Ferrovias de riqueza e morte: Madeira-Mamoré

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 157

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 157/4 (2015:5)





Ferrovias de riqueza e morte:

Madeira-Mamoré e White Pass and Yukon

I - Estudos da Madeira-Mamoré e sua recepção no Exterior:
„Die Gummibahn“ (1960) de Franz Caspar (1916-1977)


Pelo centenário de nascimento do historiador Manoel Rodrigues Ferreira (1915-2010)



 

À época da remodelação do porto e da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, a construção de ferrovias representava uma das principais preocupações políticas voltadas ao desenvolvimento do país, à interligação de cidades e regiões, à abertura e exploração de novos territórios. (Veja)

Consequentemente, livros dedicados ao Brasil nos anos que precederam a Primeira Guerra e que exaltavam a sua capital metamorfoseada, incluiam capítulos dedicados às ferrovias brasileiras e a projetos ferroviários, também e sobretudo nas suas relações com empresários e financiadores do Exterior.

Esse foi o caso do livro Brasil: Um País do Futuro, de Heinrich Schüler, apresentado por M. de Oliveira Lima, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário do Brasil em Bruxelas. publicado em 1911 e que já em 1912 aparecia em terceira edição (Brasilien: Ein Land der Zukunft, 3a. Aufl. Stuttgart e Leipzig: Deutsche Verlags-Anstalt 1912). (Veja)

A consideração de vias de transportes, em particular de ferrovias, é de grande relevância sob múltiplos aspectos nos estudos voltados a processos culturais. Com a implantação de ferrovias fundaram-se e desenvolveram-se cidades, determinando assim a história e a memória de localidades e a formação de rêdes de comunicações e intercâmbios. O estudo de vias de comunicação constituiu, assim, objeto de atenção já nos anos iniciais da organização voltada a processos que, de forma particularmente evidente necessitam ser analisados em relações internacionais. (Veja)

A abertura de territórios e a exploração de recursos naturais foram acompanhadas com a vinda de trabalhadores de diferentes regiões e países, migrantes e aventureiros que determinaram a configuração populacional, étnica e cultural de territórios até então pouco povoados. Esses empreendimentos exigiram feitos de engenharia e de construção extraordinários em circunstâncias adversas, custando a vida de muitos homens.

A memória dessas feitos, das suas dificuldades e das muitas mortes constituem hoje significativa parte da história e da identidade de cidades e regiões. Em muitos casos desativadas, trechos de antigos trajetos, veículos e estações tornaram-se objetos museais, da técnica, a indústria e da história regional.

Dois empreendimentos ferroviários de fins do século XIX e início do XX entraram na história do continente americano como exenplos de ferrovias relacionadas com a corrida a riquezas, com a morte e mesmo com o diabo: a Madeira-Mamoré-Railway e a White Pass e Yucon Route no Alasca.

Ambas, da mesma época, exigiram grande número de vítimas, levando ao enriquecimento de poucos e à desilusão e mesmo ruína de grande parte daqueles que, tentados, correram a regiões inóspitas, expondo-se a todos os perigos.

Rondonia nos estudos culturais dos anos 70: „Um folclore de luta“

Manoel Rodrigues Ferreira. Arquivo A.B.E.
Os trabalhos euro-brasileiros relacionados com a Rondônia - e consequentemente com a estrada de ferro Madeira-Mamoré - foram desenvolvidos inicialmente em estreita colaboração com a Associação Brasileira de Folclore e o Museu de Folclore dirigido por Rossini Tavares de Lima em São Paulo. (Veja)

Entre os pesquisadores da Associação Brasileira de Folclore destacou-se, quanto aos estudos da Rondônia, Marcel Jules Thiéblot.

As suas pesquisas de campo foram realizadas em época que a ferrovia ja tinha encerrado as suas atividades, o que ocorreu em 1973, sendo as suas pontes utilizadas pela rodovia BR-319. (Rondônia: um folclore de luta. São Paulo: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1977).

Manoel Rodrigues Ferreira no simpósio de 1981: A ferrovia do diabo

Porto Velho. Foto A.A.Bispo 1993. Copyright A.B.E.
Os estudos euro-brasileiros relacionados com a região - e a ferrovia - foram promovidos com a colaboração do engenheiro, historiador e publicista Manoel Rodrigues Ferreira, autor do livro A ferrovia do diabo, publicado em 1960, co-fundador da Sociedade Geográfica Brasileira e da Academia Paulistana da História.

Essa obra baseou-se em vasta documentação original conservada pelo fotógrafo norte-americano da empresa responsável pela estrada, Dana Merril, encontradas em São Paulo. Manoel Rodrigues Ferreira publicou a respeito uma série de quinze artigos em A Gazeta, em 1957. Em 1981, lançou-se a segunda edição dessa obra que e fundamental para estudos da ferrovia, da época e da região, incluindo novos estudos e revelações de fatos.

Manoel Rodrigues Ferreira entrou na história da ferrovia não apenas pela divulgação desses documentos e seus estudos, mas sim também por tê-la salvo da sucateamento total em 1971.

Marco nas relações euro-brasileiras com Manoel Rodrigues Ferreira foi sessão por êle organizada da Academia Paulistana de História no âmbito do Simpósio Internacional levado a efeito em São Paulo, em 1981.

Questões historiográfícas e recepção do Brasil na Europa e nos Estados Unidos

A sessão da Academia Paulistana de História foi realizada em conjunto com a Ordem Nacional dos Bandeirantes, nela distinguindo-se o historiador Tito Lívio Ferreira, o pesquisador e escritor Henrique L. Alves e o deputado A. H. Cunha Bueno, então Secretário de Estado da Cultura.

A  referência aos bandeirantes nessa sessão sob a presidência de Manoel Rodrigues Ferreira, trouxe à consciência e tematizou paralelos e relações entre processos de entradas e incursões em regiões desconhecidas marcados pela procura de ouro e outras riquezas em diferentes épocas e contextos, e que sempre foram acompanhadas por padecimentos de todas as sortes, trágicos acontecimentos e ações questionáveis.

A construção da ferrovia Madeira-Mamoré investigada pelo historiador surgiu assim sob nova luz, passando a ser considerada nas suas inserções em processo transepocal, de mais amplas dimensões, apto a ser analisado sob aspectos filosóficos e teórico-culturals mais amplos e ultrapassadores de fronteiras nacionais.

A atenção foi dirigida a uma síndrome de procura de enriquecimento, de prosperidade, que, se levou a uma ousada devassa do interior do continente americano em direção ao centro e oeste e a arrojados empreendimentos, nos seus aspectos negativos, documentados em mortes, violências , escravização e conflitos com indígenas representa um problema da história da expansão do Ocidente europeu e, nas usas dimensões mais amplas, uma problemática do Homem.

A heroização do bandeirantismo na história e na identidade paulista e paulistana surgiu assim como uma questão da historiografia que devia ser considerada sob perspectivas mais abrangentes, voltadas a processos em contextos internacionais e em condução teórico-cultural e filosófica norteada pela ética.

A sensibilidade assim aguçada para problemas de posicionamento e de perspectivas na análise de empreendimentos passíveis de tais análises em diferentes contextos e épocas chamou a atenção também a questões historiográficas relacionadas com a estrada de ferro Madeira-Mamoré e, com ela, com a identidade de Porto Velho e Rondônia em geral.

Como o evento internacional no qual se realizou essa seção da Academia Paulistana de História foi marcado pelo estudo da recepção cultural, então no centro das atenções na Europa (Veja), tematizou-se a questão de que o problema historiográfico, revelando dimensões internacionais e mesmo do Homem em geral, não deveria limitar-se ao Brasil, mas também ser considerado na recepção no Exterior de fatos, ocorrências, empreendimentos e desenvolvimentos ocorridos no continente americano.

Explica-se, assim, o empenho em levantamento de fontes européias de relevância para estudos da recepção da ferrovia Madeira-Mamoré até então desconhecidas ou pouco consideradas no Brasil.

„Die Gummibahn“, de Franz Caspar  no Durch die Weite Welt, 1960

Porto Velho. Foto A.A.Bispo 1993. Copyright A.B.E.

Um dos textos referentes à Madeira-Mamoré mais pormenorizadamente considerados sob a perspectiva da recepção cultural foi aquele publicado pelo pesquisador e publicista suíço Franz Caspar no volume 34 do livro „Através do grande mundo“. („Die Gummibahn“, Durch die Weite Welt: Das Grosse Buch für Jeden Jungen 34, Stuttgart: Franckh‘sche Verlagshandlung, 1960, 197-255).


Essa publicação representou um  gande empreendimento editorial dedicado a leitores jovens e àqueles que permaneceram jovens. O artigo é ilustrado com desenhos de Nikolaus Plump e contem um mapa da região que traz o nome de G. Wustmann.


O escritor, historiador e sociólogo suíço, falecido poucos anos antes do projeto que levou à organização do simpósio internacional em São Paulo, desempenhou papel significativo nos estudos euro-brasileiros iniciados em 1974 na Europa. (Veja)


Formados nas universidades de Fribourg, Bern e Zürich, doutorado em Etnologia, Psicologia e Polítca, Franz Caspar distinguiu-se na área editorial, sendo assim representativo nome para estudos de difusão de conhecimentos a uma público mais amplo de leitores.


Entretanto, nos círculos universitários, em particular da Etnologia e dos estudos brasileiros, as suas publicações eram pouco lembradas, sendo consideradas antes como de ilustração científico-popular.


Entretanto, os seus relatos de visitas a indígenas do Mato Grosso e Rondônia são de relevância para estudos culturais sob diversos aspectos (Allein unter Indios. Meine Einmann-Expedition zu den Tupari-Indianern am Matto-grosso, Zurique: Buchgemeinschaft Ex libris, 1952).


O conhecimento de situações e problemas sul-americanos de Franz Caspar era derivado da sua própria experiência de varios anos como imigrante na Argentina durante os últimos anos da Segunda Guerra, onde trabalhou no comércio e na ajuda ao desenvolvimento.


O texto sobre a estrada de ferro Madeira-Mamoré em obra dedicada à
juventude explica-se pelo empenho de Franz Caspar na área pedagógica e de literatura juvenil como fundador do Instituto Suíço do Livro para a Juventude (Schweizerisches Jugendbuch-Institut) com o Johanna-Spyri-Archiv.


Franz Caspar inicia o seu texto „Die Gummibahn“ salientando que não havia, em todo o mundo, certamente nenhuma outra ferrovia sobre a qual se contavam tantas estórias como aquela que, no meio da floresta brasileira, unia o Rio Madeira e o Rio Mamoré: „Cada trecho de trilhos custara o seu peso em puro ouro, e sob cada dormente havia um cadáver.“ Nada menos do que 512400 vidas custara a estrada, e a montanha de ouro que exigira não encontraria lugar em nenhum tesouro do mundo.


Franz Caspar tomara um primeiro contato com a ferrovia na viagem que fizera aos índios do Alto Guaporé em 1948. Vindo da Bolívia, atravessara o Mamoré e chegara a Guajará-Mirim. Nesta estação final da ferrovia, tomou conhecimento de estórias que contavam a respeito da viagem de trem a Porto Velho, nas quais se dizia que sempre aconteciam descarrilhamentos no trajeto, temendo os funcionários e passageiros ataques de índios.


Apenas em dezembro de 1954, retornando à região, Franz Caspar realizou várias vezes a viagem entre Guajará Mirim e Porto Velho, constatando o exagêro das estórias contadas. Os trens e os ônibus-trens da ferrovia nunca saíram dos trilhos e apenas uma vez viu passageiros retornaram à estação de partida com cabeças ensanguentadas após o descarrilhamento de um desses veículos.


Perguntava, assim, se não havia nada de especial a ser relatado sobre a ferrovia. Movido pela curiosidade, passou a fazer pesquisas sobre a via férrea e as velhas locomotivas que ainda ali trafegavam. O que pôde ler em antigos documentos ainda então existentes, revelou-lhe uma história de aventuras e tragédias como nunca tinha ouvido, de arrojo e ousadia do homem, de tenacidade e de inacreditáveis sofrimentos.


À época da publicação do artigo, a ferrovia ainda encontrava-se em pleno funcionamento, percorrendo o trecho entre Porto Velho e Guajará-Mirim. Como o autor salienta, apesar dos protestos de passageiros devido à falta de conforto dos trens, e apesar do transporte aéreo e do canal do Panamá, continuava a ser indispensável para o transporte da borracha e de castanhas o Pará, assim como de outros produtos de uma imensa região que, sem ela, estaria isolada.


Ponto de partida da visão histórica de F. Caspar: ouro e outros minérios da Bolívia


Tratando em esboço a história da ferrovia segundo os documentos consultados, Franz Caspar faz remontar os seus inícios a 1851, uma época na qual grande parte do interior da América do Sul se encontrava ainda não explorada. Bolívia, por exemplo, era um país quase que desconhecido na Europa e pouco se conhecia da imensa bacia amazônica.


Sabia-se, porém, que nas cordilheiras e nas terras baixas havia grande quantidade de minérios, ouro, prata, cobre, alumínio, além de plantas medicinais, ou seja, produtos que a Europa e os Estados Unidos necessitavam.


Havia, porém, grande dificuldade para chegar-se a essas riquezas. Na costa ocidental do continente, os Andes levantavam-se como uma muralha protetora do interior, separando as minas dos portos visitados pelas linhas de navegação. No Leste, a floresta amazônica surgia como impenetravel. Não havia estradas e os rios apresentavam corredeiras que dificultavam e mesmo impediam o transporte.

Este era feito então em pequenos fardos transportados por caravanas de buros que atravessavam perigosamente as alturas das cordilheiras para levar as cargas do interior ao porto e Arica. Daqui, os navios dirigiam-se ao Estreito de Magalhães e, após a passagem do tormentoso cabo, subiam pela costa atlântica do continente até alcançar os portos norte-americanos e europeus. Uma viagem a Baltimore demorava assim ca. de quatro meses.


Encurtamento do trajeto aos Estados Unidos e à Europa antes do Canal do Panamá


Franz Caspar lembra, assim, da situação de transportes de riquezas da Amazônia anterior à construção do canal do Panamá pela parte ocidental do continente. Do lado leste, pelo Brasil, precisava-se encontrar um meio de chegar-se ao rio Amazonas, de onde os navios poderiam levar a carga à Europa e aos Estados Unidos por um caminho muito mais curto.


A data de 1851 no texto de Franz Caspar explica-se pela proposta feita neste ano do oficial da Marinha americana Tenente Lardner Gibbon de construir uma ferrovia que fosse do planalto boliviano em direção a leste até o mais próximo rio navegá´vel aos pes dos Andes. Essa ferrovia diminuiria o trajeto de La Paz a Baltimore de 3 a dois meses, representando uma grande economia de tempo e meios para o transporte de minérios da Bolívia, assim como de quinino, de madeiras nobres e de castanhas do Pará.


Naquele ano, Gibbon subiu a serra em mulas de Arica até o planalto boliviano e atingiu do outro lado a área amazônica, atingindo o curso superior do Mamoré, um rio que se oferecia como navegável, ainda que com dificuldades. Nessa região, indígenas do grupo Yuracare o levaram em canoas até povoados de pecuaristas de Mojos, onde foi possível encontrar indígenas do grupo Guarayo que o conduziram rio acima, em área de floresta habitada por povos temidos como dos Itenes e Pacanovo. Foi nessa viagem que tomou-se então conhecimento do impecilho representado pelas corredeiras. Na confluência dos rios Mamoré, Beni e Madeira, um longo trecho do rio de 370 quilômetros mostrava-se muito difícil à navegação com os seus numerosos canais e grandes rochedos.


A essas dificuldades somava-se o perigo representado por possíveis ataques de índios Caripuna. Se essas correntezas pudessem ser superadas, então alcançar-se-ia o Amazonas e, dele, o Atlântico. Na sua viagem, Gibbon superou 44 corredeiras, mas em vários locais os indígenas que o acompanharam tiveram que descer, descarregar a canoa e levar os fardos e o barco por terra através da floresta. Essas dificuldades terminavam nas proximidades de Santo Antonio, uma missão cristã abandonada, da qual podia-se, então com muito mais facilidade descer pelo Madeira até o Amazonas e alcançar Belém do Pará.


Após dois meses, o oficial retornou a Washington e apresentou os resultados de sua expedição ao Govêrno americano, onde demonstrava que as corredeiras do Mamoré e Madeira não permitiam o transporte fluvial, sendo necesario construir uma ferrovia por terra. Franz Caspar trata, assim, do início do projeto de ferrovia no contexto amplo da necessidade de encontrar-se um caminho mais curto à América do Norte do que aquele pelo cone sul do continente em época anterior ao canal do Panama. (Veja)


O projeto da ferrovia Madeira-Mamoré na história dos transportes em geral


O projeto da ferrovia Madeira-Mamoré remonta segundo Franz Caspar a uma época inicial do desenvolvimento do transporte ferroviário na própria Europa, onde, em meados do século, vias férras surgiam como meios de transportes do futuro.


A ferrovia, assim, assume um significado excepcional na história internacional das vias, de transportes e do comércio.


Um nome que ficou na memória da estrada e da região: George Earl Church (1835-1910)


Com novas informações obtidas por bolivianos, brasileiros e europeus, venceu-se a relutância das autoridades americanas, criando-se uma companhia com o objetivo de construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, uma vez que prometia grandes lucros. O Govêrno boliviano, particularmente interessado no projeto, contratou um militar de renome americano para a chefia do empreendimento: George Earl Church. Uma firma inglêsa, a Public Works Company, alcançou a concessão em 1872. 25 engenheiros vieram a Santo Antonio para dar início aos trabalhos de medição nas corredeiras inferiores. Os inglêses já tinham construido milhares de quilômetros de vias em vários continentes, possuindo grande experiência.


O projeto, que parecia de início ser de fácil implantação, foi levado com o trabalho de bolivianos e indígenas que construiram uma represa e começaram a colocar os trilhos. A malária, porém, levou ao adoecimento e à morte de engenheiros e trabalhadores, causando pânico. A convicção da impossibilidade de construção da ferrovia nessas condições associou-se à difusão na Europa de uma visão do vale do Madeira como sendo a de um inferno.


Dom Pedro II as propostas engenheiro alemão Franz Keller e a continuidade do projeto


Segundo Franz Caspar, teria sido nesse contexto que dera-se a intervenção de Dom Pedro II. O Imperador do Brasil já havia há anos enviado o engenheiro alemão Franz Keller ao Madeira para realizar levantamentos do trecho de corredeiras no sentido de tornar navegável o rio.


Franz Keller concebeu diferentes possibilidades: o da construção de ferrovia, de vias de deslize para que os próprios navios pudessem superar as corredeiras ou um canal com comportas. Neste contexto, a preocupação em possibilitar uma via de tráfego na região surge como antecipadora do canal do Panamá.


A proposta mais viável, foi a de construção de uma ferrovia. Nestas condições de apoio do lado brasileiro, George Earl Church deu continuidade ao projeto, contratando uma firma de engenharia americana, a dos irmãos Peter e Thomas Collins, da Filadélfia. Estes empresários nunca tinham estado no Brasil anteriormente, mas a firma já tinha construído ferrovias em regiões pioneiras da America do Norte e tinham confiança na realização do empreendimento.


Relações com a história da imigração italiana às Américas


O aumento da imigração européía nos Estados Unidos na época, e em particular a falta de emprêgos em época de crise econômica, explica segundo Franz Caspar o grande interesse de trabalhadores de diversas origens, sobretudo italianos, em trabalhar na construção a Madeira-Mamoré.


O primeiro navio, com 220 homens, entre êles 54 engenheiros, partiu da Filadélfia em 1878. Já no Amazonas, porem, começaram as dificuldades com o encalhe do navio. Com um vapor brasileiro, os trabalhadores puderam alcançar Santo Antonio após sete semanas de viagem. Um outro navio, o Metrópolis, trouxe 500 toneladas de trilhos, 200 toneladas de mantimentos e 215 trabalhadores e engenheiros. Essa viagem, porem, terminou com uma tragédia ainda nas costas americanas, na qual morreram 90 pessoas, perdendo-se a carga e os trilhos. Um terceiro vapor partiu após alguns dias, trazendo o próprio Thomas Collins à frente de 420 trabalhadores.


No local, Collins constatou que o Madeira não podia ser comparado com o Delaware ou o Mississipi, e dentro de poucos dias, grande número de trabalhadores e engenheiros adoeceram. Nos postos mais avançados faltavam mantimentos e remédios. As condições locais, que não permitiam que os doentes se recuperassem, sendo obrigados ao trabalho, levou a uma revolta.


Como Franz Caspar salienta, foram sobretudo os italianos que se revoltaram contra os empresários americanos. O que passavam de padecimentos e a péssima alimentação que recebiam não correspondiam à imagem do Brasil como terra de promissão que tinham e que contribuira a que aceitassem o trabalho na Madeira-Mamoré.


Em expressiva descrição de qualidades literárias, Franz Caspar descreve a revolta desses italianos e o ataque às casas dos engenheiros.


Os italianos exigiam o pagamento imediato de salários e o retorno aos Estados Unidos. Não podendo aceitar essas exigências para não por o projeto em perigo, os engenheiros usaram da força, ataquando as cabanas dos operarios e prendendo os seus líderes.


Com o sacrifício de muitos, conseguiu-se construir 800 metros da linha em 117 dias de trabalho, além de outros 3 quilômetros montados provisoriamente; construiu-se um arrimo para a ferrovia de 8 quilômetros, e uma primeira locomotiva pode ali trafegar em curto trecho.


Em homenagem ao chefe do empreendimento, essa locomotiva recebeu o nome de „Coronel Church“. Esse veiculo histórico é lembrado hoje no museu ferroviário de Porto Velho.


Com as grandes dificuldades, os acionários ingleses do empreendimento, já preparados com o fracasso da firma inglesa anterior, distanciaram-se da nova companhia. Na Inglaterra, conseguiram vitória judiciária, podendo então retirar o capital investido, o que tirou os fundamentos financeiros da empresa norte-americana.


Somando-se essas dificuldades econômicas aos contínuos adoecimentos, o que exigia oo transporte dos doentes mais graves a Manaus e a Belém, sentiu-se falta de braços.



Migrantes nordestinos na construção da ferrovia e o fim dos trabalhos


Essa falta apenas pôde ser superada com a contratação de 500 trabalhadores do Nordeste do Brasil. Esse apoio, porém, chegou tarde demais, uma vez que os trabalhadores, engenheiros e mesmo o medico abandonaram o vale do Madeira.


Franz Caspar descreve como centenas de americanos surgiram em Belém, doentes, empobrecidos e com fome, dependendo da comiseração pública. O cônsul americano procurou obter ajuda de órgãos oficiais para a sua recondução aos Estados Unidos, mas sem sucesso, esta apenas foi possível através de recursos adquiridos em coleta pública. Os problemas também atingiram os indígenas envolvidos no projeto, com mortes causadas por flechas de indígenas e americanos, entre êles o engenheiro-chefe Peter Collins.


O trabalho foi interrompido em 1879, apenas um ano após o seu início, ali permanecendo 60 homens para a proteção dos depósitos e dos trabalhos já realizados, sendo, porém, logo reconduzidos aos Estados Unidos, onde chegaram após alguns meses em miseráveis condições.


Franz Caspar pergunta, neste contexto, qual teria sido o papel do Govêrno brasileiro. Este nomeou uma comissão para a averiguação dos acontecimentos. Um grupo de engenheiros, oficiais e auxiliares dirigiram-se do Rio de Janeiro a Manaus e dali ao Madeira. Também essa comissão, porém, teve de render-se perante as dificuldades, morrendo três engenheiros, um militar e 15 trabalhadores. Franz Caspar traz assim à consciência que, após décadas de projetos e trabalhos, a ferrovia Madeira-Mamoré ainda não tinha sido construída pela passagem do século. Só o seu nome despertava terror no Exterior.


Retomada do projeto à época de grande procura internacional por borracha


A retomada do projeto deu-se com a transformação ocorrida na técnica e na economia internacional. O desenvolvimento do automóvel com os seus pneumáticos teria sido um dos fatores da procura de borracha que levaram ao despertar de interesses pelos seringais do Amazonas.


Em corrida à borracha, teria ocorrido segundo as palavras de Franz Caspar uma verdadeira „imigração de um povo de aventureiros de todas as nações ao Brasil“. As margens dos grandes rios, ocupadas por seringueiros, obrigavam os recém-chegados a entrar pelo interior da floresta. Nos pontos principais estabeleceram-se comerciantes.


Como grande quantidade de seringueiras encontravam-se nos afluentes do Madeira, tanto no Brasil como na Bolívia, a idéia da ferrovia Madeira-Mamoré ganhou novo alento. Com a subida de preços, e com o desenvolvimento da medicina, reiniciou-se o projeto em 1906.


O govêrno republicano do Brasil fechou solenemente um contrato com a Bolivia, sendo a construção da ferrovia pagamento por grande território rico de seringais adquirido daquele país.


A firma norte-americana May, Jekyll & Randolph conseguiu alcançar Guajará Mirim após seis anos. Também nesta nova fase morreram ca. de 1500 trabalhadores e funcionários com malária. Com a crise da borracha, a estação final da ferrovia permaneceu em Guajará-Mirim, não tendo continuidade o trecho boliviano.


Visita à estação/museu da Madeira-Mamoré em Porto Velho (1993)

O encontro no museu ferroviário de Porto Velho em 1993 inseriu-se na série de estudos e eventos voltados à imagem e à recepção do Brasil iniciados na Alemanha, em 1981, na cidade natal do engenheiro a quem é atribuída a técnica do „bondinho“ do Pão de Açúcar (Veja).

O fato de haver diferenças de atribuições históricas a engenheiros nessa construção, salientando-se no Brasil sobretudo a participação brasileira - reconhecendo-se o papel canadense no fornecimento da energia - chamou à atenção às consequências das transformações do cenário político-internacional ocorridas com a Primeira Guerra. (Veja)

Também no caso da Madeira-Mamoré, pouco era salientada - como no texto de Franz Caspar - a mencionada proposta do engenheiro, viajante e pintor alemão Franz Keller-Leuzinger (1835) exposta em publicação sobre os rios Amazonas e Madeira (Vom Amazonas und Madeira. Skizzen und Beschreibungen aus dem Tagebuche einer Explorationsreise. Stuttgart 1874). (Hantzsch, Viktor, "Keller-Leuzinger, Franz" in: Allgemeine Deutsche Biographie 51, 1906, 106-108)

Entre as suas atividades em diferentes regiões do Brasil, destacou-se a viagem de 1867/68 para estudos de vias de comunicação entre o Brasil e a Bolívia, vindo de encontro ao desejo de abertura de uma via pelo vale do Madeira. Constatando as dificuldades de superação das corredeiras do Madeira para a construção de um canal, propôs a construção de uma ferrovia („Relatório da exploração do rio Madeira na parte compr. entre a cachoeira de Santo Antonio e a barra do Mamoré“, 1869).

A tradução e publicação da obra de Keller do alemão ao inglês (The Amazon and Madeira Rivers. Sketches and descriptions from the note book of an explorer. Londres 1874. 2. Auflage ebd. 1876, New York 1874) serviu ao despertar de interesses de capitalistas ingleses e norte-americanos para a construção da ferrovia.

Assim considerando, a história da ferrovia Madeira-Mamoré diferencia-se na perspectiva brasileiro-alemã daquela antes centralizada na Bolívia de Franz Caspar.

Brasil-EUA: o concessionário Percival Farquhar (1864-1953)

Entre os principais nomes que devem ser lembrados em estudos de relações econômicas e de empreendimentos em contextos USA/Brasil salienta-se o de Percival Farquhar, um próspero homem de negócios da Pennsylvania que atuou como aplicante de capitais em vários projetos de transportes no Brasil, em ferrovias e portos.

Obtendo concessão do Govêrno brasileiro e adquirindo direitos de Joaquim Catramby para construir a ferrovia para o transporte do caucho do Brasil e a ligação ao oceano da Bolívia, Farquhar contratou a citada companhia americana May, Jekyll and Randolph. Os trabalhos, interrompidos há décadas, foram retomados em 1907 pela The Madeira-Mamoré Railway Company, fundada por Farquhar, sendo concluidos em 1912.

Efeitos do fim do boom da borracha e a memória da região

Dirigindo-se a atenção à época do boom do caucho/da borracha da Amazônia, a visão é antes brasileira, surgindo a participação da Bolívia à luz do Tratado de Petrópolis. De Riberalta na Bolívia, passado por Guajará-Mirim no Rio Mamoré até Porto Velho no Madeira, a ferrovia devia servir segundo o projeto inicial ao transporte da borracha. Construído foi, por fim, apenas um trecho, o brasileiro de Guajará-Mirim a Porto Velho.

A ferrovia determinou fundamentalmente a imagem de cidades e da região brasileira no passado e a sua memória no presente. Trouxe modificações sensíveis nas relações do homem com a natureza e na vida das populações indígenas.

A ferrovia entrou na história pelas dificuldades de sua implantação e pelas muitas mortes causadas. O impacto dessa mortandade foi tão profundo que permaneceu vivo em estórias e lendas, nas quais se menciona a atividade de espíritos de trabalhadores mortos em trens fantasmas.

A ferrovia Madeira-Mamoré ficou marcada pela decepção de expectativas e pela falta de sentido da sua construção devido ao fim da época áurea da borracha e da corrida à região de trabalhadores, empreendedores e aventureiros. Ca. de 20.000 homens de ca. de 40 países, da América do Norte, da Grã-Bretanha, da Alemanha, do Caribe, mas também da China e da India haviam sido atraídos para a região.

Paralelos da história ferroviária: o boom da borracha no Brasil e o rush de ouro do Alasca

Apesar de todas as diferenças quanto a regiões e os obstáculos naturais que tiveram de ser vencidos - região de floresta tropical num caso e montanhas cobertas de neve em outro, pode-se considerar relacionadamente duas ferrovias que representaram processos históricos similares numa mesma época, a do boom da borracha no Brasil e o do rush de ouro do Klondlke Gold Rush.

Veja artigo em continuidade, nesta edição


De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“Estudos da Madeira-Mamoré e sua recepção no Exterior:‘Die Gummibahn‘ de Franz Caspar (1916-1977)“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 157/4 (2015:05). http://revista.brasil-europa.eu/157/Madeira_Mamore_Franz_Caspar.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Fotos A.A.Bispo, 1993  ©Arquivo A.B.E.