Vendo o Rio de bonde
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 156

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 156/7 (2015:4)




Vendo o Rio de bonde
na literatura de viagens e nas imagens do Brasil
Ernst von Hesse-Wartegg (1854-1918), Wilhelm Ule (1861-1940) e outros



Estudos em Toronto pelos 450 anos do Rio de Janeiro e 10 anos de visita da A.B.E. à estação de Santa Teresa.
Pela reintrodução de bondes na Av. Rio Branco



 

O significado da antiga capital do Brasil para a imagem do Brasil e suas transformações no Exterior vem sendo considerada desde viagem ao Rio de delegação européia de representantes de diversas áreas de conhecimentos em 1981.

A ela seguiu-se o primeiro Forum de Estudos de Processos Culturais Brasil/Alemanha, significativamente realizado  na cidade natal do engenheiro alemão atuante no Caminho Aéreo do Pão de Açúcar. (Veja)

As reflexões no Rio em 1981 e no Forum em Leichlingen, Alemanha, de 1982 estiveram sob o signo dos estudos de recepção cultural. (Veja)

Pré-condição para esse estudo foi o levantamento e a leitura de textos e imagens relativos ao Brasil de autores europeus.

A atenção dirigida ao „bondinho“ do Caminho Aéreo da cidade de realização do Forum dirigiu neste contexto a atenção também a outros meios de transportes, em particular ao bonde nas impressões ganhas pelos viajantes durante a sua estadia no Rio e que co-determinaram os seus olhares, interpretações e visões transmitidas nas suas publicações.

Em ano comemorativo do Rio de Janeiro pela passagem dos seus 450 anos, surge como oportuno recordar alguns aspectos dessa literatura. Essa releitura faz-se ainda mais oportuna pelo fato da A.B.E. ter promovido em maio de 2015 ciclo de estudos em Toronto, cidade marcada na sua história por esse sistema de transportes e que foi sede da companhia de bondes da „Light“ do Rio de Janeiro. (Veja)

Aquele que se utiliza dos bondes até o fim das linhas conhece o Rio da forma mais rápida

Em primeiro lugar, cumpre recordar as observações de Ernst von Hesse-Wartegg (1854-1918) no seu livro „Entre os Andes e o Amazonas: Viagens no Brasil, Argentina, Paraguay e Uruguay“, uma obra que teve ampla divulgação através de suas muitas edições. (Ernst von Hesse-Wartegg, Zwischen Anden und Amazonas: Reisen in Brasilien, Argentinien, Paraguay und Uruguay, 3a. ed. Stuttgart: Union Deutsche Verlagsgesellschaft 1915, 19-22)

Ernst von Hesse-Wartegg foi um dos mais destacados autores de relatos de viagem da época de culminância do Império Guilhermino antes da Guerra, tendo publicado experiências e impressões obtidas em várias partes do mundo.

No seu relato sobre o Rio de Janeiro, Ernst von Hesse-Wartegg revela que conheceu a cidade e os seus bairros mais distantes através de viagens de bonde. Tomava-os no ponto inicial das linhas no centro da cidade, no Largo da Carioca, permanecendo nos veículos até o respectivo fim dos trajetos. As suas descrições de diferentes bairros do Rio foram assim baseadas em impressões ganhas nos percursos das diferentes linhas.

Segundo as suas palavras, esse era o modo mais rápido de conhecer a cidade. A grande maioria dos visitantes estrangeiros e mesmo dos habitantes não poderiam gabar-se de conhecer todos os pontos interessantes da imensa cidade. Mesmo no centro da cidade havia bairros que todos conheciam apenas de nome, mas que nunca tinham visitado. Estes eram sobretudo aqueles nos morros, como do Castelo, Providência e São Bento,.

Segundo E. von Hesse-Wartegg, era uma característica do brasileiro interessar-se apenas pela sua vizinhança mais próxima. Não conheciam, assim, a realidade de outros bairros, Os estrangeiros residentes no Rio, por seu lado, queriam apenas voltar para casa o mais rápido possível após os seus negócios no centro, uma vez que a viagem para casa durava meia ou mesmo uma hora. Assim, as linhas de bondes estavam sempre lotadas ao redor das seis da tarde, quando grande parte daqueles que trabalhavam no centro retornavam a seus lares. Quem não tomasse o seu bonde no ponto inicial, assim, não ia conseguir um lugar para sentar-se. Os visitantes estrangeiros que quisessem conhecer o Rio de bonde deveriam, dessa forma, tomar o veículo na Carioca fora do horário de maior núnero de passageiros para poder apreciar a cidade calmamente, sentado.

Nessas suas viagens de bonde, Ernst von Hesse-Wartegg conheceu o bairro que lhe pareceu como um dos mais distintos do Rio, o Bonfim. Ao contrário, teve má impressão da zona do canal do Mangue e que era alcançado por uma linha que seguia por ruas logo atrás da estação. Se não fossem as magníficas palmeiras reais que o ladeavam, ali não havia nada que merecia ser mencionado. As palmeiras, com ca. de 40 metros de altura, elevando-se aprumadamente, com coroas perfeitamente iguais e com quase o mesmo número de palmas, eram a seu ver mais belas e impressionantes do que aquelas das alamedas do Jardim Botânico junto ao Corcovado e que tinham-se tornado famosas através das muitas descrições e imagens.

Quando o bonde atingia o pé da montanha, não tinha ali ainda o fim da sua linha. Graças à tração elétrica, o bonde podia seguir ainda um bom trecho adiante através da encantadora floresta, cheia de samambaias, cipós, orquídeas e parasitas raras, chegando até mais ou menos a metade da montanha onde, num palácio do antigo Imperador, encontrava-se um hotel muito frequentado.

Uma segunda linha, também construída por americanos, de 8 a 10 quilômetros de extensão, levava o visitante através da cidade e dos bairros então periféricos do Catete, Laranjeiras e Botafogo; após circundar os pés do Corcovado, atingia o Jardim Botânico, havendo um ramal para Copacabana à beira-mar.

Através da linha do Botafogo, o visitante tinha a oportunidade de passar pelos mais elegantes bairros do Rio, pelos grandes teatros e clubes, assim como pela praia da Gloria. Esse passeio ao longo da praia tinha o nome da igreja de Nossa Senhora da Gloria, mas era êle próprio glorioso na beleza das paisagens que oferecia.

Passando a praia da Gloria, o bonde atravessava o bairro do Catete, em cujo centro encontrava-se o representativo palácio do Presidente da República. Não longe dele, junto à praia, achava-se o belo clube alemão Germania com as suas distintas salas de recepção e a sua grande biblioteca com 12000volumes.

Esse bairro era marcado pelas numerosas repúblicas, moradias alugadas a homens solteiros que mantinham uma vida doméstica em comum, sendo esta uma singularidade da vida do solteiro brasileiro, aliás como em geral dos trópicos, desconhecida na Alemanha.

Do Catete, o elétrico passava pelas ruas silenciosas e distintas do bairro de Laranjeiras, com as suas alamedas de altas palmeiras, atingindo a mais bela baía do Rio, a do Botafogo, um quase que lago na sua aparência, cercada de altas montanhas.

O bonde elétrico...contribui não pouco à vida agradável dos habitantes...

Os viajantes das primeiras décadas do século XX não se cansam em louvar a excelência do sistema de transportes coletivos elétricos do Rio. Admiravam a extensão da rêde, a frequência de veículos, o fato de serem abertos, adequados portanto ao clima tropical. Proporcionavam a fruição da brisa marítima e uma quase que participação na vida das ruas.

Como E. von Hesse-Wartegg, também outros autores mencionaram a possibilidade oferecida pelos bondes para o conhecimento da grande cidade e seus subúrbios.

Um desses autores foi Viktor Wagner que, nas suas recordações de viagem, vivências e observações do Brasil, em 1909, salientou a contribuição dada pelo bonde à qualidade de vida dos habitantes da capital do Brasil. (Viktor Wagner, Nach und durch Brasilien. Reiseerinnerungen, Erlebnisse und Beobachtungen, Budweis: Moldavia, 1909, 45)

Morar ali já vale a pena devido à magnífica viagem de bonde que leva ao hotel...

A maior fascinação exercia nos visitantes estrangeiros a viagem de bonde a Santa Teresa, pois esta oferecia as mais belas e variadas vistas sobre a cidade.

Esta viagem de bonde era até mesmo uma das razões da escolha por europeus, em particular por visitantes de língua alemã do Hotel Internacional, situado acima do ponto final da linha.

Esse fato foi registrado de forma expressiva pelo geógrafo Professor Wilhelm  (Willi) Ule (1861-1940) no relato de sua viagem de veleiro à América do Sul. Esse empreendimento havia sido por êle organizado conjuntamente com o geofísico Wilhelm Filchner (1877-1957), o autor do projeto. Filchner havia apresentado, em 1910, o plano de uma nova Expedição antártica alemã em sessão da Sociedade de Geografia de Berlim. A viagem, com apoio de muitos cientistas, de autoridades oficiais e grande participação da população, teve início em 1911, sendo marcada solenemente por uma ceia festiva na sala da Casa do Conselho de Hamburgo. (Willi Ule, Quer Durch Süd-Amerika, Hamburg: Uhlenhorst-Verlag Curt Brenner, s/d)

A viagem de Recife ao Rio de Janeiro, feita em vapor inglês, teve como alto a entrada na Baía da Guanabara, cuja beleza foi descrita por Wilhelm Ule de forma entusiástica, procurando distinguir as razões das suas qualidades estéticas. Estas, porém, contrastavam com o centro da cidade, que foi sentido como decepcionante com as suas ruas estreitas, becos e casario antigo, embora já se tivessem instalado avenidas largas, praças e jardins bem constituídos, o que emprestava à capital do Brasil o aspecto de metrópole internacional.

„Mas o Rio é um pequeno paraíso devido à sua bela localização e vizinhanças de qualquer forma. Isso constatamos na escolha do nosso hotel. Na grande cidade, apenas dois hotéis vinham para nós em questão, o grande Hotel Central na Avenida Central e o Hotel Internacional lá fora, nas montanhas. Os outros hotéis encontram-se na maioria em mãos brasileiras e correpondentemente não são recomendáveis para um alemão. Escolhemos o Hotel Internacional, que é administrado por um alemão-austríaco e situado magnificamente a ca. de 200 metros de altitude acima da cidade.

Ali morar já vale a pena devido à magnífica viagem de bonde que leva ao hotel. Ela começa próximo à Avenida Central, atravessa em túnel o morro de Santo Antonio e ultrapassa a cidade baixa sobre um alto aqueduto, com belas vistas sobre a baía. Daí, o bonde, sempre subindo, segue as encostas das montanhas, corta o encantador subúrbio Santa Teresa com as suas numerosas mansões cercadas de jardins, entra por fim em densa floresta e termina depois de meia-hora acima do hotel. Durante todo o trajeto vê-se permanentemente a maior parte do Rio de Janeiro abaixo até à bahía, sempre imagens que se mudam de morro e vale, de luxuriante vegetação tropical, povoações humanas, tendo-se ao fundo a Serra do Mar na riqueza de suas formas. Fiz esse caminho, embora exija bem uma hora, várias vezes a pé para gozar as magníficas vistas melhor e mais tranquilamente do que de bonde e, ao mesmo tempo, para fixar as belas imagens com a minha máquina fotográfica. (...)“ (op.cit. 175-176)


A viação carril é feita em carros de grande comodidade...

Após a Primeira Guerra, no empenho de retomada de relações entre a Alemanha e o Brasil, os teuto-brasileiros nascidos ou residentes no Brasil que passaram a fazer a propaganda da cidade salientaram a excelência em geral dos meios de transporte do Rio, afirmando que estes podiam ser comparados aos melhores de qualquer capital européia.

Embora já agora mencionando os automóveis de luxo e os carros de aluguel, continuaram a salientar a grande comodidade dos bondes mantidos pela companhia canadense. Reconhecia-se que a „Light“ não media esforços para corresponder do melhor modo possível às necessidades da população.

„Os meios de conducção de hoje no Rio de Janeiro pódem ser equiparados sem bairrismo para os brasileiros aos melhores meios de transporte de qualquer capital européa sendo de notar, que no automobilismo, é feito um grande luxo tanto no particular como nos automoveis de aluguer propriamente dito. (...) A viação carril é feita também em carros de grande commodidade estando o serviço a cargo de uma empreza canadense que vem se esforçando tanto quanto possível para satisfazer as exigencias publicas.“ (Walter E. Hehl, „Rio de Janeiro hoje“, O Brasil e a Allemanha 1822-1922, 159-160, 160)

...bondes trovejam e guincham pelas ruas...

Em 1928, publicou-se em Munique o „Livro de imagens do Brasil“ de Wilhelm Steinitzer, que procura oferecer aos leitores alemães imagens do país não só em grande número de fotos como também em descrições no texto.

Um dos aspectos salientados pelo autor foi o do barulho nas ruas do Rio, o que surgia como um fator a ser considerado por europeus que pensassem em ali viver por mais tempo. Se os bondes contribuiam para o barulho da cidade, isso parecia não perturbar os brasileiros. Pelo contrário, o ruído de bondes vinha de encontro ao gosto dos brasileiros por barulho.

Para os estrangeiros, porém, que pretendessem ficar mais tempo no Rio ou mesmo residir na cidade, a barulheira generalizada devia ser um fator a ser considerado na escolha de zonas de moradia e ruas. O barulho que os europeus deviam levar em consideração não era só o de e bondes trovejando e guinchando pelas ruas, mas o dos concertos de buzinas e os latidos de cães. Até mesmo os galos no Rio começavam a cacarejar já à noite, ao redor das 23 horas.

„Quem quiser ficar no Rio por mais tempo deve refletir em que zona quer morar. (...) As atrativas praias, lindas - e os seus passeios -. são muito prejudicadas pelo „suave perfume“ dos autos que correm ininterruptamente com grande velocidade. De resto, o Rio faz muito em questão de barulho. Quase todas as casas possuem um ou mais cães, que especialmente à noite conversam vivamente entre si, os bondes trovejam e guincham pelas ruas, e os motoristas celebram verdadeiras orgias de buzinas. Ao brasileiro é pelo que tudo indica totalmente desconhecido o órgão que os europeus degenerados designam com o nome coletivo de „nervos“, eu creio, ele gosta até mesmo de barulho. Não posso deixar aqui de lembrar o característico dos galos brasileiros que começam com o seu concerto de cacarejos já às 11 horas da noite.“ (Wilhelm Steinitzer, Brasilianisches Bilderbuch, München: Ernst Reinhart 1928, 25-26)

O barulho generalizado do Rio prejudicava a atratividade do Rio - oficialmente a mais bela cidade do mundo. Também Steinitzer não saberia citar outra cidade que pudesse ser comparada com a capital do Brasil em formosura. Essa beleza, porém, justificava-se apenas pela paisagem, pois a cidade, propriamente dita, não apresentava nenhum atrativo especial, nem construções de valor arquitetônico - aqui não excluindo-se até mesmo as igrejas. A natureza, porém, era inesgotável em vistas de extraordinaria beleza e harmonia. O Rio dispunha de um tesouro tão rico em belezas naturais que nem mesmo os brasileiros iriam conseguir destrui-lo, mesmo que muito se esforçassem para isso, como demonstravam as construções mesmo de bairros aristocráticos como Botafogo e Copacabana.

„Todos esses fatos secundários perturbam os atrativos do Rio, que oficialmente é a mais bela cidade do mundo. Também eu não saberia colocar outra cidade a seu lado - no que diz respeito à beleza da paisagem. Pois a cidade propriamente dita não apresenta nenhum atrativo em especial. Ela não possui quase que nenhuma construção de significado arquitetônico - não excetuando-se as igrejas - e somente onde a natureza divina emprestou a sua ajuda encontramos imagens e vistas de beleza e harmonia inesgotáveis,  O Rio dispõe de um tesouro tão rico em beleza natural que nem mesmo os brasileiros conseguirão - e ninguém mais - destruí-lo totalmente. Que a vontade de fazê-lo existe, pode-se constatar facilmente na arquitetura do Botafogo e Copacabana.“ (loc.cit.)

Os cobradores.. deviam ganhar nos Jogos Olímpicos uma medalha de ouro

Se o ruído dos bondes foi um dos primeiros aspectos negativos levantados nas referências a esse tipo de transporte em relatos de viajantes, já nos anos 30 os barulhentos veículos já surgiam como antiquados, surgindo neste sentido como um característico e uma atração quase que histórica do Rio.

Kasimir Edschmid, no seu livro „Brilho e Miséria da América o Sul“, publicado em 1934, afirmava que o bonde constituia por si um capítulo à parte. O nome bonde - lembrando a velha Praga - combinava melhor com esse tipo de veículo coletivo do que o moderno e abreviado „tram“. (Kasimir Edschmid, Glanz und Elend Süd-Amerikas- Roman eines Erdteils, Frankfurt am Main: Societäts-Verlag 1934, 320-322)

Os bondes do Rio eram „arcas balouças, peças de museu“ que pareciam ter sido colocadas de novo nos trilhos e que agora faziam barulho nas ruas secundárias do Rio. Era difícil saber se o grande barulho era feito pelos bondes ou por seus passageiros.

Por alguns vinténs, o bonde levava qualquer um através do Rio, desde que este tivesse tempo, paciência, tímpanos resistentes e dispusesse de uma técnica de agarrar-se como um macaco nos estribos.

O bonde do Rio tinha a saber a característica de que nele se viajava mais dependurado do que sentado ou de pé.

Os bancos eram dispostos em atravessado no sentido da direção, ocupando toda a largura do carro. O principal eram os dois estrados que corriam um em cima do outro de ambos os lados e em todo o comprimento do veículo.

No passado, tinham sido destinados só para o cobrador, uma vez que este não podia passar pelos bancos pelo meio do veículo para cobrar as passagens. Agora, porém, os degraus do bonde estavam sempre apinhados de passageiros que em parte tinham de segurar-se nas alças que existiam nos cantos das filas de bancos. Se os cobradores não fossem funcionários e pagos pela sua ginástica diária, deviam até mesmo ganhar uma medalha nos Jogos Olímpicos pela segurança e habilidade com que se movimentavam. Eles se contorciam durante a viagem entre a confusão de corpos humanos, apoiando-se apenas com a ponta dos pés, uma vez que raramente conseguiam colocar todo o pé no estribo. Apesar disso, registravam todo passageiro que subia, faziam gracejos com moças, brincavam, pegavam o dinheiro da passagem, davam o bilhete e o troco de um pequeno „órgão de tubos“ que levavam à cintura. Puxavam uma alça de couro que fazia soar um sino pendurado no teto: duas, cinco, sete ou mais vezes.

Mesmo com o bonde superlotado, o cobrador não fazia que se esvaziasse, continuando a balançar-se, passando pelas pessoas, tomando o dinheiro e colocando-o no bolso, dando troco e a tocar o sino como se estivesse fora de si.

„Um capítulo por si é o bonde, a tranvia elétrica. Esta denominação da velha Praga combina melhor com esse meio de transporte do que o moderno breve „tram“. Arcas balouças, peças de museu que teriam sido por descuido colocadas novamento em trilhos e que agora barulham pelas ruas secundárias do Rio. Às vezes é difícil de saber se é o bonde ou o seu carregamento o que faz mais barulho. Por vinténs leva qualquer um pelo Rio, se este tiver tempo, paciência, tímpanos resistentes e se dispor de uma técnica de segurar-se como um macaco. O bonde do Rio tem a saber a característica de que nele se viaja dependurado, mais do que de pé ou muito menos sentado. Os bancos são dispostos de atravessado no sentido da direção, ocupando toda a largura do carro. Na descrição do bonde não pode faltar o principal: dois estrados que correm um em cima do outro de ambos os lados em todo o comprimento do carro. No passado tinham sido destinados ao cobrador, uma vez que não podia passar pelos bancos pelo meio do veículo para cobrar a passagem. Hoje, porém, os degraus do bonde são apinhados de passageiros que em parte se seguram nos alças dos fins das filas de bancos. Se os cobradores não fossem funcionários e pagos pela sua ginástica diária, deviam ganhar nos Jogos Olímpicos uma medalha e ouro por treparem sem segurança. Eles se contorcem durante a viagem entre a confusão de corpos humanos e se auxiliam com as pontas dos pés; raramente conseguem introduzir toda a planta do pé no estribo. Apesar disso, percebem todo o novo passageiro que sobe, fazem gracejos com moças, brincam, se não houver mais lugar livre, pegam o dinheiro da passagem, dão o troco de um pequeno órgão de tubos de metal que trazem à cintura, e se não fazem isso, então puxam na alça de couro de um sino que é pendurada no teto do carro: duas vezes, cinco vezes, sete vezes, uma atrás da outra“ (loc.cit.)

Kasimir Edschmid menciona que só aos poucos entendeu esses repetidos toques: um grande relógio pendurado à frente do veículo registrava cada toque, subindo de 20 a cifra no mostrador. Nele eram marcados as passagens, que ninguém pagava, pois o cobrador precisava ds duas mãos para segurar-se, não podendo ter em mãos nem o bloco de passes nem o furador de bilhetes. Quem quisesse descer, puxava um comprido cordão, caso pudesse alcançá-lo. Soava então um outro sino. O bonde parava no ponto e quem tinha sorte, podia dele saltar. No Rio, devia-se saber pular como um atleta.

„Agora cremos que o condutor vá parar e colocar à rua a metade dos passageiros; mas nada acontece. O cobrador continua a balançar-se passando pelas pessoas, toma o dinheiro e o coloca no bolso, dá troco e continua a soar como que tomado. Aí percebemos finalmente que à frente no carro encontra-se dependurado um grande relógio que conta, cujo mostrador indica a subida de 20 em cada toque. Nele os passes são registrados, que ninguém dá e ninguem pega, pois o cobrador do bonde precisa das duas mãos para trepar e não tem pode segurar nem um bloco de passes nem um furador de bilhetes. Quem quer descer, puxa num cordão contínuo, se o puder alcançar; então soa um outro sino, o carro para no ponto e quem tiver sorte, pode até mesmo saltar. Deve-se saber pular como um atleta no Rio em interesse do tráfego.“ (loc.cit.)

Depois dessas experiências com o bonde no quotidiano da vida do Rio, Kasimir Edschmid entendeu a série de anúncios de meia página que apareceram semanas antes do carnaval nos jornais da cidade. Estes mostravam a caricatura de um bonde demolido, com cabos enfeitados com serpentinas que eram giradas no ar pelos passageiros, enquanto que outros colocavam areia no motor, sambavam sobre o teto, amarravam laços nos breques, disparavam pistolas no estrado do bonde e jogavam óleo nos trilhos.

O subtexto explicava que o bonde era um meio de transporte no qual o povo do Rio de Janeiro melhor se divertia no carnaval. Mas a companhia salientava que havia uma grande diferença em dançar um bom samba com entusiasmo e usar o veículo como tambor. A Companhia de Carris, Luz e Força do Rio de Janeiro nada tinha de contra se um bonde fosse mal tratado pelos passageiros no caso de estar muito lotado. Queria porém chamar a atenção que não seriam mais feitos os reparos de bondes  que tinham sido demolidos no carnaval de dois anos antes e que tinham dado um prejuízo de 700.000 cruzeiros. Os custos dos reparos do ano passado não tinham sido felizmente tão altos, perfazendo apenas 70 por cento daquela quantia. Esperava-se, porém, que se pudesse chegar a zero no corrente ano.

Qual a razão do nome „bonde“  no Brasil?

Para os europeus, o nome „bonde“ no Brasil sempre surgiu como enigmático. Acostumados a denominar esses veículos de elétricos, tranvias, tram ou com outros termos similares, registraram a singularidade dessa denominação em todo o Brasil. Ainda que no Rio as companhias tivessem procurado difundir o termo carrís ou, no caso o Pão de Açúcar“, „caminho aéreo“, popularmente enraizou-se o termo bonde e bondinho. Essa peculiaridade foi salientada, entre outros autores, por W. K. v. Nohara, no seu „Brasil, Dia e Noite“ (Brasilien Tag und Nacht, Berlin, Rowohlt, 1938). A sua suposição foi a de que o termo derivara da organização econômica das sociedades de ações mantenedoras das linhas, de origem norte-americana ou canadense.

„Escrito no diário:

Os bondes chamam-se em todo o Brasil bonds ou bondes; a razão para isso não pude saber, suponho que é de origem regional ou nacional, senão devido ao fato de que o primeiro bonde do país foi instalado por uma sociedade de ações (bonds) inglesa ou americana.“ (op.cit. 132)

No calor estafante, ocorre que um passageiro sonolento perca o ponto...

A habilidade acrobática dos cobradores de bondes do Rio de Janeiro foi registrada por outros visitantes estrangeiros como uma singularidade curiosa e significativa da antiga capital do Brasil. Entre êles, deve-se mencionar Herbert van Leisen (*1902), que nos seu „Os Estados Unidos do Sul“, publicado em francês, em Genebra, salientou o incrível malabarismo dos cobradores nos estribos, capazes de receber e dar dinheiro apenas segurando as cédulas nas pontas dos dedos, equilibrando-se entre os passageiros do veículo em movimento.

„Enfim, uma parte importante do público utiliza os bondes. Esses veículos são abertos e quase sempre sobrelotados. Para receber o preço da passagem, um cobrador passa de fila em fila sobre estribos laterais. Com uma habilidade desconcertante, recebe e dá o dinheiro nas pontas dos dedos. De tempos em tempos, êle dá um sinal e o número de passageiros é inscrito no contador.“(Herbert van Leisen, Les États-Unis du Sud: Le Brésil, Genebra: Kundig, 1950, 7-28)

Com esse registro, os cobradores de bondes passaram a estar presentes em obra particularmente divulgada em meios diplomáticos da Sociedade das Nações nos quais Herbert van Leisen atuava e em cuja obra estabelecem-se relações entre a literatura e a diplomacia. Herbert van Leisen conhecera muitos diplomatas brasileiros em conferências internacionais em Genebra.

Escutando o Ministro Hélio Lobo, delegado junto ao secretariado europeu da ONU, aproximara-se ainda mais do Brasil e ganhara a impressão de traços característicos de sua cultura. A sua viagem ao Brasil foi apoiado pelo presidente da Panair do Brasil, Dr. Paulo Sampaio, tendo sido recebido nos seus escritórios no aeroporto Santos Dumont, assim introduzindo-se na vida do Rio de Janeiro.

As suas impressões mais vivas da cidade, porém, foram adquiridas em passeios de bonde. Herbert van Leisen encontrou uma cidade de contrastes, vendo nela, porém, como de resto no país, uma harmonia entre as suas dissonâncias. A primeira impressão do Rio era a de uma cidade em movimento. O seu aspecto era cambiante, móvel. A mansão suntuosa do passado dava lugar ao arranha-céu. Tudo era nascente, tudo desaparecia com uma rapidez prodigiosa. Entretanto, havia refúgios da tradição, sendo um deles o Palácio do Itamaraty.

Um dos relitos do passado era o bonde de Santa Teresa. Herbert van Leisen dedicou a sua atenção sobretudo à passagem dos veículos pelo aqueduto da Carioca, registrando que a sua largura mal dava para os trilhos. Cada passagem era uma aventura, uma vez que de ambos os lados da viatura abria-se o vazio, sendo a segurança dos passageiros garantida apenas por um fio de ferro.

„Passera! Passera pas! Une Espagnole esquisse un discret signe de croix. On atten la catastrophe. Mais toujours, dans un grand bruit de ferraille, l‘acqueduc est franchi. Au pied de cette ancienne construction on aperçoit un quartier de ruelles aux maisons de style colonial. Puis le tram atteint la chaîne des morros qu‘il parcourra jusqu‘à Santa Tereza, village situé sur les contreforts du Corcovado“ (op. cit. 21)

Graças aos meandros da linha, Herbert van Leisen salientou o fato do bonde de Santa Teresa permitir o reconhecimento de dois aspectos dos mais característicos do Rio de Janeiro. De um lado, o Rio marítimo, o porto, as docas e, mais próximo, a Avenida Presidente Vargas com a construção monumental do Ministério da Guerra. Do outro lado, o Rio elegante das praias: Flamento, Botafogo, Vermelha e, ao fundo de um vale, o antigo bairro de Larangeiras. O encanto do passeio de bonde de Santa Teresa, na sua rota sinuosa no bairro, quase que suspenso sobre a cidade, proporcionou-lhe o prazer de uma descoberta. Assim, logo procurou comunicar as suas impressões da floresta alcancada pelo veículo aos membros do seu clube. As impressões da floresta equatorial na obra dessa personalidade da Sociedade das Nações foram assim possibilitadas sobretudo pela viagem de bonde de Santa Teresa e Silvestre.

Esse autor fêz na sua obra uma observação que considerou como significativa para que os seus leitores compreendessem o tipo e a „filosofia“ do cobrador de bonde nas suas relações com os passageiros: o de tolerar que não pagassem passagens de volta aqueles que perdiam a sua parada e que, chegando ao fim da linha, tinham que retornar.

Com o calor por vezes estafante, acontece que um viajante sonolento perca a parada de sua viagem. Uma discussão engraçada tem lugar entre o empregado e o dorminhoco ainda mal desperto, expressando este último a sua intenção de fazer o trajeto de retorno sem pagar. Às vezes, acontece também que uma pessoa se recuse de pagar a soma de seu lugar. Nesses dois casos, têm em geral a causa ganha. Controlador e passageiros parecem concluir com filosofia.“  (loc. cit.)

Os bondes na fotografia

Se fotografias de bondes do Rio encontram-se em ilustrações de muitos relatos de viagens e livros sobre a cidade e o Brasil, uma atenção especial merece as imagens de maior significado artístico de Jean Manzon (1915-1990), incluídas no mais renomado livro dedicado à antiga capital do Brasil, aquele de André Maurois (1865-1967), da Académie Française (Rio de Janeiro, Levallois-Perret (Seine): Fernand Nathan, 1951).

Essas fotografias revelam a sensibilidade visual aguçada de Jean Manzon na percepção de relações de sentidos nos contrastes do Rio. Uma dessas fotografias apresenta um bonde e seu reboque à frente do prédio imponente do Banco do Brasil. (N° 18)

A fotografia da Avenida Presidente Vargas (N° 72), apresenta bondes e reboques no primeiro plano, harmonizando-se com o casario antigo que ainda resistia às demolições, tendo ao fundo os novos arranha-céus. Os bondes surgem aqui como pertencentes aos retalhos do antigo Rio que desaparecia com as transformações do início da década de 50. O fotógrafo retomou aqui o  motivo da contraposição do velho e do novo também empregado por outros autores, contrastando bondes e os novos desenvolvimentos urbanos.

Ainda mais significativas são as imagens que testemunham o significado dos bondes para o carnaval do Rio. Se a função do bonde no carnaval já fora considerada em palavras por um viajante como Kasimir Edschmid (Veja acima), as imagens de Jean Manzon adquirem particular relevância como expressivos documentos histórico-culturais. Uma delas mostra os carnavalistas fantasiados apinhados à frente, aos lados e sobre um veículo da linha Catumby (N° 83). Outra imagem mostra um bonde a primeiro plano nas ruas iluminadas à noite, à frente da multidão à espera da passagem dos cortejos e escolas. (N° 84)


De ciclo de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). „ Vendo o Rio de bonde na literatura de viagens e nas imagens do Brasil.
Ernst von Hesse-Wartegg (1854-1918), Wilhelm Ule (1861-1940) e outros“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 156/7 (2015:04). http://revista.brasil-europa.eu/156/Vendo_o_Rio_de_bonde.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

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