Museus ao ar livre de cultura indígena: Saxman

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 157

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 157/15 (2015:5)




Museus ao ar livre de cultura indígena

O Saxman Village‘s Totem Park no Alasca




 
Saxman. Foto A.A.Bispo 2015

A museologia indígena é um dos assuntos que vem recebendo particular atenção no âmbito do programa voltado às culturas indígenas da A.B.E. (Veja).


Esses estudos tiveram o seu prosseguimento em instituições museais do Canadá e dos Estados Unidos em 2015. Os trabalhos inseriram-se no amplo programa de levantamento de fontes, de reflexões teóricas e de valorização do patrimônio indígena remontante aos primeiros anos do movimento de renovação de áreas de estudos culturais a partir de uma orientação segundo processos - não a esferas categorizadas da cultura. Esse movimento teve o seu principal momento em Congresso Internacional realizado no Rio de Janeiro em 1992, data da Conferência Internacional do Meio Ambiente e dos 500 anos da América. (Veja)


Em ano em que se comemoram os 450 anos de fundação do Rio, torna-se oportuno dar prosseguimento a reflexões que foram consideradas nesse evento, nos trabalhos precedentes que o prepararam e no decorrer das pesquisas nele iniciadas, salientando-se aqui contatos e colóquios com pesquisadores do Museu do Índio e do Departamento de Etnologia do Museu Nacional.


A questão museológica foi considerada antes e depois do congresso do Rio em visitas a museus em diferentes estados do Brasil, entre êles no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Mato Grosso do Sul, Amazonas, Pará e Goiás. Marco importante foi evento realizado pela seção de Etnologia do Museu Paulista no âmbito de congresso internacional realizado em São Paulo, em 1987. Dos encontros posteriores ao congresso do Rio, recordam-se em particular aqueles realizados em museus de Campo Grande e Manaus, assim como no Museu Goeldi, em Belém.


Museu do Indio, Rio de Janeiro. Foto A.A.Bispo 2002
Concomitantemente, foram visitados museus especializados em países europeus, na América o Norte e, em sentido mais amplo a compreensão de cultura indígena, no Pacífico e no Índico. (Veja)


Nos encontros, considerou-se a problemática da museologia indígena. Esta exige reflexões tanto sobre a concepção de museu como de cultura indígena. A consciência de que museus não são apenas repositórios para a conservação de objetos do passado, mas sim instituições vivas e vitais de pesquisa, também de desenvolvimentos atuais, de difusão de conhecimentos que podem modificar visões e mentalidades corresponde à constatação de que o universo indígena não é extinto, mas vivo, ainda que passando por rápidas transformações.


Neste sentido, museus tornam-se centros de relevância para os próprios indígenas envolvidos em complexos processos de identidade. Essa concepção de museu indígena difere daquela de instituições que ainda são marcadas por apresentações convencionais conhecidas de antigos departamentos de Etnografia.


Em encontros no Museu do Índio do Rio de Janeiro em diferentes ocasiões, em particular em 2002 por ocasião do término do triênio internacional pelos 500 anos do Brasil, constatou-
Bispo e Levinho. Museu do Indio RJ, 2002. Arquivo A.B.E.
se o empenho da instituição em ser não só um centro de estudos e de conservação de objetos e obras, mas sim também centro dinâmico voltado a desenvolvimentos no presente e irradiador de impulsos múltiplos.


De encenações em vitrines de museus etnográficos ao ar livre


Para além de salas de exposição, arquivos e acervos, o Museu possui, nos seus jardins, construção e objetos que procuram possibilitar aos visitantes uma maior aproximação a modos de vida estreitamente relacionados com o meio envolvente e o mundo natural.


Em museus ainda mais marcados pela tradição, registra-se frequentemente o intuito de demonstrar essa inserção da vida indígena na natureza em quadros vivos encenados em vitrines.

Transferindo-se porém a exposição para fora, para o ar livre, possibilitando que o visitante percorra espaços, as relações entre o exposto e o observador se modificam.


Esse procedimento traz à tona questões referentes a museus ao ar-livre e que vem sendo discutidas em outras áreas culturais, em especial naquelas de folclore e de história regional.


Museu do Indio RJ. Foto A.A.Bispo 2002. Arquivo ABE

Museus ao ar livre e a identificação cultural do observador


Nessa tradição de museus ao ar livre de natureza histórico-regional e de folclore, as instituições refletem a posição ou identidade cultural do observador. Para além da conservação de construções e artefatos, neles se oferece a oportunidade de vivência de modos de vida do passado da própria sociedade e dos impulsos que dele partem para o presente.


Significativamente, esses museus de história e cultura regional, existentes em considerável número na Europa, são designados sob termos que indicam terra natal, pago ou contexto cultural com o qual o observador encontra-se ligado por laços emocionais e de identidade, vendo-o como „seu“, como no caso, em alemão, dos Heimatmuseen. Situações similares poderiam ser analisadas no caso dos museus de história colonial existentes no Brasil ou de colonos, imigrantes e retornados na própria Europa, como é o caso da antiga presença alemã na Romenia (Veja). 


O debate respectivo teve o seu início em sessão realizada em 1975 no museu ao ar livre de Kommern, Alemanha, em cooperação com a Associação Brasileira de Folclore. (Veja)


Os museus ao ar-livre da Europa apresentam diferenças de acordo com regiões e contextos culturais, assim como à orientação de seus trabalhos e às questões que levantam. Muitas dessas questões vêm sendo consideradas em referenciações com a problemática brasileira em trabalhos desenvolvidos pela A.B.E. em diferentes países. Entre êles incluem-se museus que assumem particular interesse sob o aspecto da arquitetura tradicional, de trabalho agrícola, de técnica e indústria do passado, estes hoje de particular significado na refuncionalização de antigas fábricas, portos e estações.


As questões tematizadas e as reflexões encetadas nesses diferentes museus ao ar-livre necessitam ser reconsideradas quando se trata de culturas extra-européias. A representação de grupos culturais não-europeus ao ar-livre na Europa possui uma questionável história, bastando lembra-se da apresentação de africanos e outros povos de regiões coloniais em zoológicos e parques criados por ocasião de exposições coloniais no passado.


Pergunta-se, assim, quais seriam as possibilidades de projetos museológicos no seu sentido dinâmico, não só de preservação, mas de gerador de impulsos a partir da perspectiva daqueles que se identificam com a cultura representada. Em determinados casos, como na representação da cultura da Polinésia no Havaí, as atividades assumem o cunho de show e de auto-celebração festiva. (Veja) Em outros casos, como em Vanuatu, procura-se possibilitar uma maior vivência do observador de modos de vida tradicionais de povos da floresta através de encenações cujos protagonistas são os próprios nativos que, até mesmo já possuindo formação acadêmica, representam a vida e a cultura de seus ascendentes. (Veja)


É em continuidade a esses estudos e reflexões referenciadas segundo o Brasil que os museus ao ar livre de cultura indígena do Alasca adquirem particular interesse.


Saxman Village‘s Totem Park



A cidade de Ketchikan, considerada como „capital mundial do totem“, possui significativos museus indígenas que tematizam relações entre a cultura indígena e a natureza, demonstrando possibilidades de seu tratamento museológico. O principal centro de conservação de bens e estudos é o Totem Heritage Center em Ketchikan, construção inspirada em casa comunitária mas que também inclui totem poles em áreas externas.


Mais especificamente museus ao ar livre são, nas suas circunvizinhanças, o Totem Bight State Historic Park, ao norte da cidade, assim como o Saxman Totem Park, ao sul, na ilha Revillagigedo. Se o primeiro, como a sua denominação indica, possui uma orientação antes histórica, o segundo adquire significado especial pela sua orientação dirigida ao presente e pela sua disposição espacial que o monumentaliza como memorial e local de apresentações com cunho celebrativo. Essas caracterítiscas acentuam um posicionamento identificatório indígena, sendo aqui os observadores externos aqueles que participam de uma auto-valorização cultural e de memória histórica nativa.


Em fins da década de 30 e início dos anos 40, o Civilian  Conservation Corps criou os parques de totens em Saxman Village e Totem Bight. Como parte dos seus trabalhos, a instituição fomentou o entalhamento de totem poles, entre os quais exemplares que hoje ainda enriquecem os parques.



Saxman Totem Park e processos de transformação cultural do grupo Tlingit


Saxman - não distante do local onde se levanta hoje a área museal - foi procurada por indígenas do grupo Tlingit provindos de antigas aldeias de Cape Fox e Tongass para a instalação de uma escola e uma igreja, sendo a povoação fundada em 1894.


Assim, a região e a área museal são estreitamente relacionadas com o abandono de aldeias e com a mudança cultural causada pela atividade de missionários e de educação cristã.


A denominação Saxman deriva do nome do professor de escola local Samuel Saxman, um dos três homens desaparecidos em dezembro de 1886 no decorrer da procura de um novo local para o estabelecimento do povo das aldeias de Tongass e de Cape Fox.


Os totens que se levantam na aldeia de Saxman representam uma das maiores coleções existentes. Nela se incluem exemplares transferidos de Pennock, Tongass e Village Islands e do antigo povoado de Foc no Kirk Point. Vários dos polos foram restaurados no âmbito de trabalhos conduzidos oficialmente desde 1939 pelo Govêrno Federal sob a direção do U.S. Forest Service.


Em área elevada não distante da estrada costeira, próximo à sede do Triball Office do Conselho local, levanta-se um conjunto de 25 totem poles que definem e dominam de forma expressiva um espaço monumentalem cujo centro se encontra uma casa de clã nativa. Nesse espaço, oferecem-se apresentações de danças indígenas.


Atelier de artesanato artístico, de formação de escultores e apresentações


Na área encontra-se um atelier ou oficina de criação plástica de totem, destinado à formação de futuros escultores indígenas. Não apenas técnicas artesanais do tratamento da madeira e de trabalhos de relêvo são exercitadas, mas sim também transmitidos elementos básicos da linguagem visual tradicional.



O ensino não é marcado por intuitos de realização de cópias, mas sim pela discussão e experimentação de relações entre o antigo e o contemporâneo.


Como os totem poles possuem complexos sentidos, cuja leitura e interpretação é objeto de análises e discussões, as relações entre o tradicional e a sua atualização não diz respeito apenas a elementos estilísticos, mas sim também a significados.


Ao lado dessa oficina, artesãos indígenas locais ou em formação oferecem exposições da técnica de preparação de troncos e de sua configuração plástica ou artístico-artesanal. Essas apresentação servem à informação de visitantes provenientes de diferentes partes do mundo.


A produção atual de objetos segundo a tradição ou nela inspirada vem de encontro ao fato do Totem Park apresentar réplicas de originais de antigas aldeias indígenas ou novas criações.


Esses originais eram de povoados que foram abandonados pelos indígenas dos grupos Tlingit, Haida e Tsimshian no decorrer do processo de mudança social e cultural por êles experimentados.


Cristianizados e atraídos pelos centros urbanos que se desenvolveram a partir de fins do século XIX, em particular com a corrida do ouro e a vinda de aventureiros à procura de enriquecimento rápido, as antigas aldeias ficaram abandonadas, nelas ficando os totem poles que eram seus elementos identificatórios.


O abandono dos totem poles no decorrer da transferência de indígenas aos núcleos urbanos que surgiram à época da corrida do ouro encerrou uma fase de prosperidade de grupos indígenas possibilitada pelos tratos anteriores com comerciantes.


Memoriais de fase de prosperidade e sua revitalização


Os totem poles - para além dos múltiplos sentidos de sua linguagem visual - surgem como monumentos esse passado que trouxe enriquecimento de clans, mas que também desencadeou processos transformatórios que levaram a crises culturais.


Relembrar e celebrar essa época relacionam-se com a valorização de uma situação que, apesar de toda a sua instabiliade, ainda era marcada pela predominância indígena, o que deixou de acontecer à época do ouro com o correspondente desenvolvimento de cidades.


Saxman tematiza assim não só mudanças culturais na sociedade indígenas, mas mudanças de sistemas referenciais e paradigmas.


A celebração desses bens patrimoniais por parte de descendentes de indígenas ou que se identificam como indígenas não tem apenas o sentido nostálgico de recordação de uma época passada de prosperidade econômica e que conheceu um florescimento da arte do totem.


Ela adquire significado como manifestação de um posicionamento na visão de fatos e desenvolvimentos, aquele estabelece uma prioridade indígena na consideração e julgamento de decorrências e situações. Para a percepção desses anelos, os elementos estilísticos e as imagens que diferem do repertório tradicional adquirem particular significado.


Essas inovações podem dar-se em novos jogos de elementos da linguagem consuetudinária, o que implica em complexas relações de sentidos, ou na inclusão de figuras de pessoas e de objetos não-indígenas, facilmente reconhecíveis.


Este é o fato da presença de europeus ou americanos com roupas ocidentais em totem poles do tipo de poles de opróbio. (Veja) Com essas representações, expressa-se a crítica individual e social de indígenas com referência àqueles vistos como forasteiros, denunciando qualidades negativas de caráter e procedimentos


Não objetos de culto - mas sem sentidos religiosos?


Constata-se, tanto no Totem Heritage Center como em outros centros e museus dos Estados Unidos e do Canadá, uma preocupação insistente em salientar -sque os totem poles não tiveram e não possuem sentidos religiosos, nunca tendo sido objetos de culto. Essa insistência chama a atenção, pois é manifestada claramente com intuitos esclarecedores, procurando corrigir êrros e suposições do passado ou da opinião comum.


De fato, os missionários do passado foram principais responsáveis pela destruição da cultura consuetudinária indígena e, com isso, dos totem poles. Levaram, direta ou indiretamente à perda de patrimônio que agora se procura resgatar e preservar, valorizando-os como símbolos da identidade cultural indígena e modêlos inspiradores de criações plásticas.


A insistência com que se salienta que os totem poles nunca foram objetos de culto pode ser compreendida como uma correção de suposição de antigos missionários que neles viram ídolos pagãos que deveriam ser destruídos.


Essa insistência revela uma preocupação esclarecedora voltada à atualidade. A crescente atividade missionária e a propagação de movimentos evangelicais que partem de uma visão reduzida a leituras literais da bíblica e que, em fundamentalismo mal compreendido são marcados por estreiteza de mentes e visões, coloca em perigo a arte indígena e os propósitos de sua valorização como bens patrimoniais e modêlos inspiradores da criação artística do presente e do futuro.


A insistência esclarecedora de que os totem poles nunca foram e não são expressões de idolatria possui, desse modo, função na pedagogia e política museológica de informação de público marcado por ressentimentos e delimitações de visões. Esvaziando-os de sentidos religiosos, contribui-se assim a que os intentos de sua preservação e valorização não sejam vistos com ressentimentos e reservas por parte de evangélicos fundamentalistas.


Essa sempre registrada preocupação em corrigir errôneas suposições relativas aos totem poles como objetos e culto em instituições científicas corresponde, de fato, a posições de muitos etnológos.


Deve-se, porém, fazer distinções quanto a essas assertivas, diferenciando-as quanto a conceitos de religião e perspectivas. Mesmo que os totem poles não tenham sido ídolos de culto, isso não significa que não se relacionaram com a visão do mundo e do homem, com a cosmologia e antropologia. A sua linguagem visual testemunha com evidência sentidos simbólico-antropológicos e estes são relacionados com concepções e imagens de céus e terra.



De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“Museus ao ar livre de cultura indígena. O Saxman Village‘s Totem Park no Alasca“. 
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 157/15 (2015:05). http://revista.brasil-europa.eu/157/Museus_indigenas_ao_ar_livre.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

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Fotos A.A.Bispo, 2015 ©Arquivo A.B.E.