Evolução no pensamento teuto-báltico

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 158

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 158/2 (2015:6)




Qual é a concepção correta da natureza viva?

Evolução no pensamento científico teuto-báltico em relações Leste/Oeste:
Alexander Friedrich Keyserling (1815-1891) e Alexander von Humboldt (1769-1859),
Karl Ernst von Baer (1792-1876) e Karl Friedrich Burdach (1776-1847)


Ciclo de estudos euro-brasileiros em Tallin




 
Tallin. Foto A.A.Bispo 2014


Tallin. Foto A.A.Bispo 2014
O significado do Báltico para os estudos de processos culturais em relações Europa/Brasil é muito maior do que se supõe à primeira vista.


Essas relações foram consideradas com especial atenção já no início do programa de estudos euro-brasileiros em Lüneburg, Alemanha, em 1974/75, possibilitados pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (Deutscher Akademischer Austauschdienst, DAAD) e apoiados pelo Goethe Institut de Lüneburg. (Veja)


A passagem dos 40 anos dessas reflexões e estudos foram recordados em Lüneburg, em 2014. (Veja) Essa visita foi precedida por ciclos de estudos em países do Báltico no ano anterior. (Veja)


O interesse por um aprofundamento dos conhecimentos de relações entre o Báltico e do Brasil e, em geral, de relações Oeste-Leste foi incentivado pelo contato com personalidades de Lüneburg que tinham elos de vida com países bálticos, exilados da Prússia do Leste em consequência da Segunda Guerra,  salientando-se aqui Volker Gwinner (1912-2004), erudito, regente, organista e compositor, professor da Escola Superior de Música de Hannover. (Veja)


Nesses encontros, tomou-se consciência da necessidade de maior atenção a esse mundo submerso ou desaparecido devido às guerras mundiais, que levaram à emigração de alemães e à quase extinção de uma tradição secular da presença alemã nessas regiões.


Mais do que estudos de imigração teuto-báltica ao Brasil, ainda em estado incipiente devido às dificuldades da documentação, a atenção foi dirigida a correntes de pensamento, das ciências e da filosofia no contexto teuto-báltico que marcaram concepções e desenvolvimentos teóricos de relevância para o Brasil.


Não se pode esquecer que a antiga Prússia do Leste, em particular Königsberg, assim como outras regiões marcadas pela presença alemã do Báltico nos seus elos com São Petersburo foram centros universitários, culturais e de pesquisa que desempenharam um papel de primeira grandeza na filosofia e nas ciências do passado, estreitamente relacionados com instituições e personalidades da Europa Central e Ocidental.


Tallin. Foto A.A.Bispo 2014

História das ciências e do pensamento teuto-báltico e a música


A atenção dirigida a processos culturais do programa euro-brasileiro levou à consideração da história das idéias e de pesquisas voltadas a desenvolvimentos nas suas relações com a música.


Nessas intenções, lembrou-se de um filósofo de formação científica teuto-báltico que adquiriu renome no passado pela sua obra psicológico-cultural dedicada à América do Sul e que tinha sólida formação musical, era estudioso e admirador da obra de J.S.Bach (1685-1750): o conde Hermann Keyserling (1880-1946). Conhecido e estudado nos meios de língua e cultura alemãs do Brasil, em particular em círculos da Sociedade Bach de São Paulo, (Veja) era também conhecido em Lüneburg através da sua obra Meditações Sulamericanas. (Graf Hermann Keyserling, Südamerikanische Meditationen, 2a. ed., Stuttgart Berlin 1933 (1a. ed. 1932).


Essas Meditações, que relacionam observações empíricas, demopsicologia, auto-análise do observador e interpretações da evolução do homem nas suas relações entre natureza animal e espírito, utiliza de metáforas musicais. Keyserling fala de „melodias de vida“, tratando-as nas suas diferenças quanto a configurações de vida segundo as suas determinações por uma ordem do espírito ou uma ordem emocional e, em relações de gênero, de homens e mulheres. A problemática das relações homem-mulher são refletidas em termos de melodias justapostas em suite sem pontes entre si ou em sinfonias de vida. 


Essas comparações metafóricas servem para melhor elucidar colocações relativas a diferentes desenvolvimentos de vida de indivíduos e povos. Com a predominância da „vida original“, orgânico-psíquica vigente nas profundezas do interior do homem, a vida tende a ser uma sucessão discontínua e sem nexo de espaços fechados no tempo, melodias sem pontes entre si, e essa situação caracterizaria a América do Sul.


Diferentemente, um predomínio da esfera do espírito levaria a simultaneidades de melodias e a desenvolvimentos da linha melódica em coerência e através e pontes como numa obras sinfônica de grandes proporções.


Também na prática da „Escola da Sabedoria“, por êle fundada em Darmstadt em 1920, concepções musicais desempenharam papel relevante, falando-se em „orquestrações“ de pensamentos no convívio e nas interações de diferentes pensadores, escritores, filósofos e teólogos.


O uso de concepções musicais adquire múltiplas dimensões e funções, psicológicas, demopsicológicas, filosófico-naturais, de interpretação da evolução do homem e da humanidade, da análise de desenvolvimentos históricos e de processos culturais do presente são de significado para o desenvolvimento de uma Músico-Antropologia, e assim já consideradas nas suas linhas geraisquando da introdução da área de Etnomusicologia na Licenciatura em Música e Educação Artística em São Paulo, em 1972.


O próprio Keyserling revela na sua obra o papel da música na sua formação, na sua consciência, no seu modo de sentir e pensar, salientando Richard Wagner (1813-1883) - que teria fornecido um „tom básico“ -, mas sobretudo J. S. Bach  nos seus corais.


Precedentes teuto-bálticos das „Meditações Sulamericanas“


Tallin. Foto A.A.Bispo 2014

Ainda que Keyserling tenha criado após a Primeira Guerra a sua Escola da Sabedoria em Darmstat, cidade de importância pela sua vida musical, marcada pelas intensas atividades de Willem de Haan (1849-1930), mestre do Grão-Duque Ernst Ludwig (1868-1937), também este compositor, as suas referências à música na compreensão de processos fisiológico-psíquicos e psíco-espirituais do homem, dos povos, na história e no presente inseriram-se em correntes de pensamento científico-natural mais remotas e que remontam à sua formação báltica.


Keyserling, teve a sua formação escolar na Estônia, após realizar estudos universitários em Genebra, em 1898/99, retornou a Dorpat, na Estônia, onde prosseguiu os seus estudos nessa tradicional universidade, uma das mais importantes do Báltico, principal centro do pensamento teuto-báltico.


Não podia, assim, como descendente de família de antigas tradições, deixar de inserir-se na tradição dessa universidade. Ainda que posteriormente tenha desenvolvido estudos em Heidelberg e em Viena, formano-se em Geologia, vivendo em Paris de 1903 a 1906 e em Berlim, de 1906 a 1908, o que determinou a sua atenção a relações França/Alemanha, manteve-se um intelectual profundamente vinculado à tradição teuto-báltica, ciente de sua estirpe aristocrática e de seus elos histórico-geográficos com esse contexto da cultura alemã em região afastada, de identidade própria.


A obra que lhe deu renome, o „Diário de Viagem de um Filósofo“ (Reisetagebuch eines Philosophen, 1919, 8a. ed. Munique/Viena: A. Langen-G. Müller, 1980), foi escrito em junho e 1914, pouco antes da eclosão da Primeira Guerra. A obra devia ter sido lançada em agosto daquele ano, o que foi impedido pela declaração de guerra, interrompendo-se a sua comunicação com a editôra até o momento da ocupação alemã da Estônia. Em 1918, na sua residência senhorial em Rayküll, terminou a obra, revendo os capítulos dedicados à América e a Rayküll, escritos durante a guerra.


Até 1914, Keyserling teve uma orientação tão voltada ao Oriente que não sentiu-se em condições de apresentar-se nela como pensador do Ocidente europeu, como declara nas palavras que antecedem a edição do Diário. Após a Guerra, em contexto político-cultural totalmente diverso, tendo perdido a sua terra natal e suas propriedades, exilado na Alemanha, recomeçou novamente, sendo a sua obra desde então renovada e mesmo rejuvenescida. Nas suas palavras, com êle deu-se o fato de que apenas há um progresso do homem no sentido de interiorização.


Esses conhecimentos tratou em obras como „Conhecimento criador“ e „Ressurreição“, „Homens como imagens“, sendo que o „Diário de Viagem“ teria representado o que fora antes das „Meditações Sulamericanas“. Nesse Diário, não se esboçava uma visão do mundo teórica, mas antes deixava-se antever uma situação de consciência alcançada sob o pano de fundo de problemas familiares na terra natal.


Apesar dessa mencionada cisão na sua visão do mundo e obra causada pela guerra, muitas colocações das Meditações Sulamericanas revelam a sua formação obtida em meios teuto-bálticos da Estônia.


O estudo dessa tradição de pensamento leva ao avô de Hermann Graf Keyserling, o conde Alexander Friedrich Keyserling (1815-1891). Nascido na Letônia, geólogo, geógrafo e paleontólogo, de renome na história alemã das ciências que se inscreve na tradição de pensamento de Karl Ernst von Baer (1792-1876), biólogo, antropólogo, geógrafo nascido na Estonia e, este, por sua vez, naquela de Karl Friedrich Burdach (1776-1847), fisiólogo formado em Leipzig e professor de anatomia em universidades do Báltico.


A música na antiga Reval e a formação cultural de cientistas teuto-bálticos



Em visita à catedral de Tallin, lembrou-se que Karl Ernst von Baer teve a sua formação na escola catedralícia, ali estudando até 1810, o que pode explicar o significado da música no seu pensamento, do seu meio e de outros cientistas teuto-bálticos, como Keyserling.


O significado da música já no passado medieval da Estônia manifesta-se nas representações pictóricas e plásticas da Igreja do Espírito Santo, remontante ao século XIV. Nessa igreja tiveram lugar as primeiras pregações na língua do país à época da Reformação, e ali surgiu o primeiro livro em estonio. (Veja)


Uma placa na fachada da antiga escola de fidalgos e da catedral de Reval, hoje Tallin (Riiter-und Domschule zu Reval) lembra a antiga tradição dessa instituição de ensino. Ela foi criada após a formação do Capítulo da catedral de Nossa Senhora, em 1240. Em 1319, obteve do rei da Dinamarca direitos exclusivos de ensino de filhos de cavaleiros e cidadãos. Em 1756, tornou-se em academia de aristocratas sob a tutódia da nobreza estoniana, servindo à preparação de jovens à universidade. Muitos dos mais renomados pensadores teuto-bálticos ali obtiveram a sua formação.


O seu significado nas primeiras décadas do século XIX levou à construção de um novo edifício para a escola, em 1840, que é aquele ainda hoje existente. Nas décadas seguintes, a escola continuou a ser centro de formação de jovens de língua alemã, permanecendo fechada durante a obrigatoriedade do ensino em russo à época a russificação, em 1893, reabrindo em 1906 para terminar apenas com o exílio forçado dos teuto-bálticos da Estonia, em 1939.


Entre as personalidades que passaram por essa escola ou nela ensinaram distinguiu-se Philipp Spitta (1841-1894), musicólogo de extraordinário significado para a história do movimento Bach no século XIX, e cujo nome e obra foram constantemente lembrados na Sociedade Bach de São Paulo, ainda que esta se orientasse sobretudo por Bernhard Paumgartner (1887-1971).


K. E. von Baer: da escola catedralícia à medicina na Universidade de Dorpat


Após ter obtido formação na escola de nobres e da catedral na Estônia,  Karl Ernst von Baer passou a estudar medicina na tradicional Universidade de Dorpat, a mais antiga da Estônia (Universidade Tartu).


Essa instituição remontava à Academia Gustaviana, fundada em 1632 pelo rei da Suécia Gustav II Adolf, tendo sido precedida, durante a época de presença polonesa, e assim de predomínio católico, por um ginásio de jesuitas. Também denominada de Academia Gustavo-Carolina (1690-1719), foi reinstituida em 1802 como Universidade Imperial de Dorpat sob o Czar Alexandre I (1777-1825).


Essa revitalização deu-se por empenho da Ordem de Cavalaria Teuto-Báltica, sendo o seu primeiro reitor o físico Georg Friedrich Parrot (1767-1852), formado em Königsberg, o que indica o papel dado às Ciências Naturais na instituição. Ainda que sob o domínio da Rússia e tendo como objetivo a formação de profissionais, em particular médicos para o Império Russo, a universidade foi instituição de língua alemã, na qual estudaram e ensinaram sobretudo teuto-bálticos e russo-alemães da burguesia e da aristocracia.


Como indicado na própria tese de doutoramento de Parrot - na qual tratou do papel da Física e da Química na Medicina - a orientação da universidade luterana de Dorpat distinguiu-se pelo interesse particular pela natureza nos seus aspectos físico-quimicos, pelos estudos médicos, de fisiologia, anatomia, da pragmática de causas e de tratamento de doenças, sempre porém marcados pela preocupação com as relações entre o desenvolvimento científico com bases experimentais e a Teologia.


Isso explica, assim, o fato de que cientistas-naturais como Karl Ernst von Baer  e outros a tradição teuto-báltica em que se insere Hermann Keyserling terem-se preocupados com questões de espírito, distanciando-se de correntes de pensamento das então particularmente atuais teorias e hipóteses evolutivas, vistas como mecanicistas e unilaterais na sua racionalidade. Se por um lado salientavam a necessidade de consideração de uma esfera do espírito na evolução, por outro criticavam o domínio exclusivo do racional.


Karl Ernst von Baer doutorou-se em 1814 sobre doenças endêmicas da Estonia, um trabalho no qual já manifesta o seu interesse em considerar doenças nas suas dependências não só com o contexto natural, a vida e a alimentação, como também com características particulares dos habitantes da Estonia. Também esse direcionamento de interesses pode ser seguido em linhas de continuidade que chegam às Meditações com as suas referências a doenças em relações com a natureza e com as características do sulamericano.


Estudos de desenvolvimentos fisiológicos e processos evolutivos na Alemanha


Foi na Alemanha que Karl Ernst von Baer passou a interessar-se mais intensamente por desenvolvimentos e processos evolutivos. Após realizar estudos em Viena, teve como mentor o médico e professor de Fisiologia, Patologia, Embriologia e Anatomia Comparada Ignaz Döllinger (1770-1841), em Würzburg. Com isso, Karl Ernst von Baer, que veio do meio luterano do Báltico, passou àquele profunamente católico da Baviera. Basta lembrar que o filho de Döllinger, Johann Joseph Ignaz Döllinger (1799-1890), foi um dos mais destacados teólogos católicos da sua época, influente na política eclesiástica, opositor das correntes anti-modernistas e reacionárias de combate ao desenvolvimento do pensamento científico que se estabeleceram no Concílio Vaticano I.


Também com Döllinger, agora em meio católico, confrontou-se Karl Ernst von Baer com o campo de tensões entre a pesquisa experimental aplicada em medicina compreendida sobretudo como ciência natural, a Anatomia e a Embriologia, e a tradição teológica da Criação como fixada no relato bíblico da Genesis.


Docência e pesquisa em Königsberg e na Rússia - Anatomia, Zoologia e Antropologia


A sua entrada na carreira de docência universitária deu-se em 1816, com o seu chamamento a Königsberg por aquele que tinha sido o seu mentor de estudos, Karl Friedrich Burdach. Ali tornou-se professor extraordinário e, a seguir, professor titular de Zoologia e de Anatomia.


Dando continuidade no Báltico aos estudos embriológicos que desenvolvera com Döllinger na Baviera, Karl Ernst von Baer  empenhou-se em especial no conhecimento do desenvolvimento e a história evolutiva de peixes, anfíbios, répteis e mamíferos, descobrindo, em 1826, o óvulo de mamíferos e do homem, o que é considerado como sendo a sua maior contribuição à ciência. (De ovi mammalium et hominis genesi, Lipsiae, 1827)


Karl Ernst von Baer demonstrou que o desenvolvimento  embrional de animais progredia de formas gerais a características diferenciadas, típicas da espécie, uma constatação que teria repercussões mais amplas, antropológicas e filosóficas como exemplifica o pensamento do teuto-báltico Hermann Keyserling nas suas Meditações Sulamericanas, onde se manifestam em reflexões sobre o cunho anfíbio, serpentuoso de sulamericanos e a sua reptibilidade.


Nessa linha de preocupações, Karl Ernst von Baer publicou, em 1828, um trabalho „Sobre a história da evolução dos animais“, em Königsberg, lançando bases para o desenvolvimento da Embriologia comparada.


Fisiologia e Filosofia da Natureza do Romantismo: Karl Frierich Burdach (1776-1847)


Na consideração da corrente de pensamento e de pesquisa em que se inseriu Karl Ernst von Baer e outros teuto-bálticos não se pode deixar de emprestar particular atenção ao  principal mentor e protetor de Karl Ernst von Baer, Karl Friedrich Burdach, formado em Medicina e Filosofia em Leipzig, onde, posteriormente foi Professor de Anatomia, Fisiologia e Medicina Legal.


Como pensador, Burdach foi marcado pela filosofia de Friedrich Wilhelm J. Schelling (1775-1854), um dos maiores vultos da Filosofia da Natureza das primeiras décadas do século XIX. Dirigindo a atenção ao inconsciente esse pensar filosófico-natural foi de significado para o desenvolvimento da análise psicológica, celebrado pelas gerações de jovens românticos. Foi, porém, criticado na sua filosofia por representantes das ciências naturais. Assim, Burdach, também festejado por jovens como Karl Ernst von Baer, um de seus principais discípulos, enfrentou críticas de seus colegas na universidade de Königsberg. Êle - e Karl Ernst von Baer - situaram-se numa posição intermediária marcada por tensões entre a ciência baseada em procedimentos empíricos e o pensamento filosófico-natural.


É sob o pano de fundo dessa tradição de anelos de relacionamento entre o constatado empíricamente e a filosofia a natureza, entre os estudos científico-naturais da evolução e o relato bíblico da Criação, assim como da filosofia do inconsciente e da análise de processos psíquicos que se compreende o procedimento de Hermann Keyserling nas Meditações Sulamericanas.


A questão da geração na Fisiologia e conceituações de homem e mulher


Há um outro aspecto de importância no procedimento do autor das Meditações Sulamericanas que pode ser entendido à luz dessa corrente de pensamento marcada por relações entre ciências empíricas e a Filosofia da Natureza: o do uso de concepções e imagens de gênero e de relações entre o homem e a mulher.


A interpretação de tipos, formas e processos do interior do homem e da psicologia de povos segundo sexos e suas relações surge, à luz dessa tradição, mais do que simples expressão de pensamento e recursos metafóricos, uma vez que diz respeito à uma tradição de décadas do debate científico-natural.


Esse fato pode ser constatado na obra de Burdach dedicada à Fisiologia como ciência experimental, publicada em 1835 e na qual atuaram Karl Ernst von Baer e o zoólogo

Henrich Rathke (1793-1860). (Die Physiologie als Erfahrungswissenschaft, 2a. Aufl. Leipzig: von Leopold Voß, 1835)


Na parte dedicada ao processo de geração de vida, após tratar do processo do instinto sexual de animais, Burdach, passando a tratar do homem,
dedica extensas considerações ao amor nas suas diferenças entre homens e mulheres. No amor manifestar-se-ia o caráter do gênero em traços gerais.


Muitos das concepções que surgem inicialmente como estranhas nas Meditações Sulamericanas encontram-se já aqui tematizadas.


Entre elas, a passividade da mulher, sendo aqui apresentada como aquela que vê no homem o representante de „tudo o que lhe falta para a compleição de sua determinação“, precisando esperar ser amada.


O homem tem orgulho de sua potência, a mulher procura impressionar através da beleza e da graça. A mulher tem orgulho da força do homem e quer vê-la reconhecida por todos, enquanto que o domina através do sentimento.


O amor do homem é dirigido mais ao externo, material, à aparência exterior e ao prazer sensual, a mulher, ao contrário, a características internas. Ela precisa poder respeiitar o homem se sente feliz com a sua grandeza intelectual ou moral, o seu prestígio social ou a sua aptidão. Através do impulso de manter a humanidade, quer duas coisas: a aliança de corações e rebentos. 


O impulso sexual masculino não é tanto o da reprodução, mas mais o do meio para tal, Como o homem ama de forma menos pura, vê no amor mais o exercício de sua potência. O instinto natural da mulher é o de resistir e atrair, de fugir para entregar-se. O homem pode até mesmo ter outros casos amorosos, desde que a mulher acredite possuir ainda o seu coração. Só quando o sentimento é profundamente ferido é que surge vingança colérica. O amor do homem é mais inconstante, pois é mais material, e como o impulso sensual termina com a satisfação, tende a ser determinado por novos amores. Ao contrário, o amor é o ponto central da natureza da mulher, nele encontrando a compleição todas as suas disposições. (op.cit. 414-417, §254-§ 255)


Com palavras modificadas, essas colocações da Fisiologia de Burdach podem ser encontradas nas Meditações Sulamericanas, aqui porém sendo apresentadas como fundamento científico de constatações empíricas e aplicadas às análises de relações espírito/alma.


Das Ciências Médicas à Geografia e Antropologia


Desenvolvendo múltiplas atividades para a Academia das Ciências de S. Petersburgo, Karl Ernst von Baer chegou a ser conselheiro do Ministério da Educação da Rússia, dirigindo também os seus interesses à Geografia e à Antropologia.


Nessas áreas, realizou expedições e pesquisas de campo na Rússia, na Escandinávia e no Báltico. Foi um dos fundadores da Sociedade de Geografia da Rússia, da primeira revista russa de Ciências Naturais e organizador e diretor do primeiro Congresso e Antropólogos na Alemanha, em Göttingen, em 1861, sendo um dos responsáveis pelo periódico Archiv für Anthropologie.


Também aqui constata-se a inserção do autor das Meditações Sulamericanas numa corrente da história das ciências dos alemães do Báltico. As concepções científico- e filosófico-naturais, de fisiologia e de análise psicológica são aplicadas em contextos geográficos determinados, nele considerando-se processos evolutivos no campo de tensões entre natureza e espírito e nele procedendo-se a análises demopsicológicas.


O „Alexander von Humboldt“ do Báltico segundo o conde Alexander F. Keyserling


Em preleção à memória de Karl Ernst von Baer, Alexander Friedrich Keyserling demonstrou a amplidão de ses interesses pelas ciências naturais em conferência para a Sociedade Literária de Reval em 1876, quando tratou da questão da conceituação da natureza viva.


Para Alexander Keyserling, em toda a literatura alemã relativa ao campo científico-filosófico, os textos e as conferências de Baer apenas podiam ser comparadas com as de Alexander von Humboldt (1769-1859) quanto à amplidão de horizontes e clareza iluminada do edifício de pensamento(Welche Auffassung der lebenden Natur ist die richtige?, Gedächnisrede auf Karl Ernst von Baer, Separata do Revaler Beobachter, Reval 1892).


Karl Ernst von Baer foi por êle lembrado como um dos cientistas que mais se tinham destacado nos debates desencadeados pela Teoria da Evolução.


O que o diferenciava dos Darwinistas era primeiramente o método. Baer - e também Alexander Keyserling - partiam do observável empiricamente, enquanto que os Darwinistas tiravam conclusões relativas a transformações que olhos humanos não podiam observar, estabelecendo contextos causais a partir de indícios.


As principais diferenças entre Baer e os Darwinistas eram porém sobretudo filosóficas. Para Baer, também o tipo e as disposições, juntamente com as circunstâncias e formação co-determinavam o homem.


Proximidade a Louis Agassiz (1807-1873) e consideração da natureza espiritual


Como filósofo-natural, Baer aproximava-se de Louis Agassiz (1807-1873), o cientista de tanto significado ao Brasil. (Veja)


Através do pensamento crítico e no esforço de não abandonar o campo da experiência, Baer ultrapassou a esfera da Filosofia da Natureza.


O seu objetivo era o de considerar a natureza espiritual do homem nas suas relações com o corpo e com o todo do mundo. A sua desconfiança quanto ao pensamento abstrato manifestava-se na sua afirmação de que a razão tudo podia demonstrar daquilo que se desejasse.


Apesar de sua distância relativamente a conclusões filosóficas, Karl Ernst von Baer permaneceu fiel a seu direcionamento espiritualista.


Comparações de fenômenos da natureza animal com a música


Alexander F. Keyserling salienta o significado da música no pensamento de Karl Ernst von Baer. Considerando a concepção correta de Natureza, os tipos, graus ou ritmos do reino animal seriam pensamentos da Criação, comparáveis com harmonias e sequências melódicas de uma peça musical, a serem fixadas através da notação, e expressas por sons, por processos físicos que, na sua essência, eram espirituais.


Alexander Keyserling baseia-se nessa menção provavelmente na conferência proferida por Karl Ernst von Baer em St. Petersburg, em 1860. Von Baer afirmara então que nos organismos, as partes, segundo o tipo e o rítmo do respectivo processo de vida, são construidas através de sua atuação, de modo que não podem servir a outro processo de vida. Por isso, acreditava que, comparando os diferentes processos de vida com pensamentos musicais ou temas poderia chamá-los de pensamentos da Criação que os corpos edificam por si. O que se chama na música harmonia e melodia, é aqui tipo (conjunto das partes) e rítmo (sucessão de formações).


„In den Organismen sind die einzelnen Theile derselben nach dem Typus und Rhythmus des zugehörigen Lebens-Processes und durch dessen Wirksamkeit gebaut, so dass sie einem andern Lebens-Processe nicht dienen können. Deswegen glaube ich die verschiedenen Lebens-Processe, mit musikalischen Gedanken oder Thematen sie vergleichend, Schöpfungsgedanken nennen zu können, die sich ihre Leiber selbst aufbauen. Was wir in der Musik Harmonie und Melodie nennen, ist hier Typus (Zusammensein der Theile) und Rhythmus (Aufeinanderfolge der Bildungen). („Welche Auffassung der lebenden Natur ist die richtige? Und wie ist diese Auffassung auf die Entomologie anzuwenden?“. Reden gehalten in wissenschaftlichen Versammlungen und kleinere Aufsätze vermischten Inhalts. Erster Theil: Reden. St. Petersburg: H. Schmitzdorff. (p. 237-284)

I

Também no texto sobre a finalidade nos corpos orgânicos, de 1886, afirmou que seria necessário que tipo e rítmo da vida não sejam considerados como resultados químicos, mas como seu condutor e guia, assim como um pensamento ou salmo procura as palavras e as ordena, para tornar-se perceptível, não sendo, porém gerado pelas palavras segundo o seu valor próprio e impulsos.


„Es ist nothwendig, (...) dass man Typus und Rhythmus des Lebens nicht als Ergebniss des Stoffwechsels betrachte, sondern als dessen Leiter und Lenker, wie ein Gedanke oder Psalm wohl die Worte sucht und ordnet, um sich vernehmbar zu machen, nicht aber aus den einzelnen Wörtern nach deren eigenem Werth und Streben erzeugt wird.“ („Über Zielstrebigkeit in den organischen Körpern insbesondere“, 1886, ibidem.


Crítica aos Darwinistas devido à não-consideração da esfera psiquico-espiritual


A não consideração do espiritual pelos Darwinistas mais radicais parecia a Baer insustentável e contrária à sua conceituação teleológica de uma finalidade na Natureza.


Karl Ernst von Baer ão colocava em dúvida o Logos, e a questão se este era imanente ou projeção do pensador preocupou-o até o fim da vida, não podendo, porém, chegar a uma concepção filosófica que o satisfizesse.


A história da natureza seria apenas a história da progressiva vitória o espírito sobre a matéria. Aqui residiria o pensamento fundamental a criação, e, para atingir o mesmo, faz com que indivíduos e séries generativas desapareçam e que o presente se levante sobre a estrutura de um imenso passado.


Muitas dessas colocações de Alexander F. Keyserling sobre von Baer, apontam assim caminhos para a leitura adequada de reflexões expostas nas Meditações Sulamericanas.



(Veja em continuidade outros textos desta edição)



De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“Evolução no pensamento científico teuto-báltico em relações Leste/Oeste: Alexander Friedrich Keyserling (1815-1891) e Alexander von Humboldt (1769-1859), Karl Ernst von Baer (1792-1876) e Karl Friedrich Burdach (1776-1847)“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 158/2  (2015:06). http://revista.brasil-europa.eu/158/Pensamento_teuto_baltico.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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Fotos Tallin A.A.Bispo, 2014 ©Arquivo A.B.E.