Debate teuto-báltico/Meditações Sulamericanas

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 158

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

N° 158/3 (2015:6)





Debate cultural teuto-báltico e as „Meditações Sulamericanas“
Hermann Keyserling (1880-1946) em Reval e em Riga em 1910
sôbre unidade européia e oriente, latinidade, identidade cultural e significado da história



Ciclos de estudos euro-brasileiros em Tallin e em Riga

 

Significado de uma obra hoje desconsiderada e esquecida


Embora seja hoje a obra desse pensador em grande parte esquecida e pouco considerada e valorizada na Filosofia institucionalizada nas universidades, ela merece ser recordada em alguns de seus aspectos mais fundamentais.


O seu significado não se justifica apenas pelo fato de ter sido muito divulgada na sua época e marcado visões e interpretações do homem sulamericano e de sua cultura por parte de escritores, de representantes das mais diversas áreas do conhecimento, do pensamento e das ciências.


Lida de forma contextualizada e diferenciada, a sua obra pode abrir perspectivas ainda hoje para os estudos de processos culturais. Essa leitura deve levar em conta a época crítica e conturbada de fim da antiga ordem européia com a Primeira Guerra e a instabilidade e ânsia de procura de novos caminhos dos anos que se seguiram, assim como as características da forte personalidade e temperamento de Hermann Keyserling, que não temia em
pronunciar-se de forma não comedida, abalar e polarizar com as suas formulções ouvintes e leitores. Muitas de suas colocações, da forma com que são expressas, surgem ainda hoje como dificilmente suportáveis. Se foi um homem marcado pela consciência de sua estirpe aristocrática, se muitas de suas formulações são hoje inaceitáveis, não é um autor que, politicamente, deveria ser silenciado: êle, as suas obras e a sua „Escola da Sabedoria“ foram mal vistos pelo regime nacionalsocialista.


As suas publicações conferem aos estudos culturais profundidade histórica sob vários aspectos, inserindo-os em correntes da história das ciências e do pensamento relacionados com processos evolutivos e com desenvolvimentos do homem no seu todo de um passado nem sempre suficientemente relembrado e que se encontra em grande parte fragmentado devido às duas grandes guerras, à destruição de arquivos, a migrações e exílios de grupos populacionais, em particular, no caso, dos alemães do Báltico.


Keyserling adquire significado sobretudo como representante de uma Psicologia Cultural nas suas relações entre observações empíricas, vivência pessoal, pensamento científico e filosófico, estudos europeus e extra-europeus.


Estudos no Báltico, nos países de língua alemã e estadia na França


Riga. Foto A.A.Bispo 2014
Keyserling gozara de uma formação própria da aristocracia teuto-báltica através de professores particulares, cursando posteriormente o ginásio russo em Pernau, em 1895. Realizou os seus estudos universitários de Geologia, Química e Zoologia primeiramente em Genebra, em 1897-98), a seguir de novo no Báltico, na tradicional universidade de Dorpat, entre 1898 a 1900.

Retornando à Alemanha, estudou um ano em Heidelberg, e a seguir na capital do Império dos Habsburgs, em Viena, em 1902, onde alcançou o doutorado como uma dissertação de tema geológico.

A formação de Keyserling deu-se, assim, em centros de primeira grandeza do mundo alemão do Leste e do Ocidente, aqui na Suíça, na Alemanha e na Áustria. Em 1903, transferiu-se à França, país com o qual permaneceria unido por estreitos elos durante a sua vida. Foi alí que lançou o seu primeiro livro de natureza filosófica, em 1906, dedicado ao „mecanismo do mundo „ (Die Gefüge der Welt), também publicado em francês.

Em época do fascínio pela cultura alemã em Paris do período anterior à Guerra, Keyserling alcançou o renome que manteria em meios intelectuais franceses durante décadas.

A sua tentativa de entrar na carreira universitária como professor em Berlim não teve sucesso, o que levou-o a um distanciamento interior relativo à universidade, o que se manifestou posteriormente no fato de criar uma instituicão livre. Mesmo assim, proferiu em 1907 cursos em Hamburg, que forneceram as bases para o seu livro sobre a Filosofia da Natureza (Prolegomena zur Naturphilosophie, 1910). Em 1908, assumindo a propriedade onde tinha vivido o seu avô Alexander Keyserling (Veja), transferiu-se para a Estônia.

Unidade européia e diferenças em dependência da distância de observação


Em conferência proferida em Riga, em 25 de novembro de 1910, Keyserling tratou de questões que surgem hoje como singularmente atuais: o da unidade européia, o de relações entre uma cultura européia e culturas extra-européias, em particular daquelas do Oriente, ao mesmo tempo tematizando a questão da unidade em dependência da distância e posição do observaor.


De início, lembra que um viajante que se defronta com um povo que lhe é estranho não pode, nos primeiros tempos, bem distinguir fisionomias. Chineses ou mongóis parecem todos semelhantes a um ocidental, não se podendo distinguir ou guardar na memória fisionomias.


Onde falta similaridades, percebe-se aquilo que é mais o típico. Na Europa, falar-se-ia muito de diferenças entre os seus povos; um chinês, porém, não perceberia diferenças entre um inglês e um italiano.


As diferenças, que o estrangeiro não percebe, existem; mas às vezes seria necessário ver o que é familiar com olhos de estrangeiro, pois os traços gerais de uma fisionomia são reconhecidos mais claramente por aquele que os acha estranhos e peculiares.


Assim, não haveria dúvida que o não-europeu achasse que a cultura européia fosse um todo marcado por unidade, sem diferenças marcantes nas suas partes. Para o europeu, a cultura chinesa, a árabe, a indiana, pareceriam ser também homogêneas.


O que surge em comparações não são fatos singulares, formas específicas de expressão ou obras, mas a forma geral de vida, do pensar, sentir e agir. Esses eram absolutamente diferentes entre os europeus e os chineses, sendo idênticos da Itália até à Inglaterra através de toda a Europa.


Riga. Foto A.A.Bispo 2014
Cultura européia e oriental, questões de evolução e involução, progresso e retrocesso


Uma diferença fundamental existiria segundo Keyserling entre o Oriente e o Ocidente, e essa diferença diria respeito a conceitos de desenvolvimento e evolução. Toda a vida do europeu seria voltada ao desenvolvimento; onde não progrede, retrocede, não só espiritualmente, mas também fisicamente.


A vida do oriental não conheceria desenvolvimento nesse sentido, revelando uma estagnação criativa, uma estagnação que não conhece degenerações. e só enquanto dura continua a manter-se nas alturas.


Onde o oriental progride no sentido ocidental, então retrocede, pois abandona a cultura, que só êle pode produzir.


Com essas palavras, Keyserling procurava mostrar como era pequena a diferença de um povo a outro da Europa, desde que esta fosse vista sob perspectiva mais distanciada.  As diferenças de nação para nação, que parecem ser tão grandes à pequena distância, desaparecem como que envolvidas em névoa à maior distância.


Diferenciações relativadoras de processos culturais: mundo germânico e latinidade


Após essas considerações iniciais, Keyserling passou a encetar reflexões quanto a diferenças no próprio contexto
europeu, relativando idéias e posições convencionais quanto a uma distinção entre uma esfera românica, que se compreendia como prolongamento da latinidade, e uma germânica ou anglo-saxônica.


Em primeiro lugar, Keyserling procurou salientar que não seria totalmente correto dizer que a cultura românica seria uma continuidade da latina. A cultura dos antigos romanos tinha sido um fermento, do qual as tribos da Itália, França e Espanha desenvolveram-se mais rapidamente do que os nativos da Europa germânica.


Nos países românicos, os elos espirituais com a Antiguidade nunca terminaram completamente, a tradição nunca foi totalmente interrompida. Mesmo assim, considerar a cultura românica como herança da latina não seria correto: ela seria uma formação própria, distinta da latina, não menos singular do que a germânica. Ela originou-se da união, fusão des diferentes disposições, na Gália das romano-celto-germânicas, na Espanha romano-gotico-íberas, na Península Apenina de origem ítalo-germânica. A cultura românica seria uma formação tão recente como a dos povos germânicos, ainda que fosse alguns séculos mais velha. 


Entre outros países, também na França o caráter latino da cultura adquirira relativamente um cunho mais dominante apenas em séculos recentes.


Não seria exagero afirmar que o caráter fundamental do românico teria sido originado no século XVI. Assim, no caso da França, poder-se-ia dizer que ela antes estaria a caminho da latinidade do que dele se originaria.


A progressiva latinização do espírito francês poderia ser entendida pensando no desenvolvimento humano: no jovem predomina o lado artístico, no homem de quarenta anos o desejo de poder e de soberania.  Seria quase que impossível dizer quando a cultura francesa ter-se-ia tornado românica no sentido atual.


Assim, não valeria a pena dar muita atenção a origens, devendo ser o olhar antes dirigida à expressão atual, ao presente.


Questões de relações entre a imaginação e a empiria nas culturas européias


A cultura românica, por um lado, seria a irmã mais velha da germânica, mais amadurecida, atingindo uma compleição onde a germânica se encontraria ainda em vir-a-ser. A cultura românica, por outro lado, parecia ser menos amadurecida onde se trata da continuidade objetiva da tradição clássica. Nada seria menos românico do que a antiga arte grega.


Seria errôneo ver na perfeição formal dos romanos sinal de superficialidade - seria antes sinal de uma alta cultura. Por outro lado, se o filósofo alemão não tem a clareza da expressão do francês, isso era porque a mente francesa seria mais diferenciada do que a alemã. O espírito inglês, até há pouco pesado e obtuso, tornara-se modêlo da clareza, e a vida inglêsa exemplo de estilo de vida.


Entre muitas de suas reflexões diferenciadoras, Keyserling considera a cultura germânica - cuja maior expressão estaria na música e na filosofia - como uma cultura da força da imaginação, a românica como uma do sentido da realidade. Como critério orientador, poder-se-ia dizer que se tratava de uma questão entre fantasia e visão empírica.


As dimensões maiores do espírito germânico residiam na esfera criativa interna, para além do percebido pelos sentidos e reconhecido como verdadeiro pela razão. Quando, porém, se tratasse de realidade, de uma cultura dos sentidos, da razão, da vida no sentido empírico, os povos românicos teriam a dianteira.


Mesmo a cultura inglêsa não seria, como suposto, a do pragmatismo, mas uma cultura da mais pura fantasia, uma expressão da interioridade das mais cultivadas, ainda que a força da imaginação surgisse como altamente controlada. De todos os europeus, os inglêses seriam o povo da imaginação mais concentrada. O sentido inglês por ordem não significaria falta de liberdade, mas a mais nobre liberdade.



A problemática de identidade em contextos históricos no exemplo teuto-báltico


A cultura germânica e a românica teriam diferentes origens, caminhariam em diferentes sentidos e teriam diferentes fins. O que é possível para uma, seria impossível para outra. Isso valeria para a cultura francesa, que parecia ser facilmente assimilável. Nada seria mais falso, e não haveria cultura mais nacional do que a francesa. Russos, com a sua facilidade de aprender línguas estrangeiras, utilizavam-se com prazer o francês, entretanto, não haveria nada mais horrível do que uma literatura francesa nascida no Leste, pois, enquanto que o exterior era perfeitamente copiado, faltava o caráter interno, a alma da língua.


Nenhuma nação corporifica o o ideal da humanidade em si, e quem quer ser humano no mais alto sentido do termo deve querer ser mais do que o primeiro representante da sua tribo.  Não haveria nada mais questionável do que o considerar delimitações, fronteiras de um povo ou de uma pessoa, pois isso delimitaria o homem, tirando dele a possibilidade interna de dirigir o seu senso ao ilimitado. Isso não impede que se deve levar em conta as fronteiras, pois apenas dentro delas pode o homem ser infinito, tal como um trem apenas pode percorrer o espaço graças a seus trilhos. Um mortal não pode sair do corpo de suas condições geográfico-históricas.


Verdadeira cultura poderia ser apenas alcançada no seu contexto. Isso valeria sobretudo para os teuto-bálticos, representantes mais distantes da cultura alemã.  A sua base não era a Alemanidade no seu sentido abrangente („Deutschtum“), mas um contexto mais estreito, mixto, nascido dos desenvolvimentos historicos. Nunca poderiam os teuto-bálticos ser romanos, não podendo porém também afirmar-se nem na esfera eslava, nem na esfera da Alemanha. Os teuto-alemães não seriam alemães no sentido do Império, mas sim um tipo próprio de humanidade, desenvolvido sob condições particulares, algo novo.



Do interesse da História em conferência de 1910 na Estônia


Em conferência proferida em Reval, no dia 13 de dezembro de 1910, Keyserling tratou da questão do significado do estudo da história.


Inicia as suas considerações afirmando que um interesse verdadeiro começa onde termina a curiosidade. O anseio de conhecimento, que se manifesta na forma da curiosidade, é um impulso inferior, faltando-lhe um objetivo externo e um fundamento de alma.


Não procura alcançar conhecimento de contextos objetivos, nem revelar vivências interiores, esgotando-se na procura de ver novidades.


O verdadeiramente humano seria reconhecer contextos espirituais e não apenas fatos nús. Essa curiosidade como impulso inferior do homem manifestar-se-ia na forma de um interesse histórico pelo passado que nasce da procura de novidades, que não passa de uma outra forma de espiar sem maiores consequências.


Quem não for conduzido por motivos mais profundos, então seria melhor que continuasse na ignorância, assim como um intrigante teria ficado melhor em casa do que ficar bisbilhotando na rua.


O interesse por fatos como tais pertence à esfera da vontade de novidades, mesmo quando surge na roupagem de erudição. Os fatos adquirem sentido, significado e interesse só a partir de um contexto de natureza espiritual no qual são inscritos. Se a história for estudada para a experiência de segredos, então o historiador não é nada mais do que um bisbilhoteiro.


Se o faz, porém, para recriar uma realidade passada na poesia, para ampliar espírito e alma, para para ver o geral e o particular, para formar-se, para compreender a vida na sua totalidade, então o seu interesse tem valor. Essa diferença de valor não depende dos fatos em si, mas nos contextos espirituais nos quais se inscrevem. 


A História oferece apenas matéria bruta para contextualizações, criados pelo indivíduo de forma mais ou menos arbitrária, e o interesse espiritual que se liga com esses contextos não diz respeito ao histórico em si próprio.


Quem estuda o passado para intensificar a sua própria vida no supra-inividual e para ganhar uma imagem mais clara de um episódio ou resolver um problema do desenvolvimento da humanidade, ou seja, para enriquecer a sua vivência psicológica, então procede da maneira adequada.


Problemas psicológicos e biológicos necessitam da história como tal, ou seja, como um processo determinao de tempo e duração, e se a história fosse significativa apenas nesse sentido, então não teria significado espiritual.


Keyserling não se considerava como historiador, para êle, porém, a história era de fundamental importância, ela não poeria ser inserida em contextos espirituais, mas sim estabeleceria ela própria contextos.


Isso não seria no sentido de um conexo em forma e lei que se revela em decorrências naturais. Ainda que se poderia tirar conclusões de regularidades na história, parecendo ser o comportamento de indivídudos e da coletividade sempre similares nas suas tendências fundamentais, este não era o caso.


Seria um êrro ver a história como um conexo de leis: as normas e regularidades são de natureza secundária, elas regulam apenas o caminho das decorrências, não os condicionando. Leis da história poderiam ser apenas vistas no caso em que ciência deixasse de lado o indivíduo. Isso não pode fazer: a decorrência é um resultado de diferenças, de momentos que não se inscrevem em nenhum sistema e que não poem ser entendidos através de regras.


Um homem de Estado de sucesso não é aquele que age a partir de proposições racionais, mas aquele que inclui novos momentos em decorrências. O olhar deve ser dirigido ao momento criador, ou seja, à capacidade de fazer acontecer fatos que não podem ser derivados de premissas.


A história da humanidade seria comparável à vida de um único espírito, infinitamente plástico, que sempre cria algo novo, que se transforma de momento a momento. Não há leis na História, nem no sentido da física, nem do desenvolvimento orgânico, no qual um indivíduo atual pode ser compreendido a partir de um todo posterior, tal como uma semente da planta na sua compleição.


No processo da história não há finalidade de objetivos, nela não pode o novo, que surge, contribuir à elucidação do que se passou e o progresso da humanidade não tem um objetivo fixo. O caráter histórico de um acontecimento reside na sua singularidade e do fato de não repetir-se, sendo a história a realidade viva em si, não o quadro, no qual esta se desenvolve.


Nesse sentido, a história jamais poderia ser ciência no sentido das ciências naturais. Embora a história não possa ser vista como um conexo de leis, possui um significado espiritual. Se não corresponde a um contexto constatado no mundo físico, não significa que não haja um contexto. O seu caráter é que é um outro.


Assim como o homem se lembra da felicidade dos dias de infância, mas a criança não o percebe, é a visão retrospectiva que possibilita uma visão geral. Na história do mundo e do desenvolvimento do homem acontece o mesmo. Ninguém pode ver amplamente o seu próprio tempo, e os contextos, que dá sentido ao indivíduo, não podem ser compreendidos. Questões do presente apenas podem ser respondidas pelo futuro.


A vida é um vir-a-ser contínuo, que não conhece estagnação, estando sempre em movimento, sempre gerando, crescendo, transformando-se, sempre surgindo algo que é inesperado. Por isso, pode-se ver em súmula apenas o que se passou.


O que foi no passado pode adquirir hoje sentido. O vivo na vida é o contínuo renascer. Assim vendo, a história é, para aquele que quer compreender a vida, a sua principal expressão. Só o que se tornou representa a vida verdadeiramente concretizada. Assim, o interesse da história não é mediato, mas imediato.


À luz da razão, não o presente fugidio, mas o passado findo é que surge como a realidade da vida. Essa realidade, porém, é morta. Se o interesse da história se resumisse nisso, então seria delimitado ao morto. Se fosse possível compreender não o que se tornou, mas aquilo que vem-a-ser, o processo de conhecimento da criação em contínuo originar-se, então a história teria interesse.


É porém a realiade apenas a história quando já passou? Ela não é história em si? O que o homem apenas compreende como o ter-se passado é no mesmo sentido realmente o vir-a-ser. A história não faz a vida apenas tornar-se clara para a razão; a vida realiza-se nela. Os contextos gerais, que o historiador reconstroi, representam a realidade. Assim como um poema sinfônico não significa apenas um todo para aquele que tem nas mãos a partitura, mas também para aquele que a escuta, assim como uma melodia surge como uma unidade apenas ao terminar, no mesmo sentido todo o vir-a-ser da vida é história. Essa unidade do decorrido é um contexto espiritual, e por esse motivo é a história interessante no mais alto sentido do termo.


Após considerar que a realização do próprio de um pensador ocorre por vezes muito depois de sua morte, Keyserling afirma que a alma é mais real do que a aparência existencial, ela é a realidade em si. O julgamento de um indivíduo ou da coletividade jamais pode ser feito a partir de aparências, mas segundo a sua alma. A vida apenas se completa em período maior do que o da existência e a vida humana se realiza apenas na história: a vida alcança a sua expressão apenas em contexto mais amplo que ultrapassa a existência do indivíduo.


Nesse contexto explicar-se-ia a maldição de épocas que perderam o seu sentido histórico, que procuram reger a via a partir de reflexões abstratas. Através de abstrações não se poderia alcançar nada de bem e bom.


As leis mais bem intencionadas tornam-se causas de infelicidades. Assim, instituições que abstratamente pareçam ser deficientes, são por vezes as melhores. A Inglaterra, a então mais desenvolvida potência do mundo, que não tinha leis: as experiências de vida de gerações, de costumes orgânicos forneciam o direcionamento das decorrências; como forma viva, seriam melhores do que qualquer teoria.


Kayserling terminou a sua conferência salientando que se vivia em época de abstrações, sendo a vida por elas sufocada. Da distância à vida não se poderia melhorar a vida.



Oriente/Ocidente na obra de Keyserling


Se Keyserling considerou, na sua conferência em Riga, em 1910, a diferença entre a cultura européia e a oriental, teve ocasião de aprofundar os seus conhecimentos do Oriente em viagem que realizou por vários países do mundo em 1911/12.


Os relatos dessa viagem, que deviam ser lançados em 2014, puderam ser publicados apenas após a Primeira Guerra Mundial. Foi essa obra que consolidou internacionalmente o seu renome. Nele, o filósofo traz não apenas relatos de viagens na área do Mediterrâneo, do Canal de Suez, em Sri Lanka, na India, na China, no Japão e na América do Norte, como também tece reflexões sobre questões de filosofia e características psíquicas dos diferentes povos.


Das suas observações e vivência tirou as bases empíricas de suas concepções relativas às diferenças e possibilidades de interações entre a sabedoria oriental e o edifício de concepções do mundo e do homem do Ocidente.


Quanto ao Ocidente, a sua preocupação foi a de reconhecer imagens fundamentais e mentalidades nacionais, o que tratou mais tarde em Spektrum Europas


A Escola da Sabedoria e correntes do pensamento na Europa e no Brasil


Após a sua viagem à América do Sul, em 1929, publicou as Meditações Sulamericanas.


A sua principal revelação foi a de reconhecer e conceber o ímpeto de gana como fundamental na humanidade da América do Sul.


Ainda que fundamentado nas suas observações e vivência nos países sulamericanos, o reconhecimento do significado desse ímpeto presuspõe a pré-existência de um edifício de pensamento que o guiou. O ímpeto da gana surgia, nessa corrente de pensamento, nas suas relações com o homem vinculado à terra, cujos fundamentos encontravam-se no submundo e na irracionalidade. Esse mundo contrapunha-se àquele do espírito, que, pairando sobre o homem, o possibilitaria de superar a gravidade da terra, libertando-o de vínculos, passando a ver a vida ludicamente, como teatro.


As tensões de orientação entre Escola da Sabedoria, a Antroposofia e correntes esotéricas e espiritualistas marcaram não só a década de 20 na Europa, como também a recepção de correspondentes tendências do pensamento no Brasil. O principal exemplo dessa situação tensa de proximidade e distância no pensar foi o de Martin Braunwieser (1901-1991) como representante antes da linha da Escola da Sabedoria com a sua esposa, a pianista teuto-russa Tatiana (nascida Kipmann), esta estreitamente vinculada à Antroposofia.


Justamente essa pianista pertencia, pelas suas origens e condicionamento de família e formação, a similares contextos e experiências de vida de Keyserling. Tratou-se em ambos os casos da problemática da Alemanidade no Leste europeu, do seu significado e apogeu no antigo Império Czarista e do seu abalo com o exílio forçado pela Revolução de 1917.


Se o caminho dos Kipmann levou ao Mar Negro e ao Bósporo, dali à Europa Central e ao Brasil, o de Keyserling, nascido em família aristocrática alemã de antiga tradição no Báltico e em S. Petersburg, que contava entre os seus membros com vultos de significado nas ciências e nas artes.


Entre êles, destacou-se o conde Alexander Friedrich Keyserling (1815-1891), geólogo, geógrafo e paleontólogo de renome na história alemã das ciências. Este, por sua vez, inscreve-se na tradição de pensamento de Karl Ernst von Baer (1792-1876), biólogo, antropólogo, geógrafo teuto-báltico fundador da Sociedade Geográfica Russa, e este na de Karl Friedrich Burdach (1776-1847) com os seus estreitos vínculos com a Filosofia da Natureza do Romantismo alemão.


Apesar de ultrapassagem de fronteiras nem sempre bem definidas entre tendências esotéricas de visões do mundo espiritualistas e a aproximação prático-filosófica e psicológico-cultural da „Escola da Sabedoria“ nas suas projeções no Brasil, não se pode deixar de dar atenção ao significado da corrente de pensamento representada por Keyserling para uma consideração mais diferenciada da história da pesquisa cultural empírica no Brasil e mesmo da criação composicional com ela referenciada.


Concepções e anelos psicológico-culturais marcaram assim a atuação de Martin Braunwieser na Missão de Pesquisas do Departamento de Cultura de São Paulo na década de 30, seus textos, composições e atuações como regente e organizador. mesmo que aparentemente se inscrevam simplesmente em intuitos, conviccões e posições do seu admirado amigo Mário de Andrade (1893-1945).


A sua escolha de assuntos de observação - seja o de músicos cegos, seja o da linguagem visual de representações como a Barca ou a Nau Catarineta, seja a sua ocupação com formas de culto do Xangô de Recife ou da umbanda deu-se a partir de uma perspectiva marcada por preocupações que se encontram tematizados também na obra de Keyserling.


Sempre o aspecto da vivência, da própria transformação interior, da auto-análise nas suas relações com a inquirição demopsicológica se encontra presente. O „Acordai!“ na consciência foi sempre motivo central em todos os sentidos, também tratado musicalmente e na educação.


Sensíveis diferenças decorrem desse posicionamento relativamente àquele de outros compositores que entraram na história do nacionalismo, apesar de similaridades, convergências e do convívio amigável, cortês mas interiormente distanciado com outros intelectuais e artistas, necessário em ambiente que o próprio Keyserling registrou como tão extraordináriamente hipersensível.


Movimento Bach no Brasil e Keyserling. Continuidade dos estudos em Lüneburg


A proximidade a Keyserling deu-se não apenas através do contexto de destino teuto-báltico e teuto-russo, mas também através do movimento Bach em ambos os lados. Bach foi o compositor mais admirado pelo filósofo, que descreve na sua obra os conhecimentos que obteve no executar suas composições. Como sempre lembrado pelo fundador da Sociedade Bach de São Paulo, o grande biógrafo de J. S. Bach Phillipp Spitta (1841-1894) atuou na Estônia, na escola onde se formaram os grandes nomes da corrente científico-filosófica em que se insere Keyserling. Também Albert Schweitzer (1875-1965) pertencia ao círculo das personalidades mais próximas à „Escola da Sabedoria“.


O aprofundamento da consideração dos elos entre a tradição de pensamento dos alemães do Báltico e o Brasil teve o seu início em diálogos em Lüneburg com Volker Gwinner, Professor em Hannover. (Veja) Este erudito, organista e regente, assim como a sua esposa, eram marcados pelos desenvolvimentos históricos dos alemães do Norte da Europa e da área do Báltico. Tomou-se, nesses encontros, consciência da necessidade de maior atenção a esse mundo submerso ou desaparecido por motivos de guerras, o que levou à emigração de alemães e à quase extinção de uma tradição secular da presença alemã nessas regiões.


Esses colóquios levaram à visita, em 1975, de Darmstadt, cidade que foi sede da "Escola da Sabedoria" de Keyserling e cujos materiais são hoje conservados na Universitäts-und Landesbibliothek.


O pensamento teuto-báltico nos estudos da recepção e da imagem do Brasil


Uma preocupação no concernente a Keyserling nos estudos euro-brasileiros foi a de considerá-lo junto a outros autores que estiveram no Brasil para o tratamento de questões relativas à imagem e à recepção do Brasil no Exterior. (Veja)


Os seus pensamentos deram, nesse sentio fundamentais impulsos à realização do primeiro áudio-visual que tematizou questões de imagem no primeiro Forum de Leichlingen, em 1982, dedicado que foi a relações Alemanha-Brasil. (Veja) Comemorando-se, então, os 80 anos de Martin Braunwieser, considerou-se a sua proximidade com a obra do fundador da Escola da Sabedoria em particular sob o aspecto da virtude da Sophrosyne.


A principal preocupação foi porém a de relacionar de forma atualizadora as observações, concepções e interpretações de Keyserling com o estudo de processos históricos que levaram às situações culturais por êle encontradas. Esses trabalhos foram desenvolvidos em cooperação com diferentes personalidades em centros de estudos de Antiguidade/Cristianismo e de Filosofia(A.A.Bispo, Grundlagen christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit: Der Raum des früheren portugiesischen Patronatsrechts, Musices Aptatio 1986-1988, Roma 1989, 146-148).


Salientou-se, aqui, entre outros aspectos, o significado do relêvo dado por Keyserling ao conceito de delicadeza para caracterizar a situação psíquico-cultural do Brasil. Também M. de Andrade na sua análise de canções infantís partiu desse conceito. A delicadeza surge como indício de uma individualidade, de uma determinação na psique brasileira que a diferenciava de Portugal, sendo, assim, relevante para a identidade cultural.


De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“ Debate cultural teuto-báltico e as „Meditações Sulamericanas“.Hermann Keyserling (1880-1946) em Reval e em Riga em 1910 sôbre unidade européia e oriente, latinidade, identidade cultural e significado da história “
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 158/3 (2015:06). http://revista.brasil-europa.eu/158/Europa_Oriente.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne
Corpo consultivo - presidências: Prof. DDr. J. de Andrade (Brasil), Dr. A. Borges (Portugal)




 













Fotos A.A.Bispo, 2014 ©Arquivo A.B.E.