a sua fundação.


De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos reservados

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „Concertos sinfônicos e educação estética no Rio de Janeiro
nas suas dimensões político-culturais antes e depois da Primeira Guerra. A Sociedade de Concertos Symphonicos“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 156/9 (2015:04). http://revista.brasil-europa.eu/156/Sociedade_Concertos_Symphonicos.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne
Corpo consultivo - presidências: Prof. DDr. J. de Andrade (Brasil), Dr. A. Borges (Portugal)




 
Arquivo A.B.E.





©Arquivo A.B.E.