Maldição do ouro e o ouro de valores

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 158

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 158/7 (2015:6)



Maldição do ouro e o ouro de valores humanizadores
Condicionamentos psiquico-espirituais e possíveis reversões de processos

- insegurança, mêdo e fome originais na protoconsciência -



Sessão de encerramento de ciclo de estudos no Alasca 2015


 

A procura do ouro, a febre e as corridas do ouro e as suas consequências marcaram e marcam a história e o presente das Américas, como considerado sob diferentes aspectos no número anterior desta revista. (Veja) As reflexões então encetadas de forma contextualizada em diferentes regiões do continente teem aqui prosseguimento devido à atualidade da problemática.


O WWF do Brasil e o WWF da Alemanha, em eventos de consideráveis dimensões com a participação de brasileiros residentes na Alemanha pelo 7 de setembro de 2015, assim como no número 4 de sua revista, procuraram trazer à consciência a destruição da floresta amazônica transformada em campo de guerra de interesses, fazendo um apelo a políticos e à opinião pública a favor da proteção das áreas de reserva em perigo devido a projetos de lei. („Strasse ins Verderben“, Magazin WWF 4, 2015, 11-20).


As imagens e os dados trazem à luz a tragédia da destruição ambiental da Amazônia e suas consequências para o país e para o mundo causado por interesses econômicos determinados pela procura e obtenção de riquezas e que são apontados como incompreensíveis na sua irresponsabilidade para com o futuro.


Continuidade de um processo e necessidade de análises de seus fundamentos


Do ponto de vista histórico, essas decorrências sinistras, tristes e trágicas podem ser vistas como mais uma etapa ou manifestação de um secular processo determinado pela procura e exploração de ouro e outras riquezas da terra que marcou a história e o presente do continente.


Se nos dois últimos séculos foi sobretudo o rush do ouro na  América do Norte que se encontra mais presente na consciência por ter determinado a exploração, a ocupação e o futuro de regiões como a Califónia e sobretudo o Alasca, é na América do Sul e Central que a procura do ouro mais cedo se manifestou com a toda a sua intensidade.


O Eldorado na sua mistura de mito e realidade, a ganância de ouro dos conquistadores espanhóis, plena de atrocidades e que levou à destruição de antigas civilizações indígenas, os bandeirantes que se adentraram pelo interior do Brasil à procura de ouro e pedras preciosas e cujas entradas e bandeiras não deixaram de ser acompanhadas por atos questionáveis como a da escravização indígena, a época do ouro em Minas Gerais, que não foi só de brilho, deixando atrás de si territórios espoliadose a terra exausta, manifestam um fenômeno de que atravessa fronteiras, tanto espaciais como temporais: é transregional, transnacional e transepocal.


A análise dos pressupostos, das causas, do vir-a-ser, das decadências e das implicações dessas febres e corridas surge como de fundamental importância para países que tiveram a sua história tão profundamente marcada pelo ouro como o Brasil.


Diferentes caminhos têm sido trilhados na procura de elucidações, que não podem restringir-se a convencionais historiografias de regiões auríferas.


O ímpeto de posse de ouro pode ser entendido nas suas dimensões mais amplas, aplicando-se também a outras manifestações febrís do desejo alcance de riqueza, tais como a da borracha em fins do século XIX e início do XX, a do „ouro verde“ nas suas diversas acepções, ou a do „ouro negro“ do petróleo.


Essas dimensões amplas trazem à consciência a necessidade de análises mais profundas de impulsos e ímpetos que levaram a tais corridas e ações febrís do ponto de vista psicológico-cultural. Quais seriam os condicionamentos antropológico-culturais que poderiam explicar impulsos de tal força, dimensões e consequências, e que manifestam tantos fatores inconscientes e irracionais?


Fundamentos psíquico-espirituais e condicionamentos culturais


A atenção dirige-se aqui ao sistema de concepções e imagens no qual o homem se insere, nos seus mecanismos e impulsos intrínsecos. É a análise desse edifício cultural nas suas relações com a natureza e o homem na sua psique e consciência que promete esclarecimentos e luz em situações obscuras, inconscientes ou não-refletidas, e, assim, distância e libertação quanto a condicionamentos.


Esse intuito não é recente, pois marcou já há décadas, no Brasil e na Europa, a preocupação de pensadorese pesquisadores que se dedicaram a estudos demopsicológicos e que, em particular em círculos teuto-austríaco-brasileiros inseriram-se em correntes filosóficas das quais o conde Hermann Keyserling (1880-1946) foi o principal representante.


De todos os autores que se ocuparam com o ímpeto ao ouro e riquezas no Novo Mundo, foi Keyserling aquele que deu maior atenção deu às dimensões mais profundas da problemática em interações entre o vivenciado empiricamente na América do Sul e as próprias transformações no seu modo de ver a realidade. (Graf Hermann Keyserling, Südamerikanische Meditationen, 2a. ed., Stuttgart Berlin 1933 (1a. ed. 1932).


A sua obra, compreensívelmente estudada em particular em círculos de língua alemã no Brasil, é mais do que simples coleção de ensaios arbitrários como surge numa primeira leitura. Ela se revela sob muitos aspectos corresponder de fato à linguagem visual constatável empiricamente em tradições, ou seja, representa um reconhecimento - ainda que por diferentes caminhos - de estruturas e mecanismos de um edifício cultural de remotas origens que se manteve através dos séculos.


Pode, assim, contribuir a esclarecimentos relativamente a condicionamentos, primeiro passo a possíveis controles de impulsos e ações irrefletidas de uma problemática que supera os limites do Brasil e que diz respeito à Humanidade no seu todo.


As Meditações Sulamericanas do filósofo da Escola de Sabedoria de Darmstadt forneceram importantes impulsos a estudos e reflexões em relações Europa-Brasil desde o início do programa respectivo na Alemanha, em 1974/75. (Veja)


Nos ciclos de estudos desenvolvidos no Alasca em 2015, 40 anos após o início desses trabalhos, a temática da procura de ouro e riquezas nas suas negativas consequências para a natureza trouxe de novo à consciência a atualidade de análises de condicionamentos culturais que levam a tais febres e corridas alucinadas. Com isso, torna-se oportuno recordar pensamentos e constatações referentes ao ouro das Meditações Sulamericanas à luz dos aprofundamentos e diferenciações alcançados nos estudos euro-brasileiros nas últimas décadas.


Proto-consciência de fraqueza e insegurança, fome e mêdo primordiais


Keyserling vê a procura de posse de ouro e riquezas como expressão de um desejo de possuir em geral - do ter. 


Esse ímpeto do ter e possuir, e que se manifesta na procura de posse de ouro e riquezas são na sua argumentação derivadas de um estado original sentido como de falta ou perda de segurança, de consciência de fraqueza e da sensação de mêdo resultante, e que seriam primordiais na história de nações e no indivíduo.


É compreensível que sejam particularmente atuantes na América, pelo fato deste continente ter sido formado por homens em geral sem recursos, fugidos, exilados, expatriados, pobres colonos que abandonaram as suas terras premidos pelas necessidades e imigrantes. Atravessaram os mares e penetraram pelas terras não primordialmente por heroísmo ou idealismo, como valorizados na historiografia heroicizante, mas em estado de fraqueza, à procura de segurança, imbuídos de mêdo existencial e com fome ávida no sentido extenso do termo, que os levou a assumir riscos apesar da procura de segurança e do mêdo. Esse assumir riscos surge sob este aspecto como precedente à liberdade, sempre tão decantada em contextos de procuradores de ouro e riquezas, de garimpo e garimpeiros em todos os sentidos.


È assim uma fome primordial que leva à disposição a assumir riscos para saciá-la e para o assumir riscos, um enfrentar de inseguranças que contraria o desejo primordial de segurança. Essa situação leva ao mêdo, um mêdo original, conflitante com a fome primordial. Ímpetos de procura de segurança e a insegurança do assumir riscos encontram-se em tensão conflitante.


Mêdo original e fome original, procura de segurança e disposição ao risco nas suas tensões conflitantes encontram-se segundo essas elucidações nas profundezas menos reconhecidas, menos esclarecidas do homem, menos iluminada pela luz da consciência, ou seja, nas trevas do seu ser mais inferior, assim como, nas aproximações demopsicológicas, nos baixos de uma proto-consciência de povos.


O papel fundamental dedicado ao mêdo nas meditações e Keyserling evidencia-se no fato de dedicar já a segunda de suas meditações ao mêdo original. (op.cit. 35-56) Esse mêdo, porém, não pode ser entendido senão a partir da fome primordial que se encontra com êle em conflito.


A fome de ouro como expressão de uma fome insaciável e ilimitada


A fome de ouro é, nas suas meditações, expressão de uma fome insaciável original. Essa fome primordial é insaciável por ser ilimitada.


Se o comer tem os seus limites na aversão e nojo, se o beber na embriaguez e na idiotia, se o poder encontra o os seus limites na superação do concorrente ou inimigo, se a sexualidade tem os seus limites na impotência, a fome de ouro é, ao contrário, ilimitada. O ouro, quando é ganho, desaparece assim que é usado. Assim, a fome de ouro é tão infinita como o universo. Tratar-se-ia assim de um problema cósmico.


Refletindo sobre os conquistadores ibéricos nos primeiros séculos dos contatos entre a Europa e o continente americano da era dos Descobrimentos e da colonização, que na sua ambição desmedida de  ouro e riquezas praticaram crueldades e destruiram antigas civilizações, Keyserling  salienta o papel desumanizador da fome de ouro e riquezas como expressão da fome primordial.


Sendo um processo que teve continuidade através dos séculos e se mantém de forma trágica no presente, permanece vigente a sua natureza desumanizadora, não só do ponto de vista social, mas a de valores, o que se manifesta na destruição do meio ambiente e de culturas indígenas, na atrocidade que leva espécies animais à extinção.


Quantidade e não qualidade, mineralização do homem e desumanização


Trata-se, na procura do saciamento dessa fome que é insaciável, de quantidade, não de qualidade. Cada vez se deseja mais e o ganho sempre desaparece, pois é gasto ou roubado.


A alma do homem passa assim a ser marcada pela lei da quantidade, e da quantidade do não-vivo, uma vez que ouro é um mineral. Assim, segundo as Meditações, a alma do homem passa a ser determinada pela lei da quantidade morta.


Ter-se-ia, assim, um processo de uma „mineralização“ do interior do homem e uma desumanização através da frieza do metal.


Essa frieza mineral explicaria as ações de crueldade dos conquistadores espanhóis à época das Descobertas e de todos aqueles que penetraram e penetram pelo continente à procura de ouro e outras riquezas e praticam todo o tipo de desatinos e mesmo crimes.


Como a fome primordial leva ao enfrentar riscos para satisfazê-la, e risco significa uma atitude de liberdade relativamente ao impulso à segurança e ao mêdo, ela diz respeito a uma esfera não-material, aquela do imaterial, do espírito, do intelecto e da razão, uma vez que o espírito é livre, idéias e pensamentos vão e vem. Trata-se, porém, de um espírito de trevas e tenebroso, precedente à luz da consciência ou de tragicamente decaído em esferas ínferiores do desenvolvimento humano.


A frieza do metal expressar-se-ia segundo as Meditações no „cálculo frio“ dos homens de empresas, da economia, dos negócios e dos tecnocratas nas suas ações voltadas à procura de ouro e riquezas da terra, que,  sem escrúpulos éticos e sem sentimentos chegam a usar da violência para impor os objetivos que criaram por meios racionais, ou pretensamente racionais. Procuram dominar a realidade para concretizar o que foi imaginado ou criado por idéias ou pensamentos, julgando ser este o único caminho de progresso, a única „ordem“. Violentam assim a natureza, a terra, trazendo insegurança àquela esfera do homem e dos povos cujo ímpeto é ter segurança, fazendo surgir ou intensificar de forma dramática o mêdo.


A mineralização do interior do homem seria caracterizada por um esfriamento do espírito que, voltado ao ouro e minérios, passa a ser marcado pela quantidade, não pela qualidade. Esse processo leva à destruição e à auto-destruição, tanto de indivíduos, que se petrificam, como de nações.


Se esse espírito da fome primordial for mantido e cultivado, então dá-se mais cedo ou mais tarde um total esfriamento e mineralização do homem, chegando-se por fim à morte ou à soberania da morte.


Das Meditações ganha-se assim o quadro de um processo descendente, decadente ou de recaída em primitivismo e brutalidade determinado por fraqueza e insegurança de origens, fome primordial e mêdo que, se não for interrompido, leva à morte. Resultante desse processo seria o mal.


Consciência obtida na vivência de fraqueza, insegurança, fome e mêdo


Como em outras de suas meditações, Keyserling relaciona a observação empírica do presenciado na América do Sul com a sua própria experiência interior.


Foi durante sério adoecimento que, em estado de extrema fraqueza, vivenciou impulsos em si que levaram-no ao reconhecimento da vigência de uma esfera do interior do homem que era para êle desconhecida.


A experiência pessoal nessa situação liminar, em semi-consciência, quase que em delírio, foi fundamental para a constatação de que o homem, febril e sem forças, antevendo a morte, se compenetra da sua fraqueza, insegurança, sente fome de reassumir o domíno de si e é tomado de mêdo. Não consegue agir, mas encontra-se entregue, passivo.


O homem percebe que não é o que se encontra fora dele, mas também não é o seu interior, mas, nas suas bases primordiais, uma única passividade. Nessa situação sabe, - e toda a vida sabe no seu íntimo - que a fome é insaciável e que se encontra entregue ao poder dominante da terra. Tudo dá origem ou intensifica o mêdo. (op.cit. 38)


Psique que se contorce na terra - a imagem do minhocão no edifício cultural


A psique, que responde às influências do exterior através dos sentimentos, estes relacionados com as sensações do corpo, não pode recusar essas vivências primordiais, e, quando pergunta, não recebe resposta. Ela se sente presa, quer fugir e não pode, pois a sua existência depende daquilo que a prende. Ela encontra a saída do dilema apenas em contorções, tal qual uma larva ou minhoca se contorce na terra. Ela serpenteia nas profundezas do ínfimo do homem.


O mesmo poder-se-ia falar desse enorme minhocão na vida dos povos e comunidades em situações de falta de forças, de insegurança, de mêdo, de impotência. Com essas meditações, Keyserling colabora à elucidação da crença no minhocão, conhecido em várias partes do Brasil e discutido em colóquio sobre o ouro, garimpo e garimpeiros em Parati, em 2004, com base em pesquisas de campo de Martha Haug. (Veja)


Procura de tudo saber como expressão insana da fome primordial


A fome primordial, segundo as Meditações, é expressão de uma primeira vibração de vida autônoma do espírito em conflito com aquela da terra e, assim sendo, a insaciabilidade é um problema de origens, global, individual e coletivo, e mesmo cósmico. Todo o universo quer incorporar em si a vida, tudo devorar.


Também o anelo eterno do homem de compreender - como nas ciências - seria segundo Keyserling uma manifestação do querer devorar o universo. A fome de tudo saber, que não pode ser saciada, não seria assim apenas positiva, mas teria conotações negativas, pois diria respeito à quantidade, e não à qualidade, sendo própria de um estado primitivo de desenvolvimento espiritual, marcado por fraqueza, insegurança, fome e mêdo. A fome de tudo saber é insana, aquele que a mantém e cultiva é doente.


Não o tudo saber, o tudo devorar, mas a orientação do espírito segundo valores humanizadores no sentido pleno do termo surge como caminho para o desenvolvimento interior do Homem nas Meditações. Trata-se de um outro ouro do que aquele que leva à mineralização e à morte.


O ouro como símbolo de valor. O valor mineral e o ouro de valores espirituais


Nas suas meditações referentes ao ouro - no sentido amplo de riquezas em geral - Keyserling estabelece importantes diferenças entre a fome primordial, o desejo do ter e possuir nascido da insegurança e o mêdo no indivíduo e nos povos. Essas distinções são tratadas nas suas relações com o ouro em conotações de gênero.


O desejo de possuir, do ter, de posse, resultantes da procura de segurança do inseguro, da passividade experimentada em vivências liminares é tratado em considerações marcadas por uma imagem de mulher. O espírito tenebroso com que é tomada em insegurança, a fome, o mêdo primordiais e o ouro são considerados em imagens masculinas.


O ouro é símbolo por excelência de valor, valor é, porém, espiritual: o dar valor, o valorizar e o reconhecer valor são atos do espírito.


Neste sentido, Keyserling lembra da suposição de estudiosos da cultura da Antiguidade de que o ouro representaria sol fluido, algo divino, e, assim a criação espiritual. Essa suposição explicaria também o culto do ouro dos incas, para os quais o metal nada significava econômicamente. Essa concepção estaria de forma inconsciente e muito rudimentar vigente nos espanhóis que chegaram à América, de modo que os incas, confrontando-se com o fascínio extremo dos estranhos por ouro presumiram que o tivessem como Deus.


O ouro também pode ser considerado como um símbolo do que transmite vida, como imagem original do espiritual que transcende a terra e, assim, um poder mágico. Esse sentido mágico do ouro, segundo as Meditações experimenta um renascimento nos países capitalistas, onde um homem qualquer que se torna milionário passa a ser visto como grande homem como num passe de mágica.


O ouro, porém, é um mineral. Onde o mineral surge como valor máximo, a consciência de valor se adapta às normas do que é sem vida, morto. O culto do ouro no seu sentido material faz com que todos os outros valores passem a ser por êle determinados. Dessa situação resulta um círculo trágico que é designado como a maldição do ouro. Nesse círculo, o que não é vivo ou aquilo que precede ao vivo passa a ser determinante.

Quando a fome primorial se torna mêdo primordial, o que é possuído passa a tomar o indivíduo. Então dá-se mais cedo ou mais tarde a auto-destruição e, por fim, o predomínio da morte. O ser tomado se solidifica num pretenso mundo de segurança. E se a segurança se transforma em avidez, então toda a alma se mineraliza.

Este seria, para Keyserling, o caminho dos países capitalistas. Ali, o espírito da „mulher primorial de gana“ - (Veja), que é tomada pelo escurecimento de espírito que traz insegurança, e que procura possuir a todo custo, gerando a fome, o mêdo e o mal, determinaria cada vez mais a humanidade. Na impotência do homem vivo perante o ouro é que a fraqueza primordial da vida experimenta, segundo as Meditações, uma terrível renascença no presente

Esse caminho em direção à morte seria o destino desses países enquanto neles não passassem a ter como ouro não o ouro mineral, mas o ouro dos valores humanos ou os valores que permitem de fato uma humanização. Esses valores não eram aqueles do frio do pretensamente racional e autônomo, mas aqueles unidos o calor de sentimentos nas suas relações com o respeito e amor à terra.

O ouro atrai o homem que, se for ouro-minério, cai no mais inferior dos mundos. Ter-se-ia aqui o caso primordial da tentação. O desejo de segurança solidifica-se na sua forma mais primordial, em absoluta falta de sentimentos, e a fome primordial satisfaz-se em devorar-se a si própria, o que traz a morte.

Imagens no complexo Antiguidade/Cristianismo e tradições culturais

As Meditações revelam antigas concepções filosófico-naturais quanto a uma esfera marcada por falta, deficiência, vazio, necessidade, vácuo em contraposição a um polo de plenitude.


Nos estudos que procuraram melhor compreender, aprofundar e diferenciar as meditações de Keyserling desde o início do programa euro-brasileiro em 1974/75, procedeu-se a identificações de suas colocações com imagens conhecidas da antiga mitologia nas suas relações com a dinâmica dos elementos da filosofia natural. Esses estudos foram desenvolvidos em instituições de pesquisa a Antiguidade e das relações Antiguidade/Cristianismo em vários centros europeus, podendo-se aqui salientar o Museu Romano-Germânico de Colonia.


Constatou-se, nesses estudos, que as colocações do filósofo - também corroboradas com as suas referências à esfera das lutas titânicas, coincidem com as narrativas mitológicas relativas a Gaia e ao desenvolvimento descendente resultante da sua união com Urano, à interrupção dessa união por Kronos/Saturno, a geração de Hades/Pluto e suas consequências.


O motivo do escurecimento do espírito através do direcionamento à matéria pode ser visto em Urano, o motivo da fome primordial surge na imagem de Kronos/Saturno, que devorava os seus próprios filhos, e o motivo do mêdo no senhor da tenebrosa esfera subterrânea e, assim, das riquezas da terra. A insegurança primorial que leva ao desejo do ter e a geração desse espírito material, da fome e do mêdo encontra-se em Gaia/Gê.


Todo esse processo descendente da narrativa mitológica desenrola-se antes do nascimento de Zeus/Jupiter de Rhea/Magna Mater, o que se dá assim nessa situação mais inferior de trevas e frio, dando origem ao gradual caminho revertedor de um processo ascendente. Nessa nova fase, recapitula-se o processo anterior sob nova luz, tomando Demeter/Da o papel de Gê, sendo as demais forças suplantadas por outras divindades. Como é a partir dessa nova situação que os desenvolvimentos devem ser considerados, o processo anterior diz respeito à memória de origens.


Como Keyserling sempre parte nas suas meditações do relato bíblico da Criação, foi esse considerado com particular atenção a partir de textos patrísticos sobre a „obra dos seis dias“. As Meditações partem fundamentalmente do terceiro dia da Criação (Veja), ou seja, do surgimento da vida na forma do revestimento vegetal na terra ainda húmida das águas que a cobriam e que agora se movimentam e correm para o mar.


As suas raízes encontram-se nas profundezas da terra coberta por águas paradas ou por água misturada com a terra no humo, na esfera das travas nas quais surgiu a luz no primeiro dia da Criação. Todas as considerações do filósofo dizem respeito assim à situação da terra na qual despontou primeiramente a luz, considerada por êle no sentido da situação fria na qual despontou a luz da consciência e que foi reconhecida, assim, como de trevas.


Imagens de remotas proveniências vigentes em tradições brasileiras


Essas relações entre concepções da antiga filosofia da natureza, do relato bíblico e das narrativas mitológicas tornam-se compreensíveis se consideradas nas suas relações com o ciclo do ano natural no hemisfério norte.


É a partir dessas relações que se pode ler adequadamente a linguagem visual vigente em tradições lúdicas e de culto do Brasil e em outros países latino-americanos. No decorrer dos trabalhos antropológico-culturais desenvolvidos em instituições de estudos teológicos, de história das religiões e de etnologia religiosa, considerou-se e discutiu-se, em diferentes ocasiões, em conferências, cursos, colóquios e simpósios, a vigência na tradição brasileira das concepções apresentadas nas Meditações no aprofundamento e diferenciação por que passaram com o desenvolvimento dos estudos.


Analisadas e discutidas foram os anti-tipos dos tipos considerados nas Meditações vigentes em tradições religiosas, em particular aqueles relativos a Santa Ana e Lázaro. O motivo da riqueza é tematizado na hagiografia de São Joaquim, marido de Ana, mas também, no seu contrário, nos pobres do culto de Lázaro. Também nas Meditações considera-se que o ser pobre no sentido de estar livre dessa fome de riquezas da terra, mas rico de valores espirituais deveria ser um privilégio.


Os tipos vivem sobretudo nas imagens que, nos cultos „afro-brasileiros“ ou na santeria são designadas como de Nanã e Obaluaiê/Omulu, seja nas representações da primeira na sua insegurança em terreno pantanoso e de águas paradas, seja nas representações do segundo nos seus aspectos assustadores, de mêdo e morte, com os seus motivos do comer e do ter riquezas.


A maldição do ouro e os caminhos para o ouro dos valores ético-humanos na cultura


É signicativo constatar que no próprio edifício cultural que se manifesta da forma mais evidente em concepções e imagens religiosas, o ouro, a fome e a febre do ouro encontram-se presentes na linguagem visual, em práticas e expressões. Vigentes se encontram também a consciência da situação de trevas e das consequências negativas dessa procura de valores materiais e que leva por último à morte. Vigora porém - e isso é o mais importante - a consciência da necessidade de substituições de valores para que se possa interromper o caminho de destruição e iniciar um processo ascendente humanizador.


Esse processo não pode ser feito acentuando-se a recaída nas trevas da gana através de uma acentuação do ter e possuir prosperidade material, nem em desenvolvimento imaterial de idéias e projetos que em autonomia relativamente à natureza a domina e destroi, mas apenas com o direcionamento da esfera imaterial do homem e da sociedade ao ouro espiritual de valores éticos e emocionais no amor e união com a natureza e outros seres viventes.


Há a possibilidade, portanto, de encontrar no próprio edifício cultural bases para a reversão de direcionamento dos trágicos caminhos da maldição do ouro e da procura de riquezas que destroem o patrimônio natural e, por fim, o humano. Pré-condição para essa reversão em direção ao progresso humanizador é, porém, estudar e valorizar de forma esclarecida esse patrimônio cultural e psíquico-espiritual.


De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“ Maldição do ouro e o ouro de valores humanizadores. Condicionamentos psiquico-espirituais e possíveis reversões de processos - insegurança, mêdo e fome originais na protoconsciência“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 158/7 (2015:06). http://revista.brasil-europa.eu/158/Ouro_de_valores.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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