Ego hipertrofiado na modalidade passiva

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 158

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 158/16 (2015:6)





A tristeza
O ego hipertrofiado do homem cheio de si na sua modalidade passiva em prisão nas trevas
- a „filha da vaidade“, a barbarização  e o guerreiro trágico -




Ciclo de estudos euro-brasileiros de Santa Bárbara e S. João Batista em Gimborn



 
Gimborn. Foto A.A.Bispo 2015

A tristeza paira no ar e nos ânimos no fim de outono na Europa, e uma atmosfera depressiva e desconsolada alastra-se no mês de novembro e início de dezembro em correspondência à natureza que morre e aos dias cada vez mais escuros e às noites que suplantam os dias.


Se essa tristeza é mitigada nas últimas semanas pelo calor humano de reuniões e mercados de Advento que preparam o Natal, ela predomina naquelas precedentes e que seguem aos finados.


A tristeza não poderia, assim, deixar de ser considerada nas reflexões encetadas por motivo da edição deste último número da Revista Brasil-Europa de 2015, e que é preparada e lançada nesta época do ano.


Lembra-se, ao mesmo tempo, da passagem dos 40 anos da sua consideração nos estudos da modinha e da canção em geral no programa euro-brasileiro desenvolvido na Alemanha a partir de 1974/75, e cuja principal protagonista foi a cantora brasileira Maura Moreira. Em recitais, diálogos e palestras deu-se então na Europa prosseguimento a preocupações já de uma década no Brasil.


Estas tinham tido como um dos principais textos orientadores as meditações sobre a tristeza nas Meditações Sulamericanas de Herman Graf Keyserling (1880-1946), obra divulgada sobretudo em círculos de língua alemã, correspondendo as suas constatações e interpretações àquelas de Martin Braunwieser (1901-1991). (Graf Hermann Keyserling, Südamerikanische Meditationen, 2a. ed., Stuttgart Berlin 1933 (1a. ed. 1932, 275-305).


Essa obra levou à consideração do problema nas suas dimensões antropológicas, psicológicas e demopsicológicas, dirigindo a atenção a processos internos no homem, o que vinha de encontro ao intuito de renovação dos estudos culturais a partir de um redirecionamento da atenção de esferas da cultura e essencializações de objeto a processualidades, o que não poderia ser compreendido apenas superficialmente como sendo o de desenvolvimentos históricos, sociais e econômicos.


A tristeza em contraste com a alegria na imagem do Brasil


Ao lado da alegria como um dos estereotipos da imagem do Brasil como terra do samba, carnaval, futebol e belas mulheres, e na qual o Rio de Janeiro surge como principal referência, depara-se com a tristeza registrada por muitos autores e que impregna canções e poesias. Estas a manifestam no decantar de estados de espírito e anelos de alma, de choro, de melancolia, languidez, sofrimento, mágoas e saudades.


É compreensível assim que a tristeza, sobretudo nas suas relações com as saudades, tenha sido considerada repetidamente e de forma intensa na literatura, em ensaios, em estudos culturais, em particular de tradições populares, folclore, música e poesia.


A representação do Brasil em shows silencia em geral essa tristeza brasileira que foi elemento relevante na imagem do país no passado, quando sobretudo eram as modinhas que o caracterizavam musicalmente.


A tristeza, porém, sempre retorna em concertos, na literatura ou em filmes que a documentam não só em canções. De forma crescente, a imagem do país passa a ser marcada por uma outra forma de tristeza: a tristesse de vida e dos sofrimentos de grande parte da população ou verdadeiro inferno ou purgatório em que vivem muitos brasileiros.


A tristeza que paira na América do Sul na sua vivência pelo europeu


O caminho reflexivo das últimas décadas que tem como um dos principais pontos de partida as „Meditações Sulamericanas“ de H. Graf Keyserling consideram em especial as suas observações, a auto-análise de suas vivências pessoais na América do Sul e o seu pensamento expressos no capítulo dedicado à „tristeza da criatura“, talvez a mais profunda análise da problemática da tristeza sulamericana que se conhece. Esta meditação merece ser recordada de forma mais diferenciada, considerando-se os resultados dos estudos euro-brasileiros das últimas décadas.


Partindo de experiência pessoal na América do Sul, em particular na Argentina, Keyserling fala de uma tristeza que paira sobre tudo e todos, de uma tristeza onipresente. A tristeza surge como tal potência elementar, que domina o visitante que chega.

Esta sensação não era só aquela que sentiu, mas também a de outros visitantes. Keyserling afirma ter conhecido vários europeus que de início teriam tido até mesmo pensamentos de suicídio nessa atmosfera de profunda depressão, tristeza e melancolia, de passividade, sofrimento, indecisão. Essa tristeza era acompanhada por uma sensação de aprisionamento, da falta de liberdade e de impotência de criação de imagens e objetivos que poderiam levar a iniciativas. Assim que respirou essa atmosfera, Keyserling batizou a Sul América como „continente da tristeza“.

A intensidade dessa experiência pessoal e de outros europeus registrada por Keyserling pode ser compreendida considerando-se ter sido feita primeiramente em Buenos Aires em época marcada por tangos e canções como „Mi noche triste“ de Carlos Gardel (1890-1935), sendo significativo o papel que desempenha o tango nas „Meditações Sulamericanas“.

Partindo, porém, de sua vivência pessoal da tristeza que tudo impregnava, Keyserling passou a considerar o problema nas suas dimensões mais amplas e profundas.

O significado da tristeza como experiência das profundezas pela alma

Keyserling confessa que a incomensurável e onipresente tristeza da América do Sul passou a ressoar no seu íntimo toda a vez que a sua consciência imergia no mais profundo do seu ser. (op.cit. 286)

Reconheceu,  assim, que a tristeza dizia respeito a uma situação relacionada com as profundezas, as esferas mais inferiores do homem, à vida nas suas bases mais primordiais.

Foi em comunhão com os sulamericanos na tristeza que Keyserling tomou consciência daquilo que cria esse estado de alma.

Caindo no profundo do seu ser, sentiu primeiramente a perda de liberdade. Sentiu-se preso em espaço recluso. A cegueira superou a capacidade de ver, sentindo-se assim nas trevas. A passividade que dele tomou conta impedia ímpulsos de iniciativa.

Como não conhecia esse estado de alma em tal intensidade, acreditava tê-lo sentido de forma mais intensa do que os próprios sul-americanos.Teria sofrido as penas do inferno.

Quando, no meio das trevas dessa prisão subterrânea conseguiu recuperar uma certa distância interior, reconheceu o significado da tristeza sul-americana, que passou a ver como mais valiosa e profunda do que todo o superficial otimismo norte-americano.

A experiência das profundezas no seu íntimo fundamenta uma atitude de ver tudo de forma profunda. Aquele que vivencia as suas raízes profundas está mais em condições de tomar conhecimento de realidades espirituais, do espírito vivo no seu íntimo do que um erudito ou moralista que se prende à esfera intelectual, das idéias e abstrações sem atentar à existencialidade da natureza humana. Keyserling lembra o maior valor do não-saber de Sócrates do que o tudo-saber dos sofistas, o de Jesus do que o saber dos doutores das Escrituras e fariseus.

A tristeza da alma nas suas relações com o eu - o espírito vivo ou pneuma no homem

Keyserling considera a tristeza da alma como resultado de uma queda e prisão do eu nas trevas das profundezas do interior o homem. Estas suas explanações apenas podem ser compreendidas considerando-se as suas concepções relativas à psique e ao espírito ou pneuma no homem, da dinâmica de suas interrelações e que são tratadas sob diferentes aspectos nas suas meditações.

A vivência da prisão do eu nas profundezas das trevas é feita sobretudo pelo indivíduo que faz da inveja o eixo da sua vida. O conceito de inveja de Keyserling é porém aquele do alemão Eifersucht, não o de Neid, diferenciando-se o primeiro daquele da inveja em português. Êle implica na idéia de um vício de diligência extremada ou afinco associado a inveja e desejo de supremacia, o que se manifesta na definição popular de que „Eifersucht é o que com afinco procura o que faz sofrer“.

Segundo o filósofo, todo o homem tem inveja, e esta se relaciona com o desejo de manutenção ou recuperação de supremacia ameaçada, o que não pode ser compreendidp apenas com relação a bens materiais. Ela seria, como sentimento, uma questão da alma de um indivíduo que entende o seu eu como detentor de prerrogativas ou monopólios, também quanto a idéias e imagens, o que é da esfera espiritual.

Keyserling afirma nunca ter encontrado um homem, mesmo entre os mais sábios e de boa índole que não tivessem no seu íntimo algum ponto no qual levava-se a sério a si próprio. Nesse ponto do seu interior, procurando ter monopólio e sentindo ressentimentos de inveja para com outros, se tornava um moloque. Não há nada que extinga a inveja, pois nada no mundo pertence a um homem só. Ela deve ser porém dominada. Aquele que não a domina, mas aceita e afirma a sua inveja, tudo julgando a partir dela, passa necessariamente por terríveis sofrimentos. O homem que faz da inveja o eixo da sua vida experimenta o inferno dentro de si.

O homem sente-se girar dentro de círculos nas trevas, sem saída, numa roda viva. Nessa esfera não há liberdade. Dela não há saída até que a alma não seja tocada por sentimentos positivos. Na terminologia de Keyserling, essa queda nas profundezas significa cair no mundo da vida primordial, a mais baixa forma de vida, aquela da „gana“. (Veja)

O aprisionamento do eu na esfera das trevas não é a sua morte, apesar dos sofrimentos que causa à pessoa. Essa modalidade do eu deve deixar de existir, dando lugar ou inserindo-se numa ordem espiritual mais elevada, encontrando o indivíduo o seu caminho à liberdade.

O tipo passivo da vida e do viver na América do Sul e a tristeza brasileira

A passividade da vida na América do Sul e o predomínio da delicadeza no Brasil (Veja) levam segundo Keyserling a uma intensificação do sofrimento que causa o aprisionamento do espírito nas profundezas do homem. A acentuação daquilo que fere nessa sensibilidade aguçada contribui para o aumento do sofrer.

Como não há nada que não possa ser ferido de algum modo, todo aquele que é marcado por essa hipersensibilidade tende a ver o mundo permanentemente como um todo determinado pelo que fere ou por aquilo que representa um risco de ferimento.

A essa disposição ao sofrimento corresponde uma ampliação do ego que, em casos extremos leva a uma hipertrofia. Esse ego hipertrofiado faz com que o homem se volte para dentro e passe a se contemplar a si próprio. Ele se isola, não estando em condições de experimentar a felicidade e a redenção através do abrir-se.

Faltaria em geral ao sulamericano a iniciativa de espírito necessária para passar a uma dimensão acima da tristeza.

Keyserling tinha encontrado indivíduos desse tipo em todas as regiões do globo. Entre as suas mais significativas experiências pessoais que devia à América do Sul, porém, nenhuma o tinha atingido tão profundamente como aquela obtida da vivência da tristeza que pairava sobre o subcontinente.

Para Keyserling, seria falso igualar a tristeza sul-americana com a melancolia dos árabes e dos russos. O beduíno, apesar do cepticismo e de testa franzida perante a alegria, sentia-se protegido no seu Deus; o russo vivia a partir do mistério da Páscoa: com o sacrifício de Cristo, a morte já fora vencida. Assim, o russo teria uma paz de espírito comparada com aquela dos antigos mártires. O indiano, por sua vez, seria o antípoda do sulamericano. Como nenhum outro, Buda teria compreendido o sentido do prender-se à gana, à vida é a origem da vida e do sofrimento, a tristeza no sentido mais amplo do termo.

Se Buda - o plenamente acordado - mostrou um caminho para a superação do sofrimento, a tristeza sulamericana surgia para Keyserling como a de um inferno sem saída. Só aquele que experimentou o inferno em si é porém que estaria preparado para o céu.

Para Keyserling, se Jesus pregou a morte do ego como pré-condição da salvação era porque estaria cercado de pessoas que poderiam ser comparadas com os sulamericanos. Na Terra Santa, então também região colonial do Ocidente, teria havido uma inflação do ego, tal como na América do Sul.

A tristeza do homem que acorda para a situação de ter o seu eu preso

Das reflexões de Keyserling, a hipersensibilidade que caracterizaria sobretudo o brasileiro seria relacionada com o homem cheio de si. Extraordinariamente ciente do seu eu, vendo por todo lado ameaças que podem machucá-lo e por em perigo a sua auto-estima, impregnado de Eifersucht, passa a ter o seu ego na modalidade passiva caído e preso num espaço tenebroso e fechado que se encontra nele próprio. Esse espaço escuro e hermeticamente fechado, é imagem do inferno que se encontra no mais profundo de suas profundezas. É escravo e não pode querer libertação.

Quando o homem acorda para a consciência dessa sua situação no qual o seu ego se encontra preso no tenebroso espaço subterrâneo, é assolado por ondas de tristeza.

Linguagem visual: a imagem da mulher cheia de si e o ego hipertrofiado

Na linguagem visual utilizada por Keyserling, o ego na sua modalidade passiva, a alma,a esfera da vida na sua forma mais baixa são elucidados em imagens femininas estreitamente relacionadas entre si.

Trata-se por um lado da imagem de mulher-terra ou terra-mulher, tratada pelo filósofo em outras meditações como sendo a da esfera da „gana“, de fraqueza original, do mêdo e da fome primordiais. Por outro, trata-se da imagem de mulher de potência espiritual, de forte personalidade, cheia de si e da imagem do seu espírito que cai na prisão das profundezas.

Significativamente, as meditações sobre „a tristeza da creatura“ iniciam-se com a afirmação de Keyserling de que conhecia em geral poucas mulheres de personalidade forte e de capacidade intelectual que não fossem centralizadas no seu eu, autoritárias e ambiciosas de poder.

Keyserling chega a utilizar a imagem dessa mulher para explicar o fenômeno dos caudilhos sulamericanos. Assim como mulheres desse tipo seriam tiranas e ditadoras, os caudilhos encarnariam por sua vez essa imagem de mulher de ego hipertrofiado.

A ocorrência mais frequente da problemática do ego por demais acentuado em mulheres procurou Keyserling explicar a partir da maternidae. Como mãe, toda mulher sofre uma espécie de complexo de superpotência, uma vez que cria um ser vivo por assim dizer a partir do nada, imbuíndo-se do dever da responsabilidade. Esse dever cria uma consciência de responsabilidade de forma abrangente, sem fronteiras. Essa consciência de responsabilidade pode levar em certos casos de especial força e capacidade a uma intensificação do impulso de posse, de ter, como Keyserling trata em outras meditações.

Ess impulso de posse explicaria uma tendência ao querer ter razão a todo custo. Explicaria a convicção inabalável de mulheres cheias de si estarem sempre em direito, ainda que tivessem cometido os piores dos delitos.

Se essas extrapolações permanecessem integradas orgânicamente na natureza individual, não seriam patológicas, ainda que sempre criando dificuldades. No caso, porém, de uma acentuada hipertrofia do ego, esses exagêros não levavam a um desenvolvimento da personalidade, mas sim a uma deformação.

Keyserling lembra neste sentido a deformação que faz com que um jovem na puberdade, cheio de consciência de si, se torne um rebelde. Essa fase, porém, passa, dando lugar a uma responsabilidade pessoal madura. Essa transformação, porém, não podia ser feita no caso de uma pessoa de ego hipertrofiado. Este cresceria como se fosse um câncer à medida que fosse acentuado, e a pessoa perderia a noção de relações de sentidos nos contextos da vida.

Na ordem emocional ou alma, todos os sentimentos são direcionados: o viver em relação a outros, para outros, de outros e em função de outros criam um complexo de sentidos, sendo nesse quadro que a personalidade centralizada emocionalmente pode crescer. A pessoa com um ego por demais acentuado se de-personaliza, segundo Keyserling. Todas as mulheres esse tipo que Keyserling tinha conhecido seriam de uma forma ou outra semelhantes, estandartizadas, por maior talento e capacidade intelectual que tivessem.

Com essas explanações, Keyserling não queria afirmar que a mulher não pudesse ter forte individualidade e personalidade. A problemática, também dizia respeito aos homens, ainda que com menos intensidade, uma vez que estes não tinham a possibilidade de experimentar situações existenciais derivadas da maternidade. O ego não se integraria em princípio na ordem emocional, não seria psíquico, mas sim na ordem do espírito. Deveria assim deixar de existir na sua modalidade passiva, tornando-se ativo.

A infelicidade da mulher egocêntrica segundo Keyserling

Segundo Keyserling, as mulheres egocêntricas que conheceu tornavam-se em geral infelizes. Exceções eram aquelas que, em casos esporádicos, eram rainhas ou tinham alcançado imensa riqueza, o que lhes permitia tornar-se centro de todas as atenções.

Como essas mulheres de talento e forte personalidade tinham deixado a esfera da ordem emocional, não podiam entender que algo não estaria certo com elas e, assim, não compreendiam as reações de outros e o desenvolver da sua vida.

Encontravam-se sempre em conflitos, que cada vez menos compreendiam à medida que os anos se passam Sentiam como injustiça e como crueldade do destino serem largadas pelo marido, mantidas à distância pelos homens, abandonadas pelos filhos dos quais tanto cuidaram, e, sobretudo, o fato de não poderem ser de forma permanente centro das atenções e relações. Tornavam-se cada vez mais sós e isoladas com o passar do tempo.

A emancipação dos filhos na juventude significaria para essas mulheres em geral uma tragédia. Keyserling teria observado que os olhos dessas infelizes mulheres adquiriam a expressão de um mêdo admirado e silencioso e, por último, transpiravam de todos os poros uma tristeza imensa, seja por sofrerem por um paraíso perdido, seja pela decepção em sentir uma falta de sentido da existência.

Keyserling salienta a sua admiração em constatar quantas mulheres sulamericanas irradiam uma tristeza última e um ar de sofrimento. Tanto as mulheres fortes e poderosas, como também as fracas encarnariam essa modalidade de vida com tal intensidade que impregnavam toda a atmosfera do continente.

Seria porém justamente aqui que residia o encanto especial da América do Sul. No subcontinente predominaria a atmosfera daquela profunda melancolia do „suspirar da creatura“ da tradição cristã. Só que essa atmosfera era na América do Sul de particular doçura. Keyserling lembra aqui de uma canção que ouvira na Argentina e que decantava o „mel dos pesares“.

O espírito ativo que entra na vida envolve-se no envólucro da semente

Particular atenção merecem as meditações de Keyserling relativamente às relações entre o ego na sua modalidade passiva na ordem emocional e o ativo da ordem do espírito.

É para êle fato altamente singular que a consciência espiritual despertada no homem primeiramente leve a um aprisionamento da consciência e que é ainda maior do que aquela da vida de gana. O espírito se envolveria como numa cápsula num órgão cujo material é fornecido pelas características passivas da gana. Nessa situação, é incapaz de se abrir. Assim, enquanto ficar nessa situação, não há saida.

Esse eu é a „filha da vaidade“ ou da vanidade.

De início, a luz do espírito apenas é suficiente para uma auto-reflexão e para a intensificação dessa forma do não-espírito.  Quando o espírito transpassa o eu e o subordina na sua lei, torna-se então órgão da abertura para o mundo.

Lembrando a descrição do inferno de Dante, Keyserling fala das trevas e das tempestades na situação do espírito na sua modalidade passiva no subterrâneo. A escuridão o ar, o uivar do vento não deixa que encontre a saída. O homem é preso pelo seu ego, que são os ventos tempestuosos na noite do seu ser. É escravo do redemoinho dos vendavais que sempre o fazem girar em círculo, na roda viva de suas paixões. A descrição de Dante é para Keyserling a mais expressiva pintura da queda do homem na esfera da gana cega. 

Barbarização do homem em situação de superficialidade

A argumentação de Keyserling leva à questão da cultura. (op.cit. 290)

Para quê todo o progresso, se tudo na vida nasce e morre como no primeiro dia? Para quê aprofundar o conhecimento? A passagem do idealismo europeu ao materialismo soviético e norte-americano provaria que a intelectualidade moderna não seria mais alimentada pelas suas raízes mais profundas, ou seja, que está ocorrendo uma de-espiritualização. 

O intelectual, nessa situação de superficialidade, goza a si próprio. Não é nada profundo, é mais superficial do que o estado obtuso do homem que vive próximo ao estado animal. È a partir daqui que dá-se a barbarização, que na Europa teria tido entrada com a Primeira Guerra Mundial.

O idealismo da intelectualidade européia seria hoje nada mais do que covardia perante a realidade. Tudo dependeria aqui da profundidade em si. Por isso seria correta a doutrina cristã de que o pecador se encontra mais próximo da salvação o que o auto-justiceiro que se prende ao texto, à leitura literal das Escrituras. Acreditar em palavras no seu sentido literal é uma demonstração de suprema superficialidade.

A profundidade da tristeza sulamericana e a arte

A tristeza sulamericana seria não-trágica. Ela seria um sofrimento que pairava no ar, corresponente à passividade da vida mais primordial.

Não se colocava a questão da superação do sofrimento. A idéia de uma realidade não-terrena ou superior à terra apenas poderia ser balbuciada no sofrimento indeterminado do que não se conhece, mas que se sente de modo obscuro.

O remédio típico desse estado seria para Keyserling era a arte, sobretudo a dança, a música e a poesia, que tiram o homem de seu encerramento no sofrer à medida que objetivam o seu interior e fazem o individual ressoar em sintonia com rítmos telúricos e cósmicos, ou que os de-personaliza.

A arte substituia aqui religião, mas a substituia por com uma espiritualidade profunda, uma profundidade terrena. Para Keyserling, o artista seria o homem-terra sublimado. Este não seria asceta, pois se entregaria a suas emoções e sentimentos.

A descida aos infernos, o acordar da consciência e o sentimento de vida trágico

A vinda de Keyserling para a América do Sul foi para êle uma descida aos infernos. Como, porém, vinha da esfera intelectual, as trevas nas quais se enroscou serviram por fim ao esclarecimento.

Um desses sucessos foi a superação do mêdo da morte. O reconhecimento do que é terreno em si levou-o a não mais se preocupar pela sua existência, pois espírito não morre. Êle pode fazer o caminho do homem da prisão na natureza à liberdade do espírito.

Assim, com o primeiro despontar da consciência, com a entrada do espírito, o ser humano é tomado por ondas de tristeza. A tristeza transforma-se em sentido de vida trágico e o seu último objetivo promete ser a alegria, o ver a vida ludicamente, como uma comédia.

Quando o espírito como iniciativa espiritual entra pela primeira vez na consciência, de modo que o seu reagir na poesia e na arte não são mais a única solução, o sentimento de infelicidade sem saída transforma-se na tragédia da vida, o que fomenta o heroísmo.

A atitude passa a ser agora não o do sofredor, mas o do guerreiro trágico. Essa luta é sem solução, pois a gana contradiz o espírito.   Assim, à situação da tristeza sem saída segue à da tragédia sem saída. Com a consciência dessa última, inicia-se a emancipação do homem na terra.

O guerreiro do homem significa um dizer sim à tragédia da vida. Assim, é a sua determinação de espírito, não a sua força física é que leva a uma modalidade ativa de vida marcada por dinâmica, pelo progresso e pelo crescimento. O dizer sim perante o desconhecido, leva ao auto-sacrifício sem imagem clara, em heroísmo sem sentido.

O talento plástico possibilita a redenção na arte. Desse sentimento trágico surgiu a figura de Don Quixote como símbolo do homem que vive plenamente de dentro para fora, fiel às suas próprias leis, do homem que luta só contra o mundo, tendo, assim, coragem a tornar-se figura cômica. 

Com o sentimento de vida trágico levanta-se a espiritualização. Com um certo grau de determinação espiritual, o sentimento de vida trágico acaba, Em determinação espiritual pura não há tragédia, pois a determinação espiritual transforma todos os conflitos em meio de realização de senso.

Assim, a vida humana se torna cada vez menos trágica à medida que aumenta o seu entusiasmo. A tragédia existe apenas na consciência primária da tensão insuperável entre a lei da terra e o fomento do espírito. Quando o espírito manifesta-se no seu aspecto criativo, termina o sentimento trágico que o precedeu. O período heróico do mundo trágico termina e que, por sua vez, é precedido pelo tempo da tristeza que ainda hoje domina na América do Sul (op.cit. 296)

A primeira expressão do espírito foi a auto-afirmação de cunho iniciatórico daquilo no homem que não pertence à esfera da gana é a coragem. A coragem original é o superador primordial do mêdo original. Ele é o superador primordial da fome original.

O espírito ativo que entra na vida envolve-se no envólucro da semente

Particular atenção merecem as meditações de Keyserling relativamente às relações entre o ego na sua modalidade passiva na ordem emocional e o ativo da ordem do espírito.

É para êle fato altamente singular que a consciência espiritual primeiramente leve a um aprisionamento da consciência ainda maior do que aquela da vida de gana e da ordem emocional. Ele se envolveria como numa cápsula num órgão cujo material é fornecido pelas características passivas da gana. Nessa situação, é incapaz de se abrir. Assim, enquanto ficar nessa situação, não há saida.

Resumindo as suas colocações:

Quando o espírito transpassa o eu e o subordina na sua lei, torna-se então órgão da abertura para o mundo.

De início, a luz do espírito apenas é suficiente para uma auto-reflexão e para a intensificação dessa forma do não-espírito. Assim, o mal do inferno perde a sua inocência e se transforma em culpa.

Se o indivíduo egocêntrico acorda para a consciência, então é tomado de tristeza pela sua situação de prisão.

Lembrando a descrição do inferno de Dante, Keyserling fala das trevas e das tempestades na situação do espírito na sua modalidade passiva do envólucro subterrâneo. A escuridão o ar, o uivar do vento não deixa que encontre a saída.

O homem é preso pelo seu ego, que são os ventos tempestuosos na noite do seu ser. É escravo do redemoinho dos vendavais que sempre o fazem girar em círculo, na roda viva de suas paixões.

A descrição de Dante é para Keyserling a mais expressiva pintura da queda do homem na esfera da gana cega.  A queda na esfera existenbcial que não conhece liberdade apenas encontra a saída com um sentimento feliz que preencha a alma.

A descida aos infernos, o acordar da consciência e o sentimento de vida trágico

A vinda de Keyserling para a América do Sul foi para êle uma descida aos infernos. Como, porém, vinha da esfera intelectual, as trevas nas quais se enroscou serviram por fim ao esclarecimento.

Um desses sucessos foi a superação do mêdo a morte. O reconhecimento do terreno em si levou-o a não mais se preocupar pela sua existência, pois espírito não morre. Êle pode fazer o caminho do homem da prisão na natureza à liberdade do espírito.

Com a primeira entrada do espírito no alvorecer do espírito, o ser humano é tomado por ondas de tristeza. Assim que o espírito determinou o sujeito, a tristeza transformou-se em sentido de vida trágico e o seu último objetivo promete ser a alegria.

Quando o espírito como iniciativa espiritual entra pela primeira vez na consciência, de modo que o seu reagir na poesia e na arte não é a única solução, o sentimento de infelicidade sem saída transforma-se na tragédia da vida, o que fomenta o heroísmo. A atitude passa a ser agora não o do sofredor, mas o do guerreiro trágico. Essa luta é sem solução, pois a gana contradiz o espírito.   Assim, à situação da tristeza sem saída segue à da tragédia sem saída. Com a consciência dessa última inicia a emancipação do homem na terra.

O guerreiro do homem significa um dizer sim à tragédia da vida. Assim, é a sua determinação de espírito, não a sua força física que leva a uma modalidade ativa de vida marcada por dinâmica, pelo progresso e pelo crescimento. O dizer sim perante o desconhecido, leva ao auto-sacrifício sem imagem clara, em heroísmo sem sentido.

O talento plástico possibilita a redenção na arte. Desse sentimento trágico surgiu a figura de Don Quixote como símbolo do homem que vive plenamente de dentro para fora, fiel às suas próprias leis, do homem que luta só contra o mundo, tendo, assim, coragem a tornar-se figura cômica. 

Com o sentimento de vida trágico levanta-se a espiritualização. Com um certo grau de determinação espiritual, o sentimento de vida trágico acaba por natureza, Em determinação espiritual pura não há tragédia, pois a determinação espiritual transforma todos os conflitos em meio de realização de senso, assim como as cordas tensas do instrumento que possibilitam a música.

Assim, a vida humana se torna cada vez menos trágica à medida que aumenta o seu entusiasmo. A tragédia existe apenas na consciência primária da tensão insuperável entre a lei da terra e o fomento do espírito. Quando o espírito manifesta-se no seu aspecto criativo, termina o sentimento trágico que o precedeu. O período heróico do mundo trágico termina e que, por sua vez, é precedido pelo tempo da tristeza que ainda hoje domina na América do Sul (op.cit. 296)

A primeira expressão do espírito foi a auto-afirmação de cunho iniciatórico daquilo no homem que não pertence à esfera da gana: a coragem. Esta seria a coragem primordial. A coragem original é o superador primordial do mêdo original. Ele é o superador primordial da fome original.

O ego nas suas modalidades ativa e passiva nos estudos euro-brasileiros

As meditações de Keyserling referentes à problemática do ego-centrismo hipertrofiado no homem e que cai na situação de prisão e trevas da gana foram consideradas de forma aprofundada e mais especificamente relacionadas com os conhecimentos da pesquisa empírica e filosófico-teológicos no desenvolvimento dos estudos euro-brasileiros na Europa desde 1974/75.

Esses estudos deram prosseguimento àqueles realizados no Brasil no âmbito da recepção de Keyserling em círculos de língua alemã voltados ao espiritualismo no Brasil nas suas relações com os estudos mais aprofundados de tradições populares e de práticas de culto.

Em resumo desse desenvolvimento dos estudos com a finalidade de seu prosseguimento coerente, alguns aspectos principais podem ser recordados. Em primeiro lugar, deve-se constatar os elos das suas imagens e concepções com conceitos filosófico-naturais relativos aos elementos nos seus elos com o ciclo do ano do hemisfério norte.

Sendo o ego na sua modalidade passiva espírito nascido da terra impregnada de espírito, como expõe, diz respeito ao fogo. As menções na linguagem visual de Keyserling de vento quente e ventanias tempestuosas indicam tratar-se de concepções de espírito ou pneuma.

Embora vivenciado no despertar na primavera do „terceiro da Criação“, constituido por noite e dia - março e abril e na ordem do Zodíaco correspondente a áries e touro -, a prisão tenebrosa em que cai e no qual se encontra preso corresponde ao elemento fogo na parte inferior e mais tenebrosa do ano, ou seja, o mês de novembro e, na linguagem do Zodíaco, em deslocamento, ao signo de sagitário.

Nos estudos conduzidos em centros de estudos da Antiguidade e em museus e sítios arqueológicos - em especial no Museu Românico-Germânico de Colonia - constatou-se já em 1975 a congruência das concepções e imagens de Keyserling com aquelas de Persefone, Proserpina ou Kore. Também esta surge no mito como filha da mãe-terra, de Demeter ou Da, com ela estreitamente unida, que é levada aos infernos por Hades, o senhor espiritual do mundo subterrâneo, onde se torna rainha no reino dos mortos, não mais encontrando saída.

Essa prisão condiciona o estado de tristeza e infelicidade de sua mãe, que se retira às profundezas e não deixa mais que nada cresça na terra. A sua libertação ou redenção equivale ao crescimento vegetal de plantas com sementes no mundo natural e é um caminho em direção a Zeus/Júpiter. Assim como o período de crescimento do ano - no qual se manifesta a força do fogo - chega ao seu ponto culminante, também ela deixa de existir como modalidade passiva integrando-se na ativa. É no fruto que se manifesta a força da semente, que se manifesta o fogo espiritual por detrás do invólucro do fogo aparente percebido no crescimento.

Nos estudos conduzidos no âmbito de estudos de ciências da religião e teológico-culturais, de relações entre a Antiguidade e o Cristianismo e em sítios da história religiosa, por último na Capadócia (Veja), o antigo mito tem a sua correspondência na narrativa da virgem Santa Bárbara.

Também esta era filha da terra - pagã -, e também foi presa numa escura torre. As tradições respectivas são marcadas por espaços subterrâneos, minas, cárceres e aqueles murados de fortalezas, sendo invocada por mineiros, ferreiros e outros trabalhadores em espaços sinistros. Também ela é associada com ventos e tempestades, com o reino dos mortos de cemitérios.

A morte do ego de modalidade passiva e a sua inserção na ordem do espírito de modalidade ativa explanada por Keyserling corresponde sobretudo às relações entre concepções e o culto de Santa Bárbara com S. João Batista nas tradições católicas.

Nos assim-chamados cultos afro-brasileiros,  essas relações expressam-se de forma de início incompreensível, tal como aquela que diz ser Yansã uma espécie de modalidade de Xangô, dando por fim a êle lugar ou nele se inserindo. Nada mais compreensivel, porém, ser Yansã relacionada com vento quente e ventanias tempestuosas, com o fogo da terra - o rabo do boi - com o reino dos mortos no qual espanta as „larvas“, com Da ou Nanã na sua queda fora da esfera da consciência, com a sua atividade de instigar a laboriosidade no forno de Ogum.

As meditações de Keyserling surgem assiim como de fundamental importância para os estudos euro-brasileiros quanto à compreensão de sentidos de expressões culturais em geral tão superficialmente consideradas sob o aspecto de extensões africanas no Brasil. Elas também abrem perspectivas para análises de condicionamentos culturais e suas consequências. As explanações que podem causar estranheza e mesmo indignação nos seus textos, em particular nas suas imagens conotadas como femininas, correspondem àquelas vivas no edifício cultural e vigentes nas expressões tradicionais. Este edifício, porém, é geocêntrico, necessitando ser relativado. A liberdade que é tematizada por Keyserling e que leva da tristeza à alegria é inerente ao edifício de concepções e imagens. Trata-se, assim, da necessidade de reflexões sobre uma liberdade ainda maior resultante do distanciamento relativador quanto ao sistema no seu todo.


De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo




Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed).“A tristeza. O ego hipertrofiado do homem cheio de si na sua modalidade passiva em prisão nas trevas - a „filha da vaidade“, a barbarização  e o guerreiro trágico “
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 158/16  (2015:06). http://revista.brasil-europa.eu/158/Ego_hipertrofiado.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

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Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Gimborn. Foto A.A.Bispo 2015










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