Ordem emocional no progresso humanizador

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 158

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

N° 158/15 (2015:6)





Ordem e Progresso

a ordem de idéias e imagens e a ordem emocional no progresso humanizador

-  a alma em missão que poderia caber ao Brasil -

10 anos da visita da A.B.E. ao Palácio do Catete, antiga sede Presidência do Brasil

 
Simposio A.B.E. Joanopolis 2002. Foto A.A.Bispo
Ordem e Progresso é um lema que está permanentemente presente em todas as situações nas quais se considera ou se celebra o Brasil. Êle paira na esfera celeste no centro da bandeira em eventos de todo tipo, festas, encontros, demonstrações, colóquios, simpósios, congressos, conferências e centros culturais.


Não há como fugir desse lema na sua onipresença, mesmo em situações e circunstâncias que nada teem a ver com os conceitos nele expressos ou com o contexto político-cultural que levou a tal perenização na bandeira nacional com a proclamação da República no Brasil.


Mesmo aqueles que não se identificam com correntes e posições que hoje em diferentes contextos e países clamam por ordem e de progresso, por serem estas sobretudo localizadas no espectro político de direita ou do autoritarismo em geral, não podem deixar de confrontar-se com essas palavras.


Inscritas no céu do símbolo da nação manifestam e estabelecem um princípio ou motivo condutor, constituindo ao mesmo tempo lembrança, chamamento, apelo e palavra de ordem. Não se trata aqui apenas de cores ou de figuras emblemáticas, mas de uma colocação de intelecto, razão ou de espírito, quase que como um mandamento.


Inúmeras são as situações em que esse lema surge como deslocado e mesmo paradoxal, bastando lembrar-se de demonstrações e encontros inseridos em outras correntes de pensamento do que aquelas que, em fins do século XIX, levaram à valorização da ordem e do progresso, sendo por vezes até mesmo com elas conflitantes. 


Poucas nações impregnam como o Brasil o seu maior símbolo nacional com dizeres tão marcadamente representantes de uma determinada época da história do
Simposio A.B.E. Joanopolis 2002. Foto A.A.Bispo
pensamento europeu nas suas dimensões globais.


A bandeira perpetua com essa faixa uma fase do desenvolvimento das idéias, da filosofia e da ciência, conhecimentos, anelos e ideais de fins do século XIX, o século da Teoria da Evolução e do Evolucionismo, sendo em grande parte associada a um espírito e por nomes da „Belle époque“.


O progresso no lema surge necessariamente como estranho nesse conservativismo nada progressista de manutenção de concepções de progresso das décadas anteriores à Primeira Guerra.


Não há prova mais evidente de recepção cultural, de assimilação de idéias, da orientação segundo correntes do pensamento vigentes em capitais européias em determinados círculos da sociedade brasileira e, portanto, do sempre criticado europeísmo ou eurocentrismo do que o complexo ideológico condutor expresso nessas palavras.


Simposio A.B.E. Joanopolis 2002. Foto A.A.Bispo
O absoluto e a abrangência desses dizeres, na sua intrínseca intenção de validade universal, é porém internacional por excelência, e o seu uso a serviço de anelos nacionais ou - ainda mais -nacionalistas - surge como singular, paradoxal, inquietante ou pelo menos instigante, exigindo constantes reflexões.


Necessidade de reflexões sobre Ordem e Progresso e a sua sensível problemática


Queiram ou não, aqueles que se dedicam a estudos de processos culturais em relações internacionais referenciados pelo Brasil precisam ocupar-se com esses conceitos, assim como com nomes, escolas de pensamento e contextos que levaram a  tal valorização do binômio ordem e progresso.


Esses dois conceitos e o todo de suas relações na unidade Ordem e Progresso superam com a sua constante presença possíveis outros que poderiam surgir como condutores de reflexões, análises e ações, seja cultura/natureza, tradição/inovação, passado/presente ou espírito/alma.


Não basta porém o estudo histórico dos pressupostos, sentidos e das circunstâncias dessa singular elevação aos céus da bandeira de conceitos de uma determinada época da história do pensamento, da cultura, da filosofia, dos conhecimentos e mesmo da ideologia, entre êles a do sempre lembrado Positivismo do século XIX.


A bandeira como símbolo nacional desperta tão fortes sentimentos, emoções e afetos que os próprios conceitos - êles próprios tão intelectuais, tão pouco emocionais - passam a ter um significado que fala ao coração, prendem a mente quanto a reflexões, fazendo com que possíveis questionamentos sejam sentidos quase que como crimes de lesa-pátria.


Esses conceitos, sem serem conscientemente registrados ou indagados, surgem presentes em contextos dos mais abstrusos, podem ser levados em bandeiras por anarquistas, revolucionários, conservadores e tradicionalistas, mesmo por „desordeiros“ ou anti-progressistas.


Estes críticos do progresso não só são os reacionários. São também os desesperados com as consequências de desenvolvimentos que, apresentados como progresso, trazem problemas sociais e humanos e levam a inacreditáveis destruições do patrimônio natural do país.


A faixa na bandeira esvoaça com estes dizeres de ordem e progresso em situações sociais, urbanas e ambientais que os desafiam e que, se registrados em consciência, deviam ser sentidos antes como grito de desespero e apelo desesperançado.


Palacio do Catete, RJ. Foto A.A.Bispo 2007

A grande problemática do lema manifesta-se em paradoxos, que deveriam ser percebidos quando essas palavras de „direita“ surgem em demonstrações e revoluções que, de „esquerda“, pretendem modificar a ordem estabelecida.


A ordem e progresso da bandeira chega mesmo a ornamentar latões de lixo em algumas regiões do Brasil, pelo que tudo indica sinalizando a ordem e o progresso proporcionados pela limpeza, e que, no sentido metafórico, poderiam ser lidas nas suas associações policiais, militares e políticas de reestabelecimento de ordem e, com ela, de progresso: casa limpa, mesa limpa, bom trabalho e progresso.


O mais impressionante fenômeno de uma presença não refletida ou conscientemente registrada dos dizeres ordem e progresso no céu de estrêlas é quando essas palavras esvoaçam nas multidões de bandeiras agitadas e acompanhadas de gritos entusiásticos de estádios ou levadas em alegria em escolas de samba, ou quando, por vezes portando reclames de refrigerantes, surgem em barracas de venda de caipirinha por ocasião de festas populares nas grandes cidades da Europa.


Quando são levadas em festas e paradas de reinvidicação de direitos humanos, como por ocasião do Christoph Street Day, podem trazer à consciência sentidos mais amplos do progresso, uma vez que este pode ser compreendido como progresso esclarecedor e de Direitos do Homem, que são universais e, assim, em sentido não-material, imaterial ou espiritual.


Também a ordem adquire novos significados nessa abrangência do progresso, pois significa uma ordem impregnada por outros valores de progresso - os de Direitos Humanos, diferenciando-se assim da ordem estabelecida por normas convencionais, de inércia tradicionalista ou irrefletidas. Os contrários, em particular fundamentalistas religiosos, argumentam ao contrário que aqui se trata de uma ordem normativa estabelecida por Deus e estranhamente justificada não por Direito Divino, mas por um sempre lembrado Direito Natural.



Ordem e Progresso nos estudos de imagem, identidade e representação do Brasil


Os símbolos nacionais - e deles o da bandeira com o seu expresso lema ordem e progresso -, não podem, assim, deixar de ser considerados com especial atenção em estudos relativos à imagem, à identidade e à representação do Brasil.


Recebem, assim, especial atenção nos estudos respectivos do programa euro-brasileiro iniciado na Europa em1974/75 e que já levaram, em 1982, à realização do primeiro Forum de estudos euro-brasileiros, tendo sido este dedicado sobretudo a questões de imagem em relações Alemanha/Brasil. (Veja)


Como país visto e representado com estereotipos como samba, futebol e carnaval, referenciados sobretudo pelo Rio de Janeiro, a imagem do país é marcada por emoções que se manifestam no entusiasmo dos estádios e nas explosões de alegria do carnaval ou, mais recentemente, das baterias e dos maracatús que passam a caracterizar as comunidades de brasileiros no Exterior.


O extraordinário papel desempenhado pelas emoções, pelo emocional, pelas sensações, pelo sentimental e afetivo no Brasil e na sua representação foi compreensivelmente constantemente tematizado, servindo também para justificar e salientar a importância de uma maior atenção à música, às artes e às expressões culturais, lúdicas e festivas em geral do Brasil e nas relações recíprocas com a Europa.


Lembrou-se, em diferentes ocasiões, que é sobretudo no significado que adquire música que o Brasil e a Alemanha mais se aproximam. Ambos são países musicais e marcados pela música, ainda que com diferentes formas de expressão. Essa proximidade foi um dos principais fatores que justificou a proposta, quando da fundação da Sociedade Brasileira de Musicologia, em 1981, da institucionalização na Alemanha de Centro de Pesquisas em Musicologia criado no Brasil, em 1968, o que foi efetivado como Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa em 1985. (Veja)


Esse significado da música como elo comum e fator de aproximação entre as duas nações foi novamente lembrado por S.E. Francisco Weffort, Ministro da Cultura do Brasil na sua mensagem ao congresso que abriu o triênio de eventos científico-culturais internacionais pelos 500 anos do Brasil. (Veja)


Como formulado pelo congresso no seu tema „música e visões“ - não só a música devia ser considerada nas reflexões motivadas pela passagem dos 500 anos do Brasil, mas também visões, o visionário, questões especificamente do espírito.


Na sua mensagem, o Ministro trouxe à consciência o significado do pensamento, da filosofia e das ciências na Alemanha e que não poderia ser esquecido. A Europa de língua e cultura alemãs não é só aquela de Bach, Beethoven, Brahms, Mozart, Haydn ou Wagner, mas também de Goethe, Schiller, Kant e muitos outros vultos da história da filosofia e das ciências.


O Brasil, porém, se é visto também como país musical, não tem a sua imagem marcada de tal modo como a Alemanha como país predominantemente de filósofos e cientistas.


O extraordinário empenho de Dom Pedro II para apresentar o Brasil no Exterior como nação de intelecto, de espírito, de cultura e de ciências pertence a um passado já distante. Essa é uma imagem do país já há muito obscurecida, suplantada por aquela na qual predominam as emoções do samba, carnaval e futebol e que só aos poucos adquire outras diferenciações, nem sempre, porém, positivas. E tudo isso sob o lema Ordem e Progresso.



Ordem e progresso - só progresso do espírito, de visões e idéias?


A análise dessa situação, assim como dos processos que a ela levaram, surge como ponto de partida para a tomada de consciência e mesmo a valorização da esfera do pensamento, das idéias, das visões e do visionário na imagem do Brasil.


Pode, talvez, contribuir à superação de uma possível unilateralidade de uma imagem marcada exclusivamente por emoções e de deficiências registradas por observadores estrangeiros que estiveram no Brasil e que repetidamente salientaram a predominância quase que absoluta do emocional no Brasil.


Reciprocamente, esses estudos podem também contribuir à tomada de consciência e relativação do predomínio de determinadas visões, idéias e ideologias que determinam questionáveis e trágicos desenvolvimentos em nome do progresso.


Essa análise de processos culturais relaciona-se de forma complexa com auto-análises e análises de rêdes sociais e humanas. Como explicitamente expresso nos objetivos da Academia Brasil-Europa, uma Culturologia voltada à análise de processos necessita ser desenvolvida nos seus estreitos vínculos com os estudos da própria ciência e da história das idéias. (Veja)


Somente a consideração do já observado, reconhecido e investigado no passado pode evitar que se pense o que já foi pensado pensando em se descobrir algo novo e, assim, de plágios e usurpação de idéias e visões, contribuindo ao prosseguimento das reflexões e de um processo esclarecedor.


Considerando em particular as relações entre a Alemanha e o Brasil quanto ao peso dado ao emocional nas suas relações com o espiritual, o intelectual e o visionário, cumpre lembrar que as „Meditações Sulamericanas“ do conde Hermann Keyserling (1880-1946).


Essas meditações do fundador da „Escola da Filosofia“ em Darmstadt foram estudadas no Brasil compreensivelmente sobretudo em círculos de língua alemã e forneceram o ponto de partida para os estudos de relações entre o emocional e o espiritual, entre a sensibilidade e o intelecto desde o início do programa euro-brasileiro na Europa em meados da década de 70 do século XX. (Graf Hermann Keyserling, Südamerikanische Meditationen, 2a. ed., Stuttgart Berlin 1933 (1a. ed. 1932, 227 ss.).


As meditações de Keyserling sobre a „ordem emocional“ constituiram a base para reflexões sobre questões relacionadas com conceitos de ordem e progresso nas suas dimensões antropológico-culturais, demopsicológicas, auto-analíticas e filosóficas.


O constatar da existência de uma „ordem emocional“ pelo espírito


Keyserling inicia as suas meditações afirmando que a maior surprêsa para a razão do homem reside no constatar a existência de uma ordem e sobretudo de relações de elos de coesão fora da sua esfera intelectual e de seu domínio. Ordem surge, da perspectiva do espírito, como algo próprio e prerrogativo da sua esfera imaterial.


Nesta sua afirmação, revela-se uma crítica e correção à noção generalizada de que ordem é assunto exclusivo do intelecto, abstrato e racional, e, consequentemente, de que o progresso é um desenvolvimento também exclusivamente da esfera espiritual, intelectual e racional, do aumento de conhecimentos e de suas aplicações na tecnologia, na economia, na vida das nações e mesmo no desenvolvimento pessoal através de uma educação marcada por assimilação de saberes e por desenvolvimento dela resultante.


Quando o homem descobre que há uma ordem na esfera das emoções, então essa noção de ordem como prerrogativa da esfera imaterial surge como unilateral e errônea.


Todas as suas meditações, que não deixam de salientar de forma drástica e passível de mal-entendidos a primordialidade ou primitividade de esferas no interior do homem e nos povos, seriam injustamente compreendidas se não se lesse com a necessária atenção as suas conclusões finais relativas ao significado que cabe à ordem na esfera das emoções no progresso da humanidade.


Problemas do domínio da compreensão intelectual de ordem: autoritarismo e violência


Os problemas resultantes de um predomínio unilateral do racional dizem respeito segundo Keyserling primeiramente à violência. Como o espírito presume ter um monopólio quanto à ordem, entendida como sendo exclusivamente da sua esfera, procura dominar.


O homem que parte dessa compreensão, ou seja, que está convicto que só a ordem reconhecida e criada na esfera imaterial dos pensamentos, das idéias, tende a governar por autoritarismo. Tentar impor a ordem visualizada interiormente na realidade representa um ato de força e mesmo de violência.


Esses homens que se fiam exclusivamente na esfera do intelecto, e assim não-material ou espiritual, não podem acreditar que haja uma ordem que exista por si e de si como expressão da existência natural.


Esses homens procuram trazer essa existência natural à razão, obrigando-a. Isso vale também para aqueles que combatem a violência, pois querem obrigar, pela razão, que se estabeleça a paz ou que haja tolerância.


Essa situação de presunção de homens marcados pelo intelecto tem consequências negativas para o próprio conhecimento, pois impede de se ver a realidade como é.


Paradoxalmente, o homem racional, que tem a capacidade de generalizar e tirar conclusões, e que tende a julgar o individual pelo todo, não acredita no fundo numa ordem definitiva, pois caso contrário não procuraria impor as suas idéias. Aquele que confia numa esfera imaterial no homem, na ordem reconhecida e criada abstratamente, situada assim para além da natureza que deseja impregnar, cai e age em contradições.


Compreensivelmente, a tendência à violência cresce, segundo Keyserling, com o incremento das forças da esfera do intelecto e da razão, o que é uma conclusão que se opõe àquela que em geral presume que a violência diminui com o desenvolvimento intelectual e com uma educação marcada pela transmissão de conhecimentos racionais.


Utilizando-se de linguagem visual de associações de gênero, como de seu procedimento, Keyserling associa a ordem do espírito ou do intelecto do homem com o masculino. A ordem assim compreendida e que o homem procura implantar autoritáriamente é masculina, representando uma característica de regimes autoritários e militaristas. Ordem e progresso, nesse sentido puramente intelectual, representaria manifestação masculina, ou melhor, de dominação masculina autoritária.


Tanto mais o intelecto ou o espírito se aguça, distanciando-se em autonomia na sua abstração, tanto menos reconhece possíveis instâncias intermediárias entre o pensado e a sua concretização. Keyserling lembra, neste contexto, que, de forma extrema, terroristas representam paradoxalmente o domínio de uma esfera imaterial, pois, guiando-se por uma idéia ou ideologia, procuram impor ordens pensadas, utilizando-se para isso meios de violência.


Ordem e desordem de homens que se guiam pela ordem racional - liberdade do espírito


Keyserling lembra também da contradição entre o fato de serem os homens que tanto pregam e procuram impor ordens racionais muitas vezes aqueles que vivem mais sem ordem. Dá como exemplo dos intelectuais que levam vida de boêmios, um termo que traz à lembrança a boemia intelectual e artística de Paris de fins do século XIX, onde tantos latinoamericanos assimilaram correntes de pensamento.


Keyserling dá como exemplo também aqueles homens do espírito que quase como à procura de segurança contra essa „desordem“ se retiram o mundo, entram em conventos ou, como fuga, se dedicam de corpo e alma à profissão e aos estudos.


Essa desordem é resultado de uma principial liberdade do espírito, que vai para onde quer, das idéias que são livres, das imagens que podem ser criadas, mudadas ou abandonadas.


A ordem assim concebida no espírito, suposta como sendo algo exclusivamente racional, não só leva ao autoritarismo e à violência. como também paradoxalmente, se vista sob a perspectiva do outro, à desordem.


Aqueles que, vivem no quadro da ordem não reconhecida como tal -a ordem emocional - e não aceitam normas de razão impostas, sentem-se pertencer a essa ordem como fato óbvio e natural, nele auto-realizando-se sem querer impô-la através de dominação ou violência.


Como sempre utilizando-se de referências de gênero, Keyserling elucida as suas reflexões comparando essa ordem e aqueles que nela vivem com a mulher. Também esta, porém, se não se sente mais pertencer à ordem que não é reconhecida pelo princípio racional, não mais a entendendo como óbvia e natural, já não mais nela se realizando, assume a presunção do outro princípio e os seus procedimentos de dominância e violentação.


Em todo o caso, as argumentações de Keyserling, ainda que exigindo hoje formulações mais sensíveis, caracterizam-se pela imagem das relações homem/mulher na sua complexa dinâmica.


Predominância da „ordem emocional“ na América do Sul - amizades e conluios


Keyserling confessa que já na sua juventude, decorrida em épocas revolucionárias no Báltico, ocupou-se com a questão da ordem, reconhecendo por fim que a ordem da razão e da lógica não é a única.


Apenas na América do Sul, porém, compreendeu a problemática nas suas dimensões. Confrontou-se, nos países sulmericanos, com uma preponderância quase que absoluta da esfera emocional. Mesmo homens de finanças, do comércio e da indústria não agiam segundo princípios racionais que seriam de esperar para fins tão pragmáticos. Na América do Sul não valeria tanto a idéia de que „negócio é negócio“, realizando-se transações com base em amizades, não apenas determinadas por interesses. Assim, contratos pouco tinham valor, pois permaneciam sempre em aberto; terminando a amizade, o sentido do contratado é outro.


Não só na área profissional, mas também na pessoal constatou a vigência do não-racional. Para o amigo tudo se fazia por bem-querer, não porém para outros. Essa atitude não seria sempre percebida devido à cortesia e disposição à simpatia que reinavam no subcontinente, em especial na delicadeza que caracterizava o Brasil. Lembra ter escutado de um brasileiro que, se o bolchevismo fosse implantado no Rio, haveria após as desapropriações dos ricos movimentos de simpatia pelos desapropriados e até mesmo os bolchevistas firiam fazer coletas em auxílio daqueles que tinham desapropriado. (op.cit. 229)


Na América do Sul, para Keyserling, o decisivo não seria nem consciência de dever, nem valores, nem a compenetração de exigências e necessidades, mas o que contava eram as amizades que, enquanto duravam, representavam os mais fortes elos de segurança.


Como, porém, sentimentos são sujeitos a mudanças, o amigo de hoje pode vir a ser o inimigo de amanhã.


Além do mais, os sentimentos prendem apenas pessoas próximas, em círculo relativamente restrito. Isto considerando, assim como a falta de previsões e de consequência no pensar, poder-se-ia supor uma absoluta falta de ordem na América do Sul. Este, porém, não era o caso, sendo a vida sulamericana muito mais solidamente ordenada do que em países onde predominava o princípio frio do racional da ideologia ou de interesses econômicos, como nos Estados Unidos.


Só que essa sólida ordem sulamericana, porém, não era racional, mas predominantemente emocional. (op.cit. 230)


A „ordem emocional“ na sua forma pura: o que machuca é mau, o que não fere é bom


A predominância da ordem emocional segundo as reflexões de Keyserling não diz respeito somente ao Brasil, onde ocorreria da forma mais acentuada, mas á América do Sul ou Latina na qual se insere, e, ainda em dimensões mais amplas, à cultura ibérica em geral.


Se essa predominância surge antes como velada na Espanha e em Portugal, sendo encoberta ou sobreposta por uma presença maior da esfera intelectual, de ideais e imagens condutoras, ela surgia na América do Sul na sua forma mais pura.


A sensibilidade que marcava a vida sulamericana e que tinha a sua expressão máxima de hipersensibilidade na delicadeza do brasileiro, determinava a vigência quase que absoluta da ordem emocional.


Como em nenhuma outra parte do globo valia no subcontinente, e sobretudo no Brasil, que o que não machuca é bom, o que fere é mau. Ou seja, não princípios ou normas éticas e filosóficas de conduta e julgamento de ações e situações, mas sim o que é percebido pelos sentidos e vivenciado como o que machuca ou não.


A problemática dessa ordem emocional residiria porém no fato de que, nas suas profundezas, essa sensibilidade seria determinada por emoções elementares. Os seus fundamentos encontravam-se nas profundezas da esfera mais inferior do homem, com todas as características negativas das trevas e do frio das profundidades. Apesar disso, a ordem emocional sulamericana seria marcada por uma suavidade que seria única no mundo. Aqui residia, segundo Keyserling, a sua singularidade.


Essa singularidade revelar-se-ia sobretudo em cotejos da América Latina com os países ibéricos.


As relações humanas na América Latina surgiam em comparação com a ibérica tão diferentes como as cores da paisagem da América do Sul em relação às paisagens cheias de calor tórrido da África. A ordem emocional seria amena, sem ser fria nem quente. Ela seria prateada em comparação com a dourada da Espanha, a sua luz seria a da lua, não a do sol. Embora sendo em sí fria, a ação do calor nascente na humanidade que desperta para a consciência faria com que o frio fosse mitigado pelo calor nascente, tornando agradável a atmosfera sulamericana.


Essas explanações de Keyserling tematizam assim explicitamente a questão atmosférica, a do „ar“ que manifestaria a ordem emocional. Aquela da América do Sul era a do ar equilibrado, nem frio nem quente, tal como na primavera, quando o ar é invisível e transparente, transpassado de luz e calor.


Atmosfera com o calor dos laços humanos - ordem emocional, grupo, família e amizade


A constatação da agradabilidade da atmosfera sulamericana, que não seria nem fria nem quente, correspondente assim àquela do ar primaveril da Europa, implica em reconhecer nessa ordem emocional uma dinâmica entre o frio e o quente.


Essa ordem emocional poderia deixar de ser quente quando se retraía às profundezas, manifestando-se então como sendo em si fria. Como Keyserling trata em outras meditações a partir de sua própria experiência como estrangeiro na América do Sul, o calor é proporcionado ou por laços humanos, de parentesco ou de amizade, ou por elos com a paisagem, com a terra. Como estrangeiro, sentiu, no isolamento, a frieza daquele que se retrai, que se exclui ou se afasta. Ao contrário, a criação de elos de grupo e com a terra proporcionam o calor do processo gradual e ascendente do sentir-se em casa e num „seu país“ (Heimat). (Veja)


Não a individualidade é nessa elucidação o estado próprio do homem, diferenciando-o assim da maior parte dos animais, que se unem apenas periodicamente. Também esse estado propriamente o homem não é um par ou a coletividade, como as formigas e abelhas, - o que teria pressuposto um eu coletivo -, mas sim o grupo, a comunidade.


Essa configuração grupal resulta segundo Keyserling ou de laços de estirpe, de clã, ou de amizade. No primeiro caso, os laços seriam de sangue apenas como imagem, pois o sangue, em si, não sente. Tratar-se-ia, no uso do termo sangue, de uma compatibilidade e proximidade psíquica nas suas bases físicas que se manifestam mais evidentemente em sentimentos familiares e de parentesco. Não menos, até mesmo mais vinculadora e fornecedora de calor seria a amizade entre indivíduos não ligados por laços familiares.


Já há muito os etnólogos tinham constatado a existência paralela de unidades de parentesco e de amizade. As últimas surgem como mais relevantes para o calor das relações, lembrando-se daquelas de classes e idade ou ligas masculinas e associações mantidas por um espírito de corpo exclusivo e não-pessoal.


Na América do Sul, para além da família, sempre apresentada para fora como um todo em si unido, o que nem sempre corresponde à realidade, os laços de amizade adquirem um significado primordial, o que explicava a extraordinária agradabilidade da atmosfera reinante no subcontinente,.


Diferenças entre a ordem racional e a emocional: exclusividade e personalismo

O que distingue a ordem emocional de uma ordem racional é, para Keyserling, a sua exclusividade. Para o sentimento há uma distinção qualitativa entre o querido, aquele que faz parte, e o estranho, o de fora.

Para elucidar essa exclusividade da ordem emocional, o filósofo lembra que ela é tão grande em situações primárias que aqueles que pertencem a uma determinada ordem emocional não consideram como gente aqueles que a ela não pertencem. Em tempos de reprimitivização, de embrutecimento do homem através de guerras e lutas de classes, todo aquele que não pertence a um todo perde direitos e pode ser morto.

Keyserling lembra Alexander von Humbolt  (1769-1859) que, ao procurar explicar a certos indígenas do Amazonas que não era bonito comer carne humana, esses teriam respondido, com a particular delicadeza sulamericana: „o senhor tem absoluta razão, mas, aqueles que comemos não são nossos parentes.“

Não diferentemente teriam procedido os gregos relativamente aos bárbaros.  Para estranhos não havia escrúpulos morais. Também não há escrúpulos éticos ainda hoje no homem relativamente a animais, uma vez que estes são tratados, mortos e comidos sem escrúpulos. 

Sendo a célula da ordem emocional o círculo pequeno, tanto de famílias como de amizades, desenvolver-se-iam no decorrer dos tempos clãs, tribos e a povos cada vez maiores. Tanto mais pequeno o círculo, tanto mais coeso. Daí a coesão dos habitantes da América do Sul.

Assim, para Keyserling, o que seria determinante na América do Sul não seriam os Estados oficiais, mas comunidades definidas por elos de sentimento. As ligas de famílias e amigos não são atingidas pelas perturbações de Estado, pelo contrário, delas até mesmo vivem.

O personalismo sulamericano dependeria assim diretamente do primado da ordem emocional. Um mundo centralizado no sentimento apenas pode ter o homem como foco. Reflexões abstratas e racionais do intelecto pouco significam, pois os pensamentos não constituiriam o primeiro fator, mas sim um fator secundário, vindo antes de tudo os sentimentos.

Problemas do predomínio a ordem emocional: a corrupção na América do Sul

Uma as manifestações da predominância da ordem emocional seria a frequência e a intensidade da corrupção na América do Sul. Essa falta de honestidade corresponderia segundo Keyserling a um estágio primário da ordem emocional; sendo os seus fundamentos não ideais, racionais, morais ou utilitários, mas sim emocionais.

Na corrupção sulamericana, o acento principal não devia ser dado ao suborno ou ao uso indevido de dinheiro, mas sim ao amor ao próximo e ao nepotismo. Para aquele que é centrado emocionalmente, o mundo humano restringe-se ao círculo daqueles que a êle pertencem.

A atenção concentra-se sem maiores escrúpulos em amigos e em si próprio. Estado, instituições, cargos, todos são antes conceitos intelectuais ou abstratos que podem ser espoliados para o bem de amigos. Por esse motivo, toda a revolução sulamericana que exige o fim da corrupção acabaria em estado igualmente corrupto. E muitos sulamericanos achariam que isso estava em ordem.

Tal fato poderia explicar também porque no passado a escravidão não teria sido considerada como atroz, mas como humanitária. Os gregos e romanos também não viam nada de mal em escravizar os vencidos em Guerra, pois o normal seria matá-los. O estado da escravidão surgia como natural, assim como os empresários da época da Revolução Industrial viram com boa consciência a precária forma de vida dos operários nas fábricas.

No estado atual intelectualizado, esse estado primário se manifestaria no tipo da mãe que se chama mãe-onça: nenhum sacrifício é pouco para os próprios filhos, para os de fora, porém, tudo vale.

A imagem feminina da ordem emocional na linguagem visual: a alma

O uso da imagem da mulher para caracterizar essa ordem sulamericana explicar-se-ia para Keyserling por estar na mulher a esfera racional tão a serviço da emocional que ela vê tudo de bom e bem naquele que ama, não compreendendo que outros possam ver as coisas diferentemente.

E como a ordem emocional é a ordem primária do homem, toda a traição é julgada segundo a imagem feita por uma mulher de amigos e inimigos. Essa ordem emocional e esse tipo de julgar e ver traições e distinguir amigos e inimigos vive em tudo, mesmo nos povos mais intelectualizados, sendo porém, mais acentuado na América do Sul.

O mais importante nas explanações de Keyserling foi o salientar que o „reino da ordem emocional coincide de todo modo e em todos os aspectos com aquilo que é chamado de alma“ (op.cit. 237)

Para Keyserling, a alma não devia ser vista como algo transcendente ou metafísico. Libertando-se de concepções teológicas, não se poderia constatar nenhum atributo da alma que não correspondesse à esfera do sentimento na sua distinção daquela da „vida primordial“ e da ratio.

O mundo dos sentimentos origina-se diretamente da vida primordial, e que Keyserling considera nas suas meditações relativas à gana (Veja).

Com esta esfera da gana ou vida primordial, a alma se relaciona tal como na matemática uma diversidade de mais alta ordem se relaciona com uma de menor ordem. A ordem emocional ou alma é a mais alta expressão do que ascende da vida primordial. O reino da gana é o os fundos originais inconscientes, não podendo ser chamada esta vida de parte psíquica do homem, ainda que também pertença ao psíquico - é orgânico-psíquico. A ordem emocional, ao contrário, é alma, é psique.

Se a vida primordial da gana é cega e determina „melodias de vida“ fechadas (Veja), também os sentimentos são qualitativamente especiais, exclusivos e únicos; os sentimentos são também cegos.

Os sentimentos, porém, não são próprios da vida primordial, mas são configurações puramente psíquicas. Também seria inadequado falar de sentimentos inconscientes, embora o seu vir-a-ser consciente não pertença à sua natureza emocional, mas sim à intelectual. Isso reside no fato de que a qualidade particular da realidade emocional inicia-se e termina com o seu vir-a-ser vivenciado pessoalmente. O mundo dos sentimentos é, assim, essencialmente o da vivência.

Perda da alma com a supremacia da esfera racional e o progresso humanizador

A supremacia da esfera do intelecto, da abstração, das idéias leva a uma unilateralidade às custas a ordem emocional que significa a perda da alma.

Esse processo leva em todos os países e contextos à desumanização, ou seja, ao contrário do que é o verdadeiro progresso.

O progresso alcançado pelo desenvolvimento econômico, técnico, industrial ou outros baseados na razão e na lógica do intelecto, das ciências e da técnica levam, na sua argumentação, à perda da alma.

Não aquele sem inteligência, mas o sem sentimento é o não-homem, o homem desumanizado. Todos os progressos da humanidade, como o fim da tortura, da escravião, o reconhecimento de direitos fundamentais do homem, a justiça realmente justa, fundamentam-se primorialmente numa intensificação dos sentimentos e no vibrar em simpatia com outras vidas.

Mesmo na humanidade maquinal e determinada pela economia, deve-se manter os ideais do esclarecimento, desde que estes sejam reconhecidos no abrangência de sua conceituação, não restrito à racionalidade. Keyserling lembra que o iluminismo teve as suas raízes „nos corações generosos“ do século XVIII, e essa dimensão não pode ser esquecida. O esclarecimento não pode ser entendido apenas como fenômeno de razão e do intelecto, do reino das idéias e abstrações, das ciências e do conhecimento.

O homem se compreende a si próprio, ainda que de forma inconsciente, em primeiro lugar não como um animal que pensa, mas que sente, um animal que é centralizado na esfera do sentimento.

A predominância unilateral da esfera do espírito ou do racional mostraria que esta, à qual falta todo o calor pessoal, é, sob o aspecto do sentimento, fria, levando à perda da alma. Esta, quando aquecida pelos elos de calor é vivenciada como quente. Se a esfera do racional, na sua frieza, age em autonomia e separa-se da ordem emocional ou da alma, esta se esfria, cai nas profundidades frias da região mais baixa do interior do homem.

Diferença entre a esfera das sensações e a dos sentimentos

Ao contrário da alma, que existe apenas juntamente com o vivenciado, a esfera da vida primordial da gana existe de forma independente. Assim, para Keyserling, o conceito de alma pode ser aplicado apenas a partir de uma consciência, o que pressupõe uma relação com o espírito.

A alma não é sensação ou percepção sensorial, pois esta não exige um sujeito centralizado que vivencia. O que se entende por alma relaciona-se estreitamente com o calor, que é seu atributo, mas dele se diferencia na linguagem das imagens e nas suas concepções como hipostase. A alma, porém, como elucida Keyserling, não é substância metafísica. Ela faz parte da ordem da natureza.

Keyserling procura demonstrar a diferença entre a esfera do sentimento daquela das sensações.  Toda a sensação poderia ser denominada de superficial pelo fato de referir-se á superfície do todo corpo/alma, tendo a sua existência em dependência de fatores externos.

Essa dependência não tem o sentimento: sentimento vive pelo seu próprio direito. Este nunca é superficial, sendo sempre profundo. O sentimento é alimentado pelas sensações vindas de fora, razão pela qual num determinado ponto, coincidem, como impressão e a expressão. Assim, pode-se experimentar como sensação o que é sentimento e vice-versa. O cultivo da sensibilidade pode levar a sentimentos e é possível proteger-se através de sensibilidade cultivada.

A alma não é algo metafísico, mas pode tornar-se corpo do espírito

Nas concepções de Keyserling, a vida da alma seria autônoma. Ela seria a última instância do homem. Seria errôneo, compreendê-la metafísicamente como sendo espírito. A suas profundidades localizariam-se na matéria, derivando-se da vida orgânico-psíquica primordial.

Também a alma é cega, uma vez que não é capaz de visualizar ou criar imagens. O mal-entendido de ver a alma como algo metafísico, explicar-se-ia pelo fato de que também na esfera dos sentimentos seria possível a vivência psíquica do espírito.

Ou seja, também a alma nascida da terra pode tornar-se corpo do espírito, que é, este sim, metafísico. Sendo cega, é necessário, uma vez que o homem é um ser pensante, ser ela sobreposta por uma ordem racional, o que poderia ser compreendido, na linguagem visual, como a de uma união entre mulher e homem.

Mencionando concepções da India, Keyserling lembra que também através do amor se chega ao espírito. Muitos das incorporações do espírito na terra seriam apenas possíveis em corpos de sentimentos, sendo que outras pressupõem os fundamentos naturais da sensibilidade.

Tratar-se-ia, segundo o filósofo, de uma sensibilização do espírito, do intelectual e do racional e, ao mesmo tempo, de uma espiritualização da alma. O extraordinário ethos da amizade da Antiguidade não significaria outra coisa do que a espiritualização da amizade como essa era compreendida na América do Sul.

Discórdia e guerra como produtos de emoções primárias

A idéia de Empedocles de que a guerra de todos contra todos é o pai de todas as coisas seria compreensível para Keyserling. O poder terminar com elos de ligação na ordem emocional surge como causa de transformações históricas.

O cego, porém, apenas muda a sua posição quando deve fazê-lo interiormente. Motivos exteriores desempenham apenas um papel secundário em situações de cunho primordial como aquelas determinadas pela ordem emocional. A discórdia, como agente movimentador, poderia ser observado em grupos, tribos e povos menores, onde convivem pessoas que se gostam e aquelas que não se gostam. Tal convivência existe também entre os animais, onde carnívoros vivem ao lado daqueles que apenas se alimentam de plantas. Essa complexidade dinâmica de organizações primárias não tem a sua origem na esfera superior do intelecto, mas sim deriva do primado da ordem emocional.

As meditações referentes à alma de Keyserling nos estudos euro-brasileiros

A partir da tradição brasileira da recepção da obra de Keyserling, procedeu-se ao aprofundamento e à diferenciação de suas explanações na Alemanha, a partir de 1974/75. Ponto de partida desses estudos foram as próprias referências de Keyserling de natureza filosófico-natural, à mitologia greco-romana e ás Escrituras.

Já no início de suas meditações interpreta Keyserling a narrativa de que dominava o caos quando Deus nele falou no sentido do descobrimento, por parte do espírito do homem, da existência de uma esfera onde o princípio racional procura estabelecer a sua ordem.

A leitura do texto bíblico foi, assim, desde o início alvo de especial atenção em interações com teólogos e pesquisadores de relações Antiguidade/Cristianismo em centros europeus e o Vaticano, analisando-a em cotejo com aquela de textos patrísticos que tratam da „obra dos seis dias“ da Criação.

A diferença que o filósofo faz entre a alma e a vida primordial, da qual procede mas da qual se diferencia pelo fato de pressupor a consciência, leva como consequência a localizá-la após o surgimento da luz e a separação do dia e da noite, ou seja, no segundo dia da Criação. Na noite deste dia, deu-se a expansão no meio das águas, o espaço no qual foram criados, no quarto dia, os luminares dos céus, em particular o sol e a lua que iluminam o dia e a noite.

Como a sequência do relato bíblico caracteriza-se pela sua correspondência com o ciclo do ano do hemisfério norte, fato constatado e discutido sob diferentes aspectos e em diversos contextos, a expansão no meio das águas. Este corresponde ao período do início do ano do mês de janeiro e, do ponto de vista do Zodíaco, ao signo de Aquário, parte central do trimestre de inverno europeu, já porém, na parte ascendente do ano, marcada por gradual aquecimento.

Trata-se, assim, no pensamento filosófico-natural vigente na tradição astrológica também conhecida por Keyserling, do elemento ar na sua posição mais inferior, nas suas qualidades de frio e húmido, no seu estado corpuscular mais compacto, no qual perde a sua transparência primaveril alcançada em junho)e o seu calor incandescente do verão. O elemento ar, nessa ascendência, a que se segue a descendência na outra parte do ano do hemisfério norte, corresponde ao caminho elucidado por Keyserling do caminho ascenente e descendente da alma às profundezas do frio e das trevas quando do domínio autônomo da esfera espiritual e, ao contrário, à sua ascensão à união com o espírito.

Deve-se, porém, dar maior atenção à complexidade das relações na reciprocidade e dinâmica do campo de tensões espírito/alma nos caminhos de intensificação em ambos os sentidos, diferenciando as colocações de Keyserling. Como salientado, é o espírito que é frio - fato exemplificado na frieza da razão de economistas e tecnocratas. No estado de união ou fusão com a alma numa situação de absoluto calor de princípio, é essa corpo do espírito, que a forma, correspondendo a principios de hilemorfismo: de matéria formada e materialização da forma.

A sua manifestação como frio na época mais fria e tenebrosa do ano, diz respeito à forma materializada na sua modalidade passiva, e assim, espírito. O ar, que é nessa situação frio e húmido, indica que a humidade, e assim a água é que deve ser considerada nas reflexões relativas à ordem emocional ou alma: não o frio-húmido, mas o húmido-frio corresponde à situação da alma nas profundezas.

Na linguagem da mitologia clássica e sob o aspecto teológico

Em estudos levados a efeito em centros de pesquisas da mitologia e da arqueologia em diferentes países - salientando-se aqui o Museu Romano-Germânico de Colonia -, reconheceu-se a similaridade ou mesmo identidade das concepções e imagens de Keyserling com aquela de Hera/Juno da antiga mitologia, a irmã e mulher de Zeus/Júpiter.

Basta lembrar que essa „rainha dos céus“, que empresta o seu nome ao mês de junho, afastava-se de Zeus nas alturas quando machucada na sua sensibilidade, em ciúmes pela autonomia de Zeus, isolando-se na frieza das profundidades do oceano nas trevas do Ocidente.

As concepções relativas a Hera, na sua ascendência em direção à união com Zeus - as festas de junho - e a sua descida ao isolamento nas profundezas correspondem, sob a perspectiva filosófico-natural, àquela do elemento ar (Aquário) e da água (Câncer).

Essas relações foram tratadas na sua complexidade de harmonizações e reinterpretações com tradições cristãs já antes da realização do simpósio internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“, em 1981, levando à realização de pesquisas de campo em celebrações e locais de culto no Brasil. Concepções de alma foram estudadas em preparatórias sobretudo em Salvador e na Praia Grande, fornecendo bases empíricas para o tratamento de questões de alma sob a perspectiva antropológico-cultural em eventos e em cursos em instituições pontifícias nos anos 80, assim como em publicações.

Esses estudos atentaram sobretudo à concepção e imagem de Ecclesia, na união da vinda de Cristo, no presente, àqueles que o amam, e, assim, à correspondência com imagens coletivas dos elos de calor proporcionados por laços humanos em comunidade sempre tratados na tradição de pensamento representada por Keyserling. Essas concepções relacionam-se estreitamente com concepções marianas, sendo porém necessárias diferenciações. Uma síntese dos trabalhos realizados no decorrer das décadas foi oferecida em exposição-conferência pelos 25 anos em relato a seção de Etnomusicologia do Instituto de Pesquisas da Organização Pontifícia de Música Sacra (CIMS) em Maria Laach, em 2002.

O Estado no Brasil e a alma brasileira com a crescente supremacia tecnológica

Para Keyserling,  o aparelho de Estado do Brasil como conheceu seria magnificamente refinado, vindo de encontro à ordem emocional que se manifesta de forma extrema na delicadeza, hipersensibilidaade e vulnerabilidade do brasileiro em sentir-se ferido e machucado. (Veja)

Devido, porém, ao crescente predomínio da esfera racional, do cálculo frio de economistas e tecnocratas, a América o Sul entrosava-se cada vez mais na rêde das finanças norte-americanas. A rígida lógica no alcance de poder material passava a subjugar a ordem emocional. Isso traria o risco da perda da alma, dos elos proporcionados pelo calor humano, da desumanização e, por fim, da destruição das suas bases naturais, da terra, da natureza.

Ao contrário, porém, se o subcontinente - e sobretudo o Brasil como país da hipersensibilização e delicadeza - se conscientizassem do significado da ordem emocional para o progresso no sentido pleno da palavra, poderia cumprir uma missão de suma importância para a humanidade.

Essa missão apenas poderia ser cumprida se os elos de calor humano, fundamentados sobretudo na amizade e no amor à paisagem não forem perdidos. Estes são vivenciados também nas expressões culturais.

Pressuposto dessa valorização da ordem emocional ou da alma, porém, é a de que o espírito, com a sua capacidade de criação de imagens e determinação de propósitos, se oriente por valores mais elevados, tanto relativamente ao homem, como à natureza. Êle tem de deixar de presumir que apenas a ordem racional do espírito tem monopólio e deve dominar, subjugando e violentando a natureza. Também a ordem emocional, porém, deve espiritualizar-se, recuperando o calor na união com o espírito conduzido por valores humanizadores, ou seja, tornando-se ela própria espírito e o espírito alma.

A superação da ordem emocional ou a sua sobreposição violentadora pela ordem racional teria decorrido antes na Europa do que na Ásia e hoje, completando o processo racionalizador, calculista-econômico e tecnocrata, encontrar-se-ia em perigo também na América do Sul. Para Keyserling, em países dominados pela economia capitalista - mas também naqueles de ideologia marxista -  a ordem emocional já não desempenhava quase que nenhum papel. Também na América do Sul - e em particular no seu país mais hipersensível, o Brasil - havia o perigo do esfriamento e perda da alma.

Possível missão do Brasil: contribuir ao processo humanizador

A ordem de espírito racional e mecanicista é para o filósofo essencialmente não-humana. Onde ela penetra, surgem com o tempo, como reação, ressentimentos e ódio - sendo aqui, para Keyserling, o principal exemplo o ódio para com os capitalistas.

Uma valorização da sensibilidade, da ordem emocional, e da mulher „realmente feminina“, segundo Keyserling, podia contribuir muito mais para a solução de crises modernas do que resoluções de urgência tomadas por homens.

Na sua opinião, haveria uma similaridade entre o estado atual da humanidade e aquele da Provence da Idade Média, quando foram as damas da época que lançaram as bases de desenvolvimentos culturais. Naquela época, as mulheres teriam ensinado aos homens que compreendessem os postulados da gana, da delicadeza e da ordem emocional. E, com isso, o mundo ficou belo, dele nascendo o a cultura ocidental. (op.cit. 267)

Levantando a questão do progresso para além da situação do Ocidente atual, Keyserling viu o seu problema numa outra dimensão do que aquela de ideologias de progresso que partem de pressupostos e objetivos racionais. Essas exigências e esses mandatos da razão não servem para o ressurgimento da alma, que torna-se necessário por toda a parte.

O problema, segundo o filósofo, era visto de forma imprecisa, pois era tratado em categorias muito amplas, que consideravam globalmente a humanidade, enquanto que a ordem emocional vale sobretudo para o contexto mais próximo, para aquelas rêdes e pelo ambiente marcados por elos de calor.

Um pensamento dirigido a um ressurgimento de comunidades determinadas pelo calor da amizade e dos elos com o meio ambiente envolvente poderia ser apenas o de uma apokatatasis da esfera de sentimentos em si, daquela ordem emocional que tem as suas raízes vida primordial e que é alimentada pela sensibilidade. Esse caminho de progresso seria lento, mas necessário.

Se a crise econômica apenas podia ser obviamente vencida a partir da compreensão e análise racional e solucionada através da organização objetiva, e se a razão e a diligência podem criar novas bases para os problemas da vida, a principal problemática humana no sentido próprio do termo é aquela original e eterna das relações entre o espírito e a alma, do racional, intelectual, visualizado e do emocional, tornadas cruciais em tempos tão desumanizados e destruidores da natureza como os presentes.

Com base e no quadro da situação criada pela razão, deve-se construir um novo mundo determinado pela alma na sua relação com o espírito, como um mundo de real amor ao próximo e ao meio ambiente envolvente. Relações estreitas e próximas, círculos e rêdes pequenas serão decisivas: a relação de indivíduo para com indivíduo e para a natureza em amor, amizade, lealdade e respeito.(op.cit. 270)

Nessa possível missão da América do Sul, em particular do hipersensível Brasil, caberia segundo as „Meditações Sulamericanas“ à mulher um papel especial. Não porém, - nas elucidações de Keyserling -, da mulher que assume o papel da esfera do espírito que pensa estar no racional a única ordem, encarnando o espírito frio e agindo também ela de forma autoritária, violenta, ditatorial e terrorista, desumanizadora, mas sim daquela que se une com o espírito movido por valores humanizadores e de valoração da natureza, inserindo-se ela própria numa só unidade: Hieros gamos.

Tanto ou mais do que à mulher, porem, caberia ao homem o papel preponderante no processo de progresso espiritual e humanizador. Correspondendo êle à imagem conotada masculinamente da ordem do espírito que, racional, é frio, deve alcançar o seu calor atraves da fusão com a ordem dos sentimentos e emoções, a empatia com outros seres e com a natureza. Nesse estado é pleno de calor, tal como ar extremamente rarificado, tendo como corpo a água evaporada das alturas.

Aqui se teria o estado primordial de relações espírito/alma e alma/espírito na linguagem das imagens de fenômenos naturais, uma unidade que não é definida por polaridades - a do homem e da mulher que não se definem segundo atrações e complementaridades de opostos -, e que contraria colocações e posições pouco refletidas de teólogos e pastores relativas a fundamentações naturais e filosófico-religiosas de concepções e uniões.


De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“Ordem e Progresso: a ordem de idéias e imagens e a ordem emocional no progresso humanizador -  a alma em missão que poderia caber ao Brasil “
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 158/15  (2015:06). http://revista.brasil-europa.eu/158/Ordem_emocional.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne
Corpo consultivo - presidências: Prof. DDr. J. de Andrade (Brasil), Dr. A. Borges (Portugal)




 






















Coluna e título: Palacio do Catete RJ 2007; Texto: simpósio 2002 SP e Berlim 2014. Fotos A.A.Bispo, ©Arquivo A.B.E.