O totem revivido: identidade e arte

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 157

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 157/14 (2015:5)





O Totem revivido
Identidade e arte das
First Nations na British Columbia e no Alasca
no contexto global dos estudos indígenas
20 anos de visita ao National Museum of the American Indian,Smithsonian Institute, George Gustav Heye Center em New York

I - O totem como patrimônio cultural - Totem Heritage Center, Ketchikan



 
Totem Heritage Center, Ketchikan, 2015

Em 1992, ano dos 500 anos do Descobrimento da América e da conferência internacional do Meio Ambiente no Rio de Janeiro, deu-se início a amplo projeto internacional dedicado a culturas indígenas que determinou múltiplos e diversificados trabalhos dos anos que se seguiram. (Veja)


Em 2015, comemorando-se os 450 anos do Rio de Janeiro, planejaram-se ciclos de estudos e visitas a instituições em continuidade a esse projeto. Uma delas foi o Totem Heritage Center, em Ketchikan, Alasca.


O projeto iniciado no Rio deu sequência a esforços, estudos e iniciativas precedentes, remontantes às preocupações pela renovação teórica de áreas de estudos culturais através de um direcionamento da atenção a processos - não a esferas categorizadas da cultura -, o que teve a sua expressão na fundação da atual organização de estudos de processos culturais em relações internacionais. (Veja)


Incluindo não só etnólogos, mas sim também pesquisadores de outras áreas de conhecimentos, o projeto procurou levantar fontes e tomar conhecimento de desenvolvimentos atuais, iniciativas e posições em diferentes contextos.


Resultados de trabalhos em andamento foram publicados e serviram à discussão em simpósios e eventos, salientando-se aqueles realizados no âmbito das comemorações dos 500 anos do Brasil. Como parte do congresso de encerramento do triênio respectivo, em 2002, realizou-se um colóquio dedicado a processos culturais decorrentes do encontro de sociedades indígenas com a sociedade nacional em expansão. (Veja)


Na sessão levada a efeito na Sala do Índio no Palácio Itamaraty do Museu de História Diplomática do Ministério das Relações Exteriores, salientou-se a necessidade do prosseguimento dos trabalhos na sua abrangência internacional, considerando-se em particular a sua relevância para estudos de processos e de análises de edifícios culturais e imagológicos que não se limitam a fronteiras nacionais e mesmo continentais. (Veja)


Até então já se havia realizado estudos, levantamentos de fontes e objetos, contatos e colóquios em museus e instituições de diferentes países, entre outros do National Museum of the American Indian do Smithsonian Institute no centro George Gustav Heye Center em New York, aberto em 1994. A partir de 2002, no âmbito dos trabalhos da A.B.E., intensificaram-se visitas a outras instituições da América do Norte - para além daquelas européias. Este foi o caso, na costa leste dos EUA, do Abbe Museum em Bar Harbor (Veja).


A visita a museus de cultura indígena no Canadá - Toronto,  Vancouver, Victoria - assim como no Alasca (USA), procurou aprofundar os conhecimentos quanto ao trabalho e as iniciativas de centros em outras regiões da América do Norte, em particular da sua costa oeste.


Totem Heritage Center, Ketchikan, 2015

O Totem Heritage Center em Ketchikan - totens como patrimônio cultural


Totem Heritage Center, Ketchikan, 2015
O Totem Heritage Center, em Ketchikan, é uma das principais instituições culturais do Alasca, de significado que transcende a região, e mesmo o Alasca como estado dos USA. Diz respeito à cultura indígena na sua abrangência americana e, de forma ainda mais ampla, ao mundo indígena em dimensões mundiais.


O seu principal objeto de conservação e estudo relaciona-se com questões fundamentais da etnologia, tendo marcado o desenvolvimento da área.


Estas questões adquirem hoje renovado interesse e atualizam-se sob perspectivas teórico-culturais que ultrapassam interisciplinarmente a esfera tradicional dos estudos etnológicos.


Situado nos arredores de Ketchikan, a sua configuração arquitetônica inspira-se na casa comunitária tradicional indígena. Foi construída em 1976 pela municipalidade de Ketchikan para a conservação e exibição de uma coleção de totens originais, que é única nos Estados Unidos. O significado patrimonial desses objetos manifesta-se no fato do centro ter sico incluído no National Register of Historic Places.


A instituição do centro foi resultado da tomada de consciência e dos esforços empreendidos de salvaguarda e valorização dos totens como objetos relevantes do patrimônio cultural indígena e americano em geral.


Totem Heritage Center, Ketchikan, 2015
Esses esforços foram desenvolvidos entre 1967 e 1970 no âmbito do projeto „Totem do Alasca: um patrimônio em perigo“. No desenrolar dos trabalhos de levantamento, foram encontrados 33 „poles“ de totem, assim como postes de casas e fragmentos de aldeias dos grupos Tlingit e Haida já abandonadas nas circunvizinhanças de Ketchikan.


O Totem Heritage Center não se compreende apenas como repositório museal de conservação desses objetos, voltado exclusivamente ao passado, mas sim como centro vivo de divulgação valorizadora e de promoção de atividade artístico-cultural que permitam a continuidade da tradição de forma atualizada e mesmo reinterpretada. Oferece, para isso, cursos em arte indígena da costa noroeste, exibições, demonstrações várias e excursões que enfatizam a cultura viva dos Haida, Tlingit e indígenas Tsimshian.



O pole de fundação do Centro e Ketchikan como „capital mundial do salmão“


Significativamente, a inauguração do Totem Heritage Center foi marcada pelo levantamento de um desses „poles“ em 1979, que foi projetado e esculpido no estilo Tlingit pelo artista Nathan Jackson em homenagem aos Tlingits Tongass da região.


Na sua linguagem visual, o totem, denominado de „Raven-Fog Woman“, refere-se à lenda da criação do salmão. Como resultado de um desentendimento do casal, a mulher do Raven abandonou a sua casa; quando o marido quis segurá-la, desvaneceu-se em névoa entre os seus dedos. Todos os salmões defumados e sêcos a seguiram, deixando Raven e seus escravos sem nada, apenas com cabeças de touro. Esses elementos simbólicos, aptos a diferentes interpretações, encontram-se no totem então criado.


Processos históricos nas relações com o europeu: apogeu e decadência do totem


A própria denominação do projeto „Totem do Alasca: um patrimônio em perigo“ indica que à base do Totem Heritage Center encontra-se a preocupação inicial de preservação de bens patrimoniais devido a transformações sociais e culturais das sociedades indígenas. A atenção revela ser dirigida a processos históricos, tanto aqueles que colocam essa herança cultural em perigo no presente, como aqueles que determinaram o seu florescimento no passado.


Esse florescimento deu-se em espaço de tempo que vai de meados do século XVIII às primeiras décadas do XIX nas áreas costeiras da Columbia Britânica e do Canadá até Yakutat, Alasca. Tal desenvolvimento coincidiu com época de maior prosperidade para aqueles envolvidos em tratos lucrativos com exploradores e comerciantes que atingiam a região, sendo, assim, êle próprio resultado de situações transformatórias resultantes de contatos.


Os povos nativos do Sudoeste do Alasca desenvolveram formas artistas distintas, sofisticadas, muito antes de seus contactos com europeus. Exploradores do século XVIII documentaram a existencia de colunas de cedro esculpidas com imagens totêmicas. As colunas altas, levantadas isoladamente, tornaram-se comum com a difusão do uso do ferro, obtido com o comércio dos indígenas com europeus. Antes, os escultores nativos usavam de pedra, conchas, ossos e dentes de animal no seu trabalho. A competição por status entre os chefes  expressou-se em grande potlatches para demonstrar a sua prosperidade.


Segundo o Centro, os totens erma documentos visuais do prestígio de um clã e sua identidade. Esse período de prosperidade e de criatividade artística é chamado de época de ouro na história da plástica de totem. Historicamente, esse período durou 40 ou 50 anos, alcançando o seu apogeu na década de 60 do século XIX. É dessa época que provém vários dos objetos conservados no Totem Heritage Center.


Em meados do século XIX, doenças levaram a mortandades na população nativa. Ao mesmo tempo, a crescente influencia de missionários e negociantes tiveram profundo impacto na vida tradicional.


Ao redor de 1900, muitos dos residentes nativos mudaram-se para centros populacionais à procura de emprego na pesca e nas indústrias de minérios e para frequenter igrejas e escolas. A pressão dessa nova forma de vida levou a um declínio na criação artística na primeira metade do século XX.


Hoje, a escultura de totem tornou-se uma forma vital de expressão para artistas nativos. O Totem Heritage Center tem sido um centro desse renascimento. Os totens conservados do passado fornecem inspiração para artistas nativos da atualidade. Nas aulas em arte tradicional, procura-se formar artistas para o futuro.


Símbolos da identidade cultural - „brasão de armas“ indígena


O Totem Heritage Center parte da constatação de que os totem poles são os mais representativos símbolos da identidade cultural dos povos nativos do Alasca. Com essa expressão, o centro estabelece uma ponte com o vocabulário e as preocupações de estudos culturais mais recentes, marcados que são pelo conceito de identidade.


Em textos elucidativos dos objetos e em publicações, salienta-se que esses objetos esculpidos eram criados e levantados por diferentes motivos e serviam a diversas funções. Podiam ser esculpidos em memória a ancestrais, servindo como registros de história, de eventos sociais e de tradição oral. Registravam genealogias e estorias antigas, servindo como memoriais de indivíduos e fatos de importância. A sua própria configuração plástica servia à proclamação de linhagem familiar e histórica. Serviam como símbolos de união entre povos de comum origem. Um indivíduo poderia ter um totem baseado no seu pertencimento a sua metade na organização social e de clã.


Há também, adicionalmente, aqueles totens adquiridos de diferentes formas. Podiam ser ganhos em guerras, como presentes, aceitos em lugar de uma dívida não paga ou alcançado através de um fato significativo. Antigas histórias contam como alguns deles foram obtidos como resultado de experiência não usual de um ancestral com um animal ou uma criatura supranatural.



Tentativas de leituras da linguagem visual e suas interpretações


As figuras que se sencontram no repertório visual transcendem barreiras geográficas, sociais e de língua, identificando membros de uma mesma família.


Essa arte dos escultures desenvolveu-se através dos séculos e inclui tantos elementos convencionais e consuetudinários como inovativos.


Hoje, o artista trabalha com uma refinada organização de linha, cor, forma e espaço para criar simbolos reconhecíveis para os poles e as estórias que revelam. Artistas expressam individualidade e creatividade nesse complexo de convenções usando diferentes procedimentos quanto ao design.


O elemento básico da Costa Noroeste é a formline. Curvolinear e de diferentes profundidades, a formline define a as configurações. O uso repetido de elementos, por exemplo motivos ovais e formas em u e s surgem em várias figuras como olhos, rabos, asas e outras. Por vezes, uma forma pode ser usada como elemento de transição ou simples preenchedora de vazio, sem associação lógica com as figuras. A influência de outras culturas pode ser constatada por vezes no vocabulário e no assunto.


Tentativas de sistematização e tipologia


No Totem Heritage Center salienta-se a existência de vários tipos de totem poles:


Poles de vergonha ou de ridicularização. Esses poles eram levantados para o opróbio público de alguém que quebrava a palavra, comportava-se de forma desonrosa ou não pagava uma dívida. Se houvesse emendas, eram derrubados e destruidos.


Poles mortuários eram aqueles encomendados por motivo da morte de uma pessoa de alta posição com a função de guardar o corpo cremado. As cinzas era colocadas numa caixa e esta inserida numa cavidade aberta na parte traseira do pole.


Poles memoriais eram aqueles que honravam membros falecidos importantes do clã. Aquele que devia assumir a responsabilidade e a função de ser cabeça de uma casa de clã não poderia assumir liderança até que não tivesse comissionado e eregido um memorial comemorando a morte e a linhagem de seus predecessores.


Postes de casa ou pilares. Eram esculpidos com emblemas de histórias familiares. Esses postes sustentavam a trave principal da casa do clã. Eram comuns entre os Tlingits e podiam ser mais facilmente transportados.


Poles Crest ou heraldicos eram aqueles colocados em frente da casa mostrando a designação matrilineal do clã. Exemplos mais antigos do grupo Haida incluiam o pole portal, que, tendo uma abertura na parte baixa, possibilitava a entrada ceremonial na respectiva casa. Indicavam a origem geográfica do clã, a genealogia ou eventos na história familiar.


Não objetos de culto - mas sem sentidos religiosos?


Constata-se, tanto no Totem Heritage Center como em outros centros e museus dos Estados Unidos e do Canadá, uma preocupação insistente em salientar que os totem poles não tiveram e não possuem sentidos religiosos, nunca tendo sido objetos de culto. Essa insistência chama a atenção, pois é manifestada claramente com intuitos esclarecedores, procurando corrigir êrros e suposições do passado ou da opinião comum.


De fato, os missionários do passado foram principais responsáveis pela destruição da cultura consuetudinária indígena e, com isso, dos totem poles. Levaram, direta ou indiretamente à perda de patrimônio que agora se procura resgatar e preservar, valorizando-os como símbolos da identidade cultural indígena e modêlos inspiradores de criações plásticas.


A insistência com que se salienta que os totem poles nunca foram objetos de culto, sendo portanto falsa a suposição de antigos missionários revela, porém, uma preocupação esclarecedora voltada à atualidade.


A crescente atividade missionária e a propagação de movimentos evangélicos/evangelicais que partem de uma visão reduzida a partir de leituras literais da Bíblia e que, em fundamentalismo mal compreendido são marcados por estreiteza de mentes e visões, coloca em perigo a arte indígena e os propósitos de sua valorização como bens patrimoniais e modêlos inspiradores da criação artística do presente e do futuro.


A insistência esclarecedora de que os totem poles nunca foram e não são expressões de idolatria possui, desse modo, função na pedagogia e política museológica de informação de público marcado por ressentimentos e delimitações de visões. Esvaziando-os de sentidos religiosos, contribui-se assim à compreensão dos intentos de sua preservação e valorização.


Essa sempre registrada preocupação em corrigir errôneas suposições relativas aos totem poles como objetos de culto corresponde, de fato, a posições de alguns etnológos.


Deve-se, porém, fazer distinções quanto a essas assertivas, diferenciando-as quanto a conceitos de religião e perspectivas. Mesmo que os totem poles não tenham sido ídolos ou objetos de culto, isso não significa que não se relacionaram com a visão do mundo e do homem, com a cosmologia e antropologia. A sua linguagem visual testemunha sentidos simbólico-antropológicos e estes são relacionados com concepções e imagens de céus e da terra.


Máscaras, cantos e danças


Assim como os totem poles, as máscaras serviam a diferentes funções na cultura nativa do Noroeste do Alasca. Os animais, humanos e figuras míticas representavam importantes eventos históricos ou feitos pessoais, ou simbolizavam estórias de como os direitos de cantos, nomes e estórias tinham sido obtidos por grupos de clan ou indivíduos.


Durante ocasiões especiais, quando as máscaras eram trazidas para fora, esses cantos eram entoados e as estórias recontadas para assegurar o que passara. Isso servia também para revalidar publicamente o significado das máscaras e os eventos e fatos que visualizavam. Os xamanes tinham as uas proprias mascaras, associadas com os espiritos da vida e da morte, com o mundo animal e dimensões supernaturais. Todas as máscaras expostas no centro foram feitas por instrutores que ali oferecem cursos de plástica.


De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Todos os direitos reservados

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“ O Totem revivido: Identidade e arte das First Nations na British Columbia e no Alasca
no contexto global dos estudos indígenas“. 
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 157/14 (2015:05). http://revista.brasil-europa.eu/157/Totem_patrimonio_cultural.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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