Museus ferroviários: Porto Velho e Skagway

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 157

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 157/5 (2015:5)





Ferrovias de riqueza e morte: Brasil e Alasca

Madeira-Mamoré e White Pass and Yukon

II - Comparando museus ferroviários: Porto Velho e Skagway






 
White Pass and Yukon.Foto A.A.Bispo 2015

Apesar de todas as diferenças quanto a regiões, contextos e obstáculos naturais que tiveram de ser vencidos - região de floresta tropical no caso da ferrovia Madeira-Mamoré no Brasil e montanhas cobertas de neve e gêlo da White Pass and Yukon no Alasca -, pode-se considerar relacionadamente essas duas ferrovias por representaram processos históricos similares de corridas e febres à procura de riquezas numa mesma época, a do transporte de minério da Bolívia e boom da borracha no Brasil e do gold rush de Klondlke. (Veja)

Os estudos realizados e as reflexões encetadas no decorrer das últimas décadas relativos a meios de transportes em processos culturais (Veja) tiveram continuidade em 2015. Comemorando-se neste ano o centenário de nascimento de Manoel Rodrigues Ferreira (1915-2010), principal historiador da ferrovia Madeira-Mamoré, pareceu ser oportuno recapitular alguns aspectos dos trabalhos respectivos considerando com especial atenção paralelos entre a ferrovia brasileira e aquela do Alasca. (Veja)

Após 20 anos da consideração a ferrovia no âmbito da publicação de estudos dedicados à Rondônia de projeto internacional dedicado a culturas indígenas (A.A.Bispo, „Rondonia“, in „Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens: Stand und Aufgaben der Forschung 1“, Musices Aptatio 1994/95, Roma/Colonia 1997, 15-72, 43 ss.)., a visita à ferrovia ligada à história do gold rush do Alasca traz á luz paralelos e abre novas perspectivas no tratamento da ferrovia brasileira.

Se o projeto da Madeira-Mamoré foi muito anterior à do Alasca, remontando a meados do século XIX, as dificuldades encontradas fizeram com que fosse apenas retomado na primeira década do século XX, caindo, assim, na época da construção da White Pass and Yukon.

Se também a Madeira-Mamoré foi resultado sobretudo do intento de alcance e exportação do ouro nas regiões de difícil acesso da Bolívia, sendo assim também uma „ferrovia de ouro“, a implantação real da estrada tornou-a antes uma ferrovia da borracha. Teria sido  „de ouro“ apenas pelas grandes despesas que causou.

Em ambos os casos, um pequeno trecho das desativadas ferrovias da Rondônia e do Alasca pode ser percorrido em trens especiais para fins turísticos e de interesse histórico. No Brasil, entre Porto Velho e Santo Antonio, no Alasca, entre Skagway, Alaska e Carcross, Yukon .

White Pass and Yukon.Foto A.A.Bispo 2015

White Pass and Yukon.Foto A.A.Bispo 2015
A White Pass & Yukon Route: „ferrovia construida de ouro“ e „ferrovia do diabo“

A construção da ferrovia, em 1898, foi um resultado da corrida de ouro de Klondike. Procurou-se ligar o porto de Skagway ao Whitehorse Yukon e, mais além, ao noroeste do Canada e ao interior do Alasca.

O seu projeto parecia impossível de ser realizado devido à topografia montanhosa, devendo-se vencer profundos vales, dinamitar rochedos e abrir túneis. 

A obra, realizada em apenas 26 meses, foi
Centro-Klondike Gold Rush Historical Park. Foto A.A.Bispo 2015
possibilitada por financiamento inglês, segundo contratos canadenses. Nela atuaram engenheiros americanos. 

Sob vários aspectos, a ferrovia foi um feito da história da técnica e da engenharia de transportes. Assim, uma ponte de estrutura de aço no trajeto foi a mais alta do mundo à época de sua construção, em 1901.

White Pass and Yukon.Foto A.A.Bispo 2015
O projeto de construção da ferrovia do litoral do Sul do Alasca ao território de Yukon remonta a 1885. Pensava-se em implantar a estrada através do passo de Chilkoot (Chilkoot Pass and Summit Railroad Company). Com a descoberta de ouro nas proximidades de Dawson, em 1896, garimpeiros de várias regiões passaram a vir à região do rio Yukon, o que demonstrou a necessidade de construção da ferrovia.

Diferentemente dos planos originais, escolheu-se o passo White, partindo a ferrovia de Skagway.

A linha devia chegar até Fort Selkirk, o que não ocorreu por motivos financeiros. Também aqui, como no caso brasileiro, constatam-se paralelos, uma vez que o ramal boliviano da Madeira-Mamoré não chegou a ser construido.

Em 1897, criaram-se três empresas para a realização da obra: a Pacific and Arctic Railway and Navigation Company (Alasca), a British
White Pass and Yukon.Foto A.A.Bispo 2015
Columbia Yukon Railway Company (BC), e a British Yukon Mining, Trading and Transportation Company (Yukon).

O White Pass na fronteira com o Canadá já pode ser alcançado no início de 1899.

Na memória local, vários episódios e estórias transmitem-se a respeito da construção desse trecho, que exigiu obras de engenharia audaciosas e que levou a muitas mortes.

A ambição e o desejo de enriquecimento dos aventureiros levaram - segundo a tradição oral - a que êles próprios ajudassem a implantar os trilhos no caminho até Bennett dos trens que usavam.

Particularmente difícil foi o trecho de Bennett e Carcross ao lado do lago Bennett. O trecho foi inaugurado em 1900.

Na construção, trabalharam ca. de 35.000 operários. Contam-se, oficialmente, 35 mortes, ou seja, um número muito menor do que o dos vitimados da ferrovia Madeira-Mamoré.

O ano de 1898 entrou sobretudo na história trágica dessa construção devido às dificuldades e às vítimas em homens e animais. A abertura do caminho nos rochedos e a passagem de abismos levou ao sacrifício desumano de centenas de cavalos.

Decepções em duas latitudes com o término de época de boom econômico

O projeto foi por fim decepcionante, uma vez que o declínio do ouro tornou desnecessária a construção da linha até a cidade de Dawson e a Fort Selkirk. Esse trecho continuou a ser servido por veículos de correio a cavalo, mantidos pela ferrovia. Um trecho de Taku City até a Scotia Bay, inicialmente com trilhos de madeira (Taku Tram), foi reconstruído e provido de locomotivas a vapor em 1900. Usando vapores costeiros em combinação com a ferrovia e serviços de cabotagem em rios era possível ir de Seattle a Dawyon City em apenas oito dias ao redor de 1901.

Apesar do declínio econômico da exploração do minério, a ferrovia manteve as suas atividades através do século XX. Em meados da década de 30, criou-se uma companhia aérea de aeroplanos. No início da década de 40. a companhia aérea foi vendidda para uma empressa formada pelo Grant McConachie, sendo esta sucedida pela Canadian Pacific Airlines.

A ferrovia de Taku foi extinta em 1951, sendo os trilhos removidos em 1956.  As operações do White Pass e Yukon foram suspensas em 1982, uma vez que o tráfego já não compensava financeiramente devido à queda do preço do minério e à crise de sua exploração.

Para fins turísticos, a ferrovia foi reaberta em 1988. Tornou-se uma das principais atrações da cidade, justificando visitas de Skagway.

Estação-museu e Centro de Visitantes do Klondike Gold Rush National Historical Park

O museu da White Pass and Yukon na estação de Skagway, ainda que similar na sua função àquele da estrada de ferro Madeira-Mamoré em Porto Velho, apresenta diferenças quanto à concepção e apresentação de documentos e objetos históricos.

O museu brasileiro, visitado em 1993,com as suas locomotivas, vagões e máquinas históricas nos espaços e depósitos originais, distingue-se como museu da técnica e da história ferroviária, podendo ser comparado em significado a similares museus de história ferroviária europeus, como, por exemplo, o de Dieringhausen, Alemanha, próximo ao Centro de Estudos Brasil-Europa.

O museu de Skagway, não se distingue tanto por apresentar locomotivas históricas, máquinas e vagões restaurados ou construídos segundo modêlos históricos trazendo nomes de lagos, rios e regiões do Alascada, mas sim por expor documentos históricos relativos aos elos entre o rush do ouro e o desenvolvimento das vias de transporte em geral do Alasca.

Mais do que objetos expostos, sobressaem-se fotografias e outros documentos que trazem à luz não só aspectos da construção da ferrovia e das suas principais datas, mas sim também do desenvolvimento de outros meios de transportes, da navegação e da aviação.

O contexto internacional em que se inscreveu esse desenvolvimento é lembrado de início sobretudo sob a perspectiva econômica.

Celebra-se no museu a memória de W. B. Close (1853-1923), o fundador de Close Brothers, o Banco Mercantil de Londres, lembrado em retrato oferecido pelos diretores do Close Brothers Group em 1998 pela comemoração dos 100 anos da ferrovia.

Essa lembrança do capital inglês em empreendimento americano traz à luz os aspectos políticos derivados da transpassagem de linhas divisórias entre o território americano e o inglês. Décadas atrás, a aquisição do Alasca da Rússia pelos Estados Unidos foi acompanhada de receios da Grã-Bretanha de que os Estados Unidos se expandissem cada vez mais em esfera britânica. A aquisição do Alasca parecia aumentar as tensões históricas entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. (Veja)

O capital inglês financiando a ferrovia White Pass and Yukon celebrado na estação-museu traz à consciência a situação modificada das relações internacionais pela passagem do século. Essa cooperação teve a sua expressão em emblemas nas quais se encontram entrelaçadas as bandeiras dos Estados Unidos e da Inglaterra. Esse entrelaçamento adquiriu sentidos muito mais amplos, o da confraternização de homens empreendedores e intrépidos voltados ao progresso e à procura de sucesso e prosperidade, o que teve a sua expressão máxima na existência da „Fraternidade Ártica“ de cunho maçom. (Veja)

Essa nova situação das relações anglo-americanas à época da construção da White Pass and Yukon Railway traz à memória as relações entre o capital inglês e os empreendedores americanos na história da Madeira-Mamoré, o que mereceria ser considerados mais pormenorizadamente nas suas implicações políticas internacionais.

Para além da exposição de fotografias históricas de trabalhos da implantação da ferrovia e de datas principais da sua construção e inauguração de trechos, expõem-se objetos de uso na estrada e nas estações, assim como materiais relativamente recentes da celebração do seu centenário. Como salientado, o museu-estação não se limita à ferrovia, mas ao espectro amplo dos transportes navais que possibilitaram a vinda de garimpeiros e mineiros de toda a parte do mundo e, a seguir, as viagens turísticas, surpreendentemente já no período anterior à Guerra.
A exposição de cartazes e impressos cuidadosamente ilustrados e produzidos trazem à luz que o rush do ouro não foi só o de homens à procura de ouro, mas de viajantes interessados em conhecer a ferrovia que se tornou famosa já à época de sua construção e despertou internacionalmente um fascínio pelo Alasca. Um dos prospectos, que anunciava uma tour pela „terra dos dias sem noite“ revela que o Alasca adquiriu, no continente americano, o papel que a Escandinavia desempenhava na Europa, onde viajantes eram atraídos pelo „sol da meia-noite“, com as múltiplas conotações e associações do extremo Norte.

Esse fascínio exercido pelo Alasca no mundo nos anos anteriores à Primeira Guerra deve ser levado em conta quando se considera a composição de uma „marcha Aláska“ no Brasil da mesma época. (Veja)

Os interesses econômicos o rush do ouro levaram assim à promoção de viagens de lazer e de estudos, contribuindo também aos estudos geográficos. Um evento significativo a Alaska Pacific Yukon Exposition de 1909, e que teve lugar ao longo das costas do canal Alaska Lynn próximo a Skagway, empreendimento este também documentado com impressos e fotografias.


A estação-museu de Skagway estabelece assim uma ponte entre museologia técnico-ferroviaria e histórico-cultural em geral. A cultura do quotidiano nas localidades então surgidas e nos campos de mineração e garimpagem é considerada em fotografias e exposições de objetos, como por exemplo, documentos da vida esportiva de funcionários da estrada e trabalhadores. Nessa atenção ao contexto geral em que se inseriu a ferrovia e as suas consequências, a estação-museu de Skagway diferencia-se de museus ferroviários convencionais.

O „americanismo“ da metodologia museo-pedagógica

A exposição na estação-museu de Skagway surge porém ela própria como fruto do seu contexto e, assim, objeto de análises culturais
O seu „americanismo“ manifesta-se sobretudo nos meios museo-pedagógicos que utiliza, procurando captar o interesse dos visitantes e transmitir informações de modo lúdico, alegre e divertido. Em desenhos que poderiam ser de revistas em quadrinhos apresentam-se momentos da épica do rush e do desenvolvimento técnico de transportes, da navegação e ferrovia à aviação e aos
cruzeiros do presente.

Os desenhos transmitem uma visão entusiástica e glorificadora de fatos, atuando de forma aliciante e mesmo propagandistica, transmitindo um estado de espirito que marca a interpretação do passado e faz com que a visita do museu - e a viagem de trem - se tornem diversão.

Esse procedimento poderia parecer descabido sabendo-se dos sacrifícios que a construção
da ferrovia custou, corresponde, porém, de fato àquele da época de sua construção. A vinda de homens de todas as partes do mundo à procura de ouro e dispostos a enfrentar perigos e dificuldades de toda a sorte foi acompanhada por uma visão do homem que valorizava a intrepidez, a coragem, a ousadia, a liberdade e também a alegria e o gozar da vida. Essa atmosfera pode ser constatada não apenas nos bares e casas de divertimentos e de vida mundanaa das localidades (Veja), como também nos objetivos da sociedade secreta da „Fraternidade Ártica“.

Esse humor no tratamento do passado em Skagway contrasta com o tom que em geral transpira de textos referentes à Madeira-Mamoré. Com exceção de um artigo para jovens leitores em alemão de Franz Caspar (Veja), a ferrovia brasileira é tratada antes sob aspectos negativos.

Se as dificuldades, os gastos, as mortes, descarrilhamentos e as decepções econômicas tambem são lembrados na White Pass and Yukon, a vida mundana das localidades, apesar das violências e penúrias, também e considerada de uma perspectiva valorizadora dos divertimentos e alegria de vida. A descrição de Porto Velho de um autor ligado à Igreja como Vitor Hugo, porém, é sobretudo negativa, salientando crimes e uma anarquia da ordem pública:

„As cabanas de palha encobriam crimes, enquanto no Club Internacional mulheres e homens dançavam o fox aos compassos do jazz! Rubicundos ingleses vestidos de branco, a beber uí´suqe; alemães ingenuos e sorridentes, sorvendo chops com avidez; francesitas de Marselha com admirável heroísmo profissional, sorrindo convidativas aos peões de botas e esporas. Mais: refugiados políticos da Bolívia e funcionários de Manaus e Belém, aventureiros e seringueiros. Uma multidão pedindo alegria“. (Desbravadores 1, 2a. ed. São~Paulo: Edição do autor/Banco do Estado da Rondonia-BERON 1991,227).

A situação assim descrita com tom critico e revelador de ressentimentos morais, não parece ser adequada para a análise mais objetiva e imbuida de intuitos de empatia. A vida social e cultural descrita poderia ser vista positivamente, acentuando o cosmopolitismo, a vida social e cultural marcada por divertimentos e alegria de viver da cidade nascida com a Madeira-Mamoré.

Centro de Visitantes do Klondike Gold Rush Historical Park


Ao lado do museu-estação, Skagway abriga também o Centro de Visitantes do Klondike Gold Rush Historical Park. Em fotografias e filmes documentários, oferece-se ali uma introdução mais específicamente de cunho histórico do rush de ouro de Klondike. Também expõe-se dois objetos emblemáticos de duas preocupações básícas dos garimpeiros e mineiros: o do achamento de ouro com as suas ferramentas de trabalho e o da guarda dos tesouros encontrados em cofres bancários. Essas duas preocupações constituiam momentos centrais nas orações dos „irmãos do Ártico“. (Veja)


De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“ Ferrovias de riqueza e morte: Brasil e Alasca. Madeira-Mamoré e White Pass and Yukon
I I - Comparando museus ferroviários: Porto Velho e Skagway“ 
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 157/5 (2015:05). http://revista.brasil-europa.eu/157/White_Pass_and_Yukon.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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Fotos A.A.Bispo, 2015 ©Arquivo A.B.E.