A morte e o subterrâneo no homem

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 158

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 158/12 (2015:6)



A morte e o subterrâneo no homem
Ano agrícola do hemisfério norte e processos psíquico-culturais

O entregar-se à terra na doença e o despontar da luz nas trevas: Lázaro




Ciclo de estudos no Bergisches Freilichtmuseum für Ökologie und bäuerlich-handwerkliche Kultur, Lindlar 2015

 
Os atos de terror que enegrecem o panorama das relações internacionais e a vida na Europa do presente fazem atuais reflexões sobre a morte, tornando assim oportuno retomar estudos voltados ao tema no âmbito dos estudos de processos culturais em relações Europa/Brasil. O fato de terroristas matarem outros e matarem-se a si próprios, em atos desumanos e que denotam uma desumanização dentro de si, mais forte do que instintos de auto-preservação, justifica a consideração de aspectos psíquicos relacionados com a morte no interior do homem e no mundo em que vivem.
Na tradição dos estudos culturais - de cultura regional do passado pré-industrial, rural, camponesa, de folclore e etnografia -,  em particular em museus ao ar livre, a morte
Museu ao ar livre de Lindler. Foto A.A.Bispo 2015
é tratada não apenas relativamente a ritos fúnebres, de assistência à agonia, de enterramento e luto, a rezas, cantos e superstições várias, mas sim também a relações de concepções de morte com o mundo envolvente, com o ciclo do ano agrícola e práticas de trabalho de campo.

O fim de outono no hemisfério norte, o corte de cereais e os bonecos de palha

A paisagem rural da Europa em novembro e dezembro - os mais escuros meses do ano - é marcada por rolos de feno que se vêem nos campos êrmos, sem vida e soturnos após a ceifa do trigo, da cevada, do milho e outros cereais.

Em algumas regiões onde a agricultura ainda não se encontra totalmente mecanizada, encontram-se, em lugar dos rolos ou cilindros, os „bonecos de palha“ na forma tradicional que lembra uma figura por ser amarrada ao alto, tendo por cabeça as pontas dos cereais com os grãos. Nessa forma, esses homens de palha também se encontram documentados em museus regionais de vida, trabalho e cultura tradicional de vários países.

A palha desses homúnculos sêcos é resultado da colheita dos cereais. Quando os grãos tornam-se amarelos, mostrando estar maduros, são as plantas cortadas por homens com um foice ou outra ferramenta de lâmina afiada.

Separa-se assim o cereal da terra da qual cresceram. Corta-se a ligação do grão com a mãe-terra. A palha cortada seca, enquanto que os grãos amadurecem. Há vida assim dentro dos feixos cortados, uma vez que os grãos, se semeados, darão origem a novas vidas.

Eram as mulheres que preparavam os bonecos com feixos de palha, cujas pontas com os grãos formam a cabeça. Assim feitos, eram aprumados nos campos para que se sequem; os grãos serão a seguir em parte semeados, ou seja, voltarão à terra. Aos homens compete assim a ceifa, às mulheres o feitio dos feixes - são suas obras, por assim dizer seus filhos.
Foto A.A.Bispo. 2015

Palha sêca é material que domina tradicionalmente em ornamentações de fim de outono europeu a partir das festas de outubro. Se dá lugar, a partir do Advento ao verde de pinheiros e plantas que não secam e se tornam amarelas, a palha sêca continua a estar presente nas práticas tradicionais e festivas, culminando com as palhas da mangedoura nos presépios de Natal, retiradas ou queimadas quando os presépios são desmontados, em geral ao redor do dia de Reis.

Relativação do assustador através de uma visão lúdica do trágico na existência

Bonecos de palha encontram-se hoje nas mais diferentes formas como decoração de festas, ruas, praças e casas comerciais nessa fase do ano. Em geral cheios de graça e humor, infantís e ingênuos, fazem esquecer as conotações sinistras dos bonecos de palha nos campos tristes e que são condizentes com as trevas dessa época do ano de noites tão longas e onde cai os  Finados e Todos os Santos.

Já o hoje popular Halloween, que também conhece as vassouras de palha de bruxas, traz à consciência da vitalidade de antigas concepções na sua ambivalência entre sentidos sinistros, assustadores e o lúdico e cômico que os relativam.

Essa superação de sentidos relacionados com a morte e o mundo dos mortos através do lúdico manifesta-se em práticas e expressões festivas de antigas tradições em vários países e que teem a palha e homens vestidos de palha como característica.

Em algumas regiões da Europa, por exemplo naquelas mais tradicionais bávaro-austríacas, essas tradições mantém-se vivas, com figuras cômico-assustadoras cobertas de palha que visitam casas ou percorrem as ruas em cortejos noturnos.

Essas representações de fins de outono mantém-se no inverno europeu, alcançando a época do carnaval. Um dos principais centros dessas tradições encontra-se em St. Johann im Pongau, próximo de Salzburg, revisitado em 2014 por possuir estreitos laços com o Brasil. (Veja)

Ali atuou, na sua juventude, Martin Braunwieser (1901-1991), personalidade que se dedicou a estudos de expressões culturais tradicionais no Brasil, procurando não apenas registrá-las, mas sim penetrar nos seus sentidos.

Compreende-se, assim, que um dos principais objetos da sua atenção tenha sido danças de cunho encenatório com participantes vestidos de palha do Nordeste do Brasil, considerados em geral como de origem indígena mas integrados no calendário brasileiro das festas do ano.

Deslocamento de sentidos relativos ao ano natural no hemisfério sul

Esse calendário, porém, introduzido pelos colonizadores a partir do descobrimento, é necessáriamente deslocado daquele do hemisfério norte, sendo as tradições transplantadas não concordantes no seu sentido relativamente ao ano natural percebido pelos sentidos.

Há uma discrepância entre sentidos intrínsecos e o mundo envolvente, o que dificulta a leitura de seus significados. A sua permanência através dos séculos nessas condições indica a intensidade com que o homem do hemisfério sul vive numa esfera de imagens.

A leitura dessas tradições transplantadas para regiões que não conhecem colheita de cereais em período que é então da primavera e do verão apenas é possível de forma adequada para aqueles que vivenciaram não só práticas similares nas suas relações com a vida agrícola e um período do ano ao mesmo tempo sinistro nas suas trevas, mas também de expectativas de sua superação com a fase ascendente do ano que vai nascer.

Não há sentido de fazer-se bonecos de palha sêca em regiões que não são marcadas pela cultura de cereais e muito menos em épocas do ano que são de crescimento, não de colheita e ceifa. Figuras de palha sêca em danças, cortejos e outras tradições, de culto ou lúdicas que caem na primavera ou no verão são evidentes testemunhos do deslocamento do edifício de sentidos do ano natural do hemisfério norte no hemisfério sul e, assim, de transplante cultural e de que o homem continua a viver mais em edifício de imagens transplantado nas suas relações com a natureza do que, de fato, interpretando ou vivendo sentidos no mundo que percebe a seu redor.

Concepções de morte nos seus elos com a natureza nos estudos euro-brasileiros

Assim considerando, outras práticas tradicionais relacionadas com a palha e que apresentam homens revestidos com palhas foram objeto de reflexões que tiveram a sua continuidade na Europa a partir do início do programa de estudos euro-brasileiros em 1974/75.

Devido ao fato de expressões brasileiras de homens cobertos de palha sempre serem atribuídas nas suas origens a indígenas, consideradas por folcloristas do passado como exemplo de influência ou resultado de processos aculturativos com o indígena, e também presentes em grupos indígenas já em contato com a sociedade predominante, a problemática foi particularmente estudada sob o aspecto de interações e possíveis confusões de concepções, de sentidos mais abrangentes do indígena como homem „da terra“.

Consequentemente, já na década de 70, procedeu-se à consideração da linguagem visual de danças da cultura carajá, desenvolvidas em museus e institutos de etnologia da Alemanha de longa tradição da pesquisa do Brasil Central (por ex. Fritz Krause, In den Wildnissen Brasiliens, Leipzig: R. Voigtländer 1911). Essas expressões da cultura carajá já se encontravam há muito popularizadas sobretudo através de publicações de Erich Wustmann (por ex. Xingú: Paradies ohne Frieden, Leipzig: Neumann 1959; Karajá: Indianer vom Rio Araguaia, Leipzig: Neumann 1963)).

Foram esses estudos e reflexões que levaram a dar uma particular atenção a essas expressões culturais no âmbito do projeto internacional dedicado a culturas indígenas no Brasil. Os intentos de prosseguimento fundamentado das reflexões não pode ser alcançado de forma adequada.

A importância desse complexo temático, porém, exigiu que voltasse a ser considerado no âmbito do congresso de encerramento dos eventos científico-culturais pelos 500 anos do Brasil, em 2002.

Em sessão dedicada a encontros e interações entre o rural e o indígena em processos culturais, considerou-se grupos tradicionais que se utilizam do atributo da palha em vestimentas, como aqueles dos „Caiapós“, ainda que hoje se mantenham sobretudo no carnaval. Reflexões mais profundas sobre concepções de morte e de almas em práticas tradicionais foram encetadas pela pesquisadora Zuleika de Paula („Musik bei Interaktionen von Lebenden un Toten in rituellen Handlungen ruraler Gesellschaften: Commenatio animae in der Geschichte akkulturativer Prozesse“, Musik, Projekte un Perspektiven, Colonia: ABE/ISMPS 2003, 191-213).

Em contexto totalmente diverso, essa linguagem visual de danças tradicionais de „indígenas“ no sentido abrangente do termo foi alvo de pesquisas promovidas pela A.B.E. na Nova Caledônia. (Veja)

Consideração da morte em círculos teuto-brasileiros e Hermann Graf Keyserling

A corrente de pensamento antropológico-cultural em que se inserem os estudos euro-brasileiros iniciados na Europa em 1974/75 explicam-se através da recepção da obra de Hermann Graf Keyserling no Brasil, em especial em círculos de língua e cultura alemã preocupados com questões relativas a temas do espírito e do pensamento.  (Hermann Graf Keyserling, Südamerikanische Meditationen, 2a. ed., Stuttgart Berlin 1933 (1a. ed. 1932, 137 ss.)

Assim como em Keyserling, a preocupação por assuntos espirituais relacionados com a morte levaram, no Brasil, a que Martin Braunwieser desse particular atenção aos corais de J. S. Bach (1685-1750), ao „Venha, doce morte“, tanto na Sociedade Bach de São Paulo como nas suas atividades como professor. Posicionando-o contra uma música sacra vista como triunfalista e superficial, era da mesma opinião de Keyserling, que salientara que os corais permitem que ressoe no homem o que a terra deseja e que, assim, lhe dão felicidade e o libertam.

Se Keyserling tinha-se impressionado quando jovem sobretudo pela música de Richard Wagner (1770-1813), no caso do desejo de fim de Wotan, o que passou a constituir a tonalidade predominante da sua consciência, essa influência tomou um outro sentido a partir dos corais de Bach e da sua estadia na América do Sul. (op.cit. 139)

As aproximações demopsicológicas, auto-análiticas e filosóficas que marcam as „Meditações Sulamericanas“ determinaram a preocupação por questões de processos interiores ao homem e que foram aprofundadas através de estudos da linguagem visual da Antiguidade nas suas relações com o Cristianismo em centros especializados na Alemanha e em outros países, assim como no Vaticano.

Força da gravidade e vivência de grave doença como ponto de partida de reflexões

É particularmente oportuno recordar que Keyserling chegou a conhecimentos de forma empírica no sentido mais profundo do termo, ou seja, da vivência pessoal de grave doença.

Desde o início de sua estadia na América do Sul, confessa ter sentido dentro de si o desejo de fim de Wotan do drama wagneriano, sentindo a cada momento a atração da vida mais profunda do seu ser para o fim absoluto na terra.

Significativamente, o filósofo abre as suas meditações relativas à morte lembrando da paisagem de horizontalidade e quase que ausência de vida dos pampas, um negro que surgia como prontidão da terra para sepultar a fim de que interminavelmente nova vida encontre chão. Parecia que por toda parte atuava uma força de gravidade que tudo puxava para baixo da terra.

Ao adoecer gravemente, experimentou uma situação existencial, de alma e espírito que acentuou essas sensações e abriu-lhe olhos para o seu significado mais profundo e para mecanismos atuantes no íntimo do homem.

Sentindo-se cansado de viver, passou a desejar deitar-se e esperar o momento de também tornar-se humo.

Tomou assim a consciência da existência de uma força da gravidade dentro de si, sentindo-se como nunca antes a atração ou ímpeto de imergir, sentindo como era reduzido o tempo em que vivia tendo terra sólida sob os pés.


A tranquilização do doente perante a morte, superação do mêdo, libertação e cura

Keyserling salienta que, nesse estado de estar perante a morte, não teve pensamentos de suicídio. A grave doença do corpo correspondia na alma a um desejo de morte e isso significava uma tranquilização. Sem a participação do consciente, sem pressa, sem afazeres, todas os „milhões de  seres vitais“ que constituem o corpo entravam no rímo da doença grave, atraídos como pedaços de ferro como de forma magnética à morte, sem pânico, em atitude de espera em defesa, positivamente participante no destino de sua temporalidade.

Na sua linguagem visual - e que corresponde àquela de tradições - objetos de ferro indicam a atração que o homem sente quase que magneticamente às profundidades da terra, um sinal da força da gravidade no seu íntimo.

A doença grave era aquela de um estado sem mêdo; ela podia ser de sofrimento e martírio, mas nada destruia o aconchego sentido por aquele que se entrega ao rítmo da terra. 

Era justamente nessa entrega e no adormecimento da consciência que resultava o desejo de cura e não o pensamento de suicídio. Explicar-se-ia, assim, que poucos doentes querem morrer, pois deles é tirada a vontade de morte e, assim, sentem-se libertos dos sofrimentos da agonia.

Keyserling confessa ter-se sentido sempre feliz quando esteve nesse estado de grave adoecimento, não só pelo fato de dormir, como também pelo fato de experimentar um equilíbrio no dar à terra o que ela pertence e dela tomar o que pode dar. Nunca havia sentido de tal forma o desejo de terminar a „melodia de vida“ que não mais queria fazer soar.

Como salienta, o espírito consciente nada conhece do fim natural, pois a morte é coisa da terra: o que é da terra a ela volta. O espírito, precisando ser obscurecido, imerge nas trevas onde não há conflito entre a esfera do espírito e aquela do corpo.

Como Keyserling baseia as suas meditações no relato bíblico da Criação, considerado em relações com processos interiores no homem, analisa o que vivenciou na América do Sul, em particular na doença grave que o acometeu a partir da terra. A força de gravitação que sentiu é a da terra das profundezas. Assim, o entregar-se na doença correspondia a um imergir na „noite da Criação“ do primeiro dia, nas trevas nas quais despontou pela primeira vez a luz.

A vida da América do Sul como um sub-mundo na sua tendência à imitação

A humanidade na América do Sul, segundo Keyserling, não pode ser tratada adequadamente do ponto de vista do espírito ou intelecto, uma vez que a sua existência consciente não teria as suas raízes na esfera espiritual. Por esse motivo, ter-se-ia na América o Sul uma posição mais adequada perante o morrer do que em outras humanidades.

Não sendo a morte um problema espiritual, pois do ponto de vista o espírito não há morte, havendo passagem para outra vida ou transformação, a vida no seu significado mais primordial diz respeito ao subterrâneo no homem

Mesmo os sulamericanos de origem européia não seriam determinados fundamentalmente pelo espírito, mas sim pela vida primordial. Esta, como trata em várias meditações, é fundamentalmente cega, pois diz respeito a uma situação antes do despontar da luz da consciência. De quando em quando há imagens do que se deseja no sulamericano, mas o mundo imaginativo é por demais impreciso e fraco para dar a tonalidade dominante à existência.

O fato da falta de originalidade e a acentuada tendência à imitação na América do Sul - para Keyserling os sulamericanos eram copiadores por excelência - resultavam da falta de capacidade de imaginar.

A América do Sul era por demais incompleta, por demais dependente de concepções e imagens externas para poder ser profunda. Para Keyserling, porém, ela se dirigia cada vez mais a caminho do indígena. Keyserling não tinha dúvida que ela daria origem a uma cultura de grande profundidade, mas esta seria no sentido de uma cultura de proximidade à terra.

A vida real da América do Sul seria para Keyserling a de um sub-mundo tenebroso. Nenhuma arte de viver embelezaria a realidade. Assim, a força da terra original predominaria de forma ilimitada. O prazer na América do Sul seria a paixão da noite da Criação. O seu sofrer seria um abismo de sofrimento. O seu luto seria o completar da melodia da vida em modo menor. A sua morte seria obviamente o retorno às profundezas insondáveis do útero da terra.

A passividade no morrer  a força primordial conotada de masculina

A morte, nesse sentido o mais concreto dos fatos, surge como expressão última de todo o passivo por ser  o fim absoluto da atividade. No próprio matar trata-se originalmente não de culpa, mas sim do ser objeto, do sofrer. Assim, o sulamericano, na sua passividade, teria uma atitude mais adequada ao sentido da morte do que a Europa ou outra humanidade determinada pela esfera espiritual.

Sobretudo o gaúcho, segundo Keyserling, compreendia melhor do que qualquer outro homem a morte como fenômeno da terra. Ele não procurava heroismo, dignidade, fama, sendo indiferente para consigo próprio. Para com a morte, tinha apenas um último desdém, um sorriso compreensivo melancólico. O desdém transpira segundo Keyserling mais orgulho resignativo do que desprezo - teria uma nuance do se dignar de morrer. Esta seria uma marca da alma indígena que teria influenciado os sulamericanos.No decorrer da Conquista, tribos completas de índios, quando não mais queriam sofrer passivamente, suicidavam-se como atitude de óbvia modéstia.

Assim como a terra, passiva, recebe o espírito que vem de fora e a transpassa, ou seja, sofre a sua entrada, o homem, que é terra, quando mata um homem torna-se êle próprio o atingido. Compreender-se-ia, assim, que o assassino, mais do que como um criminoso, é visto como um infelz, um desgraçado. Êle surge como um sofredor. Do ponto de vista do homem que é agente e alvo, surge como um sofrer. Daí explicar-se-ia a difundida concepção de espíritos sofredores na América do Sul

O matar tempo na América do Sul como vibração do submundo na vida

A força das profundezas subterrâneas exercem, nas explanações de Keyserling, influência de menor evidência na vida sulamericana por não manifestar-se explicitamente em situações de morte física.

O filósofo via a ação dessa força nos homens mundanos que matam o tempo e que seriam muito comuns na América do Sul. Eles não assim viviam por não terem o que fazer e assim aborrecer-se, como os cortesãos europeus.

O seu modo de vida era o de tirar da vida tudo que fosse pessoal, ocupando-se permanentemente em ir a casamentos, a aniversários a enterros, a jogar cartas, fazer visitas e a praticar esportes ou ficar em conversas em bares. Concentravam assim a sua consciência em ocupações que pareciam dar sentido à vida.

O peso dado à terra destroi segundo Keyserling a leveza da vida, acentuam a força da gravitação que marcaria tão profundamente a vida sulamericana. Os homens que matam tempo escamoteiam a vivência pessoal do subterrâneo e, apesar disso, vibram no seu rítmo, uma vez que a sua existência surge como uma afirmação da vida como é na terra.

No Brasil, o predomínio da sensibilidade explicava segundo êle a pompa fúnebre de enterros, quando um mar de cores e aromas permite fazer esquecer o que aterroriza. O mesmo aconteceria com as festas de casamento  Tudo seria feito para transpor essa etapa da vida a outro contexto do que é aquele a que pertence, que é a terra. Todas esses mascaramentos seriam filhos do mêdo.

Indiferentismo dos caboclos no Brasil - existência cega e a vida vivida como é

Constatando expressões de fatalismo, de macana argentina ou de indiferentismo em geral, Keyserling considera em especial os caboclos o Brasil.

Esse indiferentismo, que predominaria em todo o subcontinente, era o mais impressionante fenômeno que conhecia. Ele não resultava de falta de interesse. Era expressão da existência cega, do primado da vida primordial no seu fechamento intransponível.

Durante muito tempo procurou uma explicação para esse fenômeno tão difícil de ser compreendido pelo europeu. Tratava-se de uma atitude de não solucionar problemas levantando questões, mas tomar a realidade como tal, em espírito de resignação.

Essa situação existencial de vida de caboclos corresponderia à vivenciada mais profundamente na doença, do não querer ser pesado aos outros, e, por fim, da preparação à morte. Essa atitude seria a de uma total identificação com a vida vivida como é.  Todo estágio da vida seria assim vivenciado profundamente pelo homem, que experimenta exatamente o que as atingem de fato. Assim, afirmam os afetos, o nascimento e a morte, a alegria e o sofrimento, a felicidade e a tristeza. Toleram oo sofrimento dos outros, apreciam tratar de doentes e assistem aos moribundos.

Relações com a filosofia natural, com o relato bíblico da Criação e mitologia

O aprofundamento e a diferenciação das meditações de Keyserling em referências com tradições observáveis empiricamente no Brasil deu-se, na Europa, a partir de 1974/75, na esfera dos estudos da Antiguidade nas suas relações com o Cristianismo dos primeiros séculos.

Tratou-se em diferentes ocasiões e contextos, em institutos de estudos arqueológicos e de história das religiões, assim como de etnologia e antropologia cristã, de divindadades da antiga mitologia relacionadas com a morte e de correspondências com o Antigo Testamento e com santos cristãos.

Constatou-se - como em muitos outros casos - problemas dos estudos mitológicos resultantes a falta de compreensão do complexo imagológico no seu todo, o que faz com que as referências fragmentárias transmitidas pelas fontes surjam sem coerência.

Frequentemente encontram-se assim identificações de divindades relacionadas com o mundo subterrâneo dos mortos ou infernos, tais como Hades, Pluto ou divindades similares ou com outras denominações, tais como Dis pater, Orcus, Ebuleus, Aidoneus ou outras.

Em geral, parte-se da idéia de que se tratavam de uma mesma divindade, correspondendo, assim, Hades a Pluto. Algumas fundamentais diferenciações, porém, podem ser feitas. Hades, o irmão de Zeus/Júpiter a quem coube a esfera subterrânea -, ao lado de Poseidon/Netuno na esfera as águas e Júpiter nos céus ígneos, era filho - o primeiro - de Rhea, a Magna Mater.

Pluto, diferentemente, era filho de Demeter/Ceres, filha de Rhea, pertencente, assim, a uma outra fase geracional.

Enquanto Pluto, como filho da terra como mãe dos cereais representa a profusão da riqueza que neles se manifesta - e por extensão das riquezas da terra em geral - Hades é o espírito atuante nas trevas dentro dos feixes do cereal colhido, invisível assim, substância ígnea ou fogo espiritual frio, sendo compreensivelmente designado como invisível e trazendo, como atributo, uma cobertura de cabeça. A sua face não era vista.

Há uma outra correspondência das antigas fontes que surge ainda mais complexa e que necessita ser considerada com especial atenção. Trata-se da correspondência de Hades com Dionísio. Dioniso, filho de Zeus e de Demeter - ou Semele como sua personificação mortal - pertence a um outro plano ou fase, aquele dos filhos de Zeus, do fogo espiritual. Após incinerar-se a mortal Semele sob o fogo de Zeus, foi este gestado por este, tendo, assim dupla natureza, terrena e divina. Compreende-se, assim, que tenha sido identificado com o ígneo invisível frio nas trevas de Hades, é, porém, pertencente já a uma outra fase dos desenvolvimentos.

De acordo com o procedimento de Keyserling, relacionando essas divindades com as trevas do primeiro dia da Criação, tratar-se-ia da diferença entre as trevas transpassadas pelo luz e, após esse aparecimento, a da sua designação de noite, sendo então separada do dia.

Esta separação, na tradição patrística de estudos da Gênese, representa a da substância angelical, correspondendo assim a noite a Lúcifer. Com isso, Dionísio corresponde ao demônio, mas, ao mesmo tempo, já faz parte da criação após o surgimento da luz, não sendo este o caso de Plutão, que se encontra fora dessa esfera.

Dionísio, assim, necessita ser considerado em outro contexto, relacionando-se com concepções do mal. Não se pode igualar Pluto com Dionísio. A confusão resulta da referenciação com o mesmo elemento e com a mesma época do ano, ou seja, a terra na sua situação mais profunda nas trevas do ano do hemisfério norte, o mês de dezembro e, no Zodíaco, o signo de capricórnio.

Lázaro nos estudos euro-brasileiros

O relato do despertar da morte de Lazarus segundo o Evangelho e da sua representação na história da arte e nas tradições foi considerado nos estudos euro-brasileiros em diversas ocasiões em visitas a catacumbas romanas, assim como em cenas funerárias em sarcófagos em museus e sítios arqueológicos. Foi uma das preocupações dos trabalhos antropológico-culturais da seção de etnomusicologia do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos da organização pontifícia de música sacra e considerado em cursos proferidos em Roma.

Práticas e concepções registradas pela pesquisa empírica no Brasil puderam não só ser melhor compreendidas nos seus sentidos, como também, reciprocamente, possibilitaram melhor entendimento da linguagem visual transmitida através dos séculos e relacionadas com a antiga festa de Lazarus. Essa festa, no antigo calendário no dia 17 de dezembro, corresponde nessa data muito mais adequadamente à imagem visual das tradições do ano agrícola e seus sentidos do que aquela do novo calendário católico.

As meditações de Keyserling baseadas na sua vivência pessoal em situação de grave doença corresponde ao culto de Lazarus nas suas relações com doenças de morte e com a situação existencial daqueles que se encontram confrontados com a morte em lazaretos ou em isolamentos.

São casos em que a medicina não encontra remédios ou daqueles pobres que não podem ter assistência médica. Lázaro é, assim, êle próprio o „médico dos pobres.“ Discutiu-se, em várias ocasiões, se aqui não se tratava de antigas práticas de cura relacionadas com o dormir ou mesmo da assim chamada incubação. Como elucidado nas „Meditações Sulamericanas“, a entrega de si à terra traz uma tranquilidade, uma superação do mêdo, um adormecimento do espírito que, ao contrário de levar a idéias de morte e suicídio, promove a cura. Esta surge como que um despertar ou ressuscitar.

O complexo de significados que relaciona Lázaro com a doença, a morte e a cura, o cair doente e o curar, torna compreensível que o tipo que representa tenha correspondência com São Roque, santo que se tornou altamente popular em épocas de epidemias de pestes e outras doenças. Com a sua vida marcada pela assistência a pobres e necessidades acometidos de doenças, teve o seu culto compreensivelmente promovido pelos Franciscanos.

Através da missão franciscana, mas também de práticas religiosas de europeus sobretudo provenientes da Itália, do sul da França e da Península Ibérica, o culto de São Roque difundiu-se na África e na América Latina. Estudos relativos a São Roque foram realizados em diversas ocasiões na cidade alemã de Bingen, próxima ao Instituto junto à abadia de Maria Laach onde se desenvolveram os estudos euro-brasileiros relacionados com a hagiografia e a história religiosa. ( Veja)

Obaluaiê ou Omulu conhecidos de práticas de culto do Brasil e da santeria de outros países latino-americanos, apesar de suas denominações, não podem ser assim vistos como deuses africanos que apenas superficialmente teriam sido identificados com santos católicos com base em ilustrações impressas de calendários para que os fazendeiros não tomassem conhecimento da prática de culto de escravos.

As tradições agrícolas a que se prendem a linguagem visual são do hemisfério norte, da Europa, transmitidas às regiões extra-européias no decorrer da história das navegações e dos descobrimentos. Os santos foram, através de referênciaç~ oes  históricas, caminho para a transmissão e manutenção antitipológica de imagens-tipo representativas de concepções de remotas proveniências. Esse complexo temático foi considerado em ciclos de estudos promovidos pela A.B.E. em diferentes ocasiões em Cuba e no Haiti.

De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“ A morte e o subterrâneo no homem. Ano agrícola do hemisfério norte e processos psíquico-culturais.O entregar-se à terra na doença e o despontar da luz nas trevas: Lázaro “
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 158/12  (2015:06). http://revista.brasil-europa.eu/158/Morte_e_suberraneo_no_homem.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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Fotos A.A.Bispo, 2015 ©Arquivo A.B.E.