A fisionomia de indígenas e dignidade

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 157

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 157/11 (2015:5)





A fisionomia de indígenas do passado e do presente
consciência histórica e dignidade:
portraits em museus do Canadá e do Alaska

I - Pinturas de vultos históricos indígenas no Royal Ontario Museum


Cumprindo moção de sessão na Sala do Índio do Museu de História Diplomática do Itamaraty (2002)
por motivo dos 450 anos do Rio de Janeiro em 2015

 
Poucos são os nomes de líderes indígenas do passado hoje presentes na história do Brasil. Um Araribóia ou um Tibiriçá representam alguns dos raros casos singulares que se salvaram do esquecimento. Também em publicações, especializadas ou em relatos de viagens, retratos de indígenas raramente trazem os nomes dos fotografados.

Esse anonimato corresponde também à falta de fisionomias, à ausência de representações individualizadoras em pinturas, à raridade de fotografias que registraram personalidades ou a plásticas que reproduziram vultos de indígenas.

Sem nomes e sem faces, apenas imagens amorfas de coletividades mantiveram-se na memória, e as representações em obras de arte refletem estereotipos e personificações sem ou de difícil identificação de povos.

Tais constatações não podem ser explicadas apenas pelo importância da comunidade, da tribo ou da linhagem relativamente ao indivíduo na cultura indígena. Elas implicam em problemas historiográficos de posicionamento do historiador, de perspectivas e visões.

Em monumentos, o indígena surge com poucas exceções apenas como aquele que é batizado pelos missionários, o que acompanha ou é trazido pelos bandeirantes, ou o que participa em empreendimentos dos colonizadores e seus descendentes.

Idealizações do índio do século XIX, pelo menos uma tentativa ainda que romântica de sua consideração, são criticadas com diferentes argumentos, um fato que causa estranheza na crítica literária brasileira e apenas pode ser explicado pela permanência irrefletida de ideologia nacionalista das primeiras décadas do século XX.

Essa cultura historiográfica e celebrativa traz problemas para a memória, a
consciência histórica, a identidade e a auto-estima dos indígenas, além de representar um grande empobrecimento cultural no seu todo. Ela tem amplas implicações, pois o anonimato e a falta de fisionomias revelam-se como despersonalizadoras, desvalorizadoras de de indivíduos, de sua dignidade e, por fim, desumanizadoras.

A questão da perspectiva historiográfica

A questão do eurocentrismo na historiografia foi uma das principais preocupações de pesquisadores, grupos indígenas e indigenistas, comissões e conselhos por ocasião da passagem dos 500 anos do descobrimento da América, em 1992.

Naquele ano, a questão da escrita e da visão histórica foi tratada de forma em muitos casos polêmica e combativa em publicações e eventos de diferentes instituições. Foi, também um dos fatores principais que levaram ao início na prática de projeto internacional dedicado às culturas indígenas  no Rio de Janeiro com o sentido de levantar documentos, realizar registros e tecer reflexões para uma objetivação diferenciada dos problemas.

Esse projeto vem sendo desenvolvido desde então, sobretudo desde as decisões tomadas em sessão na Sala do Índio do Museu de História Diplomática do Itamaraty, no Rio de Janeiro em 2002 (Veja), em visitas, contatos e colóquios em diferentes instituições de pesquisas e museus em diferentes países.

Nelas, a atenção tem sido dirigida em especial ao tratamento de questões historiográficas e memoriais, das tendências de pensamento e dos procedimentos práticos no estudo, resgate e valorização da história cultural indígena para as culturas nativas e para a sociedade nacional vigente. Tratando-se da problemática indígena em princípio continental e mesmo global, transpassando fronteiras, a forma com que se relacionam nos diferentes contextos com a história e a identidade nacional em países surgidos de processos de conquista e colonização do Novo Mundo passam a merecer particular atenção.

Em ano comemorativo do Rio de Janeiro pelos seus 450 anos, voltou-se a visitar museus da América do Norte de significado para estudos da cultura indígena. Em vários casos constata-se o empenho em valorizar líderes indígenas dos contatos com os europeus e seus seus descendentes na história e daquelas personalidades que contribuiram ou contribuem à manutenção da memória, das tradições e de sua recuperação no presente.

Fisionomias indígenas em função da perspectiva historiográfica

As galerias de pinturas com portraits de indígenas do passado e da atualidade são as mais evidentes demonstrações desse empenho individualizador de dar fisionomias e nomes a indígenas, lembrando o papel que desempenharam e desempenham nos seus povos e nas relações com os neo-americanos.

Eternizados são aqueles, porém, cuja ação é considerada como sendo positiva ao estabelecimento de situações favoravéis ao estabelecimento dos atuais países, ou seja, de líderes indígenas que, no passado, lutaram do lado dos europeus e neo-americanos, tomando por vezes partido contra grupos indígenas que resistiram à conquista ou incursões, ou que lutaram ao lado de europeus e colonos que foram combatidos em determinados contextos históricos.

Contendas e conflitos inter-tribais são considerados nas suas inserções em tensões internacionais nas suas repercussões no continente americano. A representação memorial de vultos indígenas identificados decorre assim da perspectiva histórica da sociedade dominante, não celebrando-se, de forma compreensível, líderes inimigos.

A valorização de líderes indígenas diferencia-se, assim, de acordo com as fronteiras nacionais do Canadá e dos Estados Unidos. Os vultos indígenas celebrados no Canadá, são, ao mesmo tempo, aqueles que lutaram pelas forças lealistas, ou seja, da fidelidade à Coroa britânica. Fazem parte, assim, da história européia nas suas extensões ao Novo Mundo. A divisa da unidade na diversidade que é sempre mencionada, é interpretada segundo a perspectiva dos países nacionais decorrentes de processos coloniais europeus.

Mesmo com essas relativações derivadas de focalizações nacionais, a situação histórica e memorial difere daquela do Brasil. Aqui dificilmente poder-se-ia citar um portrait irradiador de força, heroísmo e dignidade ou busto individualizado de cacique auxiliador dos portugueses na dominação do território, como, por exemplo, de líderes ou heróis tupís que auxiliaram os portugueses na luta contra os franceses na baía da Guanabara, onde estes teriam sido secundados pelos tupinambás.


Retratos na Ethnology Gallery do Royal Ontario Museum, Toronto

Como exemplo da perpetuação e mesmo glorificação de vultos indígenas do passado pode-se salientar a galeria de quadros na Ethnology Gallery do Royal Ontario Museum, em Toronto, Canadá. O museu, aberto ao público pelo Duque de Connaught em 1914, possui uma das mais valiosas coleções de pinturas de indígenas, da vida indígena e de fatos históricos nos quais indígenas participaram. Nessa coleção, salientam-se obras de Paul Kane de meados do século XIX, entre elas „Chief from Fort William“, „A Babbine Chief“, „Dança de escalpo, Colville, de 1848-1856, „Cascata Peluce“, „Homem a cavalo“, „Kee-akee-ka-sa-coo-way“, „Fort Edmonton“, „Estabelecimento do rio Rouge“, „Mestiço correndo búfalo“, „Brigada de barcos“, e „Captura do salmão“, da mesma época.


Essas pinturas foram realizadas por Paul Kane a pedido de George William Allan (1822-1901), em 1853. Este vulto da política de Toronto, chanceler do Trinity College, apoiou o trabalho de Kane. A coleção de obras permaneceu durante meio século no The Museum no Moss Park, um edifício construído pelo pai de George William Allan - William Allan (1770-1853), pessoa de influência no estabelecimento do Bank of Upper Canada.

Principal promotor do museu foi Sir Edmund Osler (1845-1924) que, após a morte de G. W. Allan, em 1901, adquiriu a coleção de Paul Kane de antigas pinturas, doados a seguir generosamente à Universidade de Toronto, hoje figurando em saguões do University College. Com a fundação do museu, a coleção de pinturas de Paul Kane foi transferida da universidade para as galerias do novo museu.

Embora tenha Sir Edmund Osler entrado em posse das pinturas a óleo de Kane, os esboços permaneceram na família de Allan a cuidados de Maude Cassels (nascida Allan), e a seguir de sua filha Chelsea. Em 1946, Raymond Willis, filho de Chelsea, doou os esboços ao
Royal Ontario Museum, possibilitando, assim, que projetos e obras possam ser estudadas conjuntamente.

Com métodos de reflectografia, os especialistas do museu revelam desenhos subjacentes às pinturas, possibilitando comparações com os esboços. Essas análises, que continuam no presente, mostram que Kane fêz modificações de elementos com a intenção de refinar detalhes composicionais ou por motivos estéticos.


Esse trabalho de revelação do subjacente à superfície permite identificar versões originais e cópias posteriores. O descobrimento de desenhos e pinturas subjacentes abre caminhos para a identificação de imagens originais abaixo daquelas aperfeiçoadas artisticamente, mais próximas dos esboços e, em alguns casos, da realidade.

Entre outros pintores considerados, o museu destaca Frederick Verner. Como a maior parte dos pintores não-nativos, esse pintor  representou antes a imagem que tinha da vida indígena. O seu quadro a óleo Sioux Dandy é baseado numa fotografia de Little Short Horn, de Dakota, tendo o pintor apresentado essa figura histórica com uma vestimenta que tinha adquirido anteriormente e que, portanto, o retratado nunca tinha usado.

Legado de personalidades de ascendência indígena na história do museu

Sob o título „Aliados soberanos/Culturas vivas das primeiras nações dos Grandes Lagos“, considera-se o legado do Dr. Oronhyatekha (1841-1907. Nascido e formado nas Seis Nações do Grand River, cursou estudos universitários em Oxford e Toronto, onde passou à carreira médica e a negócios de seguros. Em 1902, abriu um museu em estilo vitoriano nos seus terrenos de negócios na cidade baixa de Toronto. Muitas das peças desse museu tornaram-se parte das coleções do Royal Ontario Museum, sendo exibidas na seção „Souvereign Allies“.

O Dr. Oronhyatekha nunca perdeu a sua identidade Mohawk e os valores ou interesses indígenas. Durante a sua carreira argumentou que as First Nations permaneciam em igualdade quanto à soberania relativamente à Coroa britânica uma vez que foram aliados militares nas guerras britânico-americanas dos séculos XVIII e XIX.

Vultos indígenas do passado que se esforçaram em conservar a cultura tradicional

Um destaque especial é dado ao retrato do Bull Head. Nascido ao redor de 1833, o chefe Bull Head, da tribo Tsuu T‘ina, chamada então de Sarcee. Durante época de conflitos inter-tribais, Bull Head tornou-se um guerreiro líder da sua tribo. Os seus feitos de guerra encontram-se registrados na sua capa de búfalo apresentada no museu. Após a morte do seu irmão em 1865, Bull Head tornou-se chefe da tribo, falecendo em 1911.

Em 1877, Bull Head assinou o tratado n° 7. Anos mais tarde, transferiu a sua comunidade à reserva localizada 12 quilômetros do centro atual de Calgary. Apesar das devastações sociais e de saúde, e das pressões que passaram os indígenas com a expansão dos colonos nos seus territórios, Bull Head liderou habilmente a tribo até o início do século XX, mantendo-a unia e intacta a sua reserva.

Quanto aos antigos retratos fotográficos apresentados, salienta-se aquele de 1908 do chefe Peter Wesley (The Moose Killer), dos Stoneys Nakoda, Reserva Morley, Alberta. Diferentemente de outras reservas dos Plains, os Stoneys gozavam de abundância de recursos naturais, não dependendo de rações governamentais. Entre os seus líderes, destacou-se o chefe Peter Wesley, que marchava avante nas incursões dos indígenas pelas matas e montanhas.

Outro chefe perenizado em fotografia, foi Ahchukakopetokopit (Star Blanket), que entrou na história pela sua severidade de caráter e pelos seus contínuos desacordos com a implementação de tratados e medidas governamentais, em particular com o sistema de escolas residenciais. Anos após a instauração desse sistema, a metade de seus filhos e daqueles de seus cinco irmãos continuavam a trajar as vestes tradicionais, a trançar os seus longos cabelos e a pintar a face. A outra metade, devido à influência escolar, já usava cabelos curtos, roupas européias e falavam inglês.
Maquaestupista (1845-1908) é lembrado em retrato de 1907na exposição como líder do grupo „Many Tumours“ dos Bloods (Kainai), um subgrupo dos Pés-Pretos. A reserva Blood é a maior do Canadá. Estabelecida pelo Tratado 7 em 1877, teve a sua população aumentada de 800 em 1880 a 3600 pessoas no ano seguinte, caindo,
porém, dramaticamente nos anos que se seguiram devido à má-nutrição e às doenças.

De culturas em extinção a culturas viventes

Supôs-se, no passado, que as culturas nativas desapareceriam devido à predominância cultural euro-canadense. O Museu salienta, porém, que isso não aconteceu, mostrando, na sua seção de „Living Cultures“ objetos e obras de arte que ilustram a permanência de expressões e práticas da cultura tradicional na vida quotidiana das First Nations dos Grandes Lagos.

Veja, em sequência, outros textos nesta edição


De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“A fisionomia de indígenas do passado e do presente. Consciência histórica e dignidade: portraits em museus do Canadá e do Alaska I - Pinturas de vultos históricos indígenas no Royal Ontario Museum“.
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 157/ (2015:05). http://revista.brasil-europa.eu/157/Fisionomias_indigenas_Ontario.html


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