Seja alegre! A vida como Divina Comédia

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 158

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

N° 158/19 (2015:6)





Seja alegre!

A vida como Divina Comédia
a visão lúdica no processo humanizador




 
Os tempos atuais são marcados por terrível seriedade. Os atos de terror, de guerra, exílios, destruições, mortes, decapitações e apedrejamentos em nome de religiões, conflitos internos em muitos países, violência e crimes nas grandes cidades, violentações e assassínios de mulheres, de exílios e migrações de povos, degradação do meio ambiente, florestas destruídas pelo fogo, aquecimento da atmosfera, falta de água ou inundações, extinção de animais, atrocidades de caças à procura de marfim ou da cruel indústria de carnes, corrupções e perseguição de minorias, a propagação de fundamentalismos religiosos míopes e a intensificação da brutalidade, intolerância e obscurantismo são apenas alguns aspectos de uma situação e um desenvolvimento que é trágico, destruidor da terra e desumanizador.

Os ataques de terrorismo que abalaram Paris em novembro de 2015, a implantação de estados de emergência com a paralização de capitais européias como Bruxelas, a suspensão de jogos esportivos como em Hannover, a interrupção de serviços de transportes entre paises e em metrópoles, o restabelecimento ou a maior fiscalização de fronteiras, a intensificação de medidas de segurança, a presença policial e militar na vida pública testemunham a insegurança e o mêdo que se alastram.

Justamente a paralisia triste que se apoderou de Paris, uma passividade em atmosfera de escuridão e silêncio desconhecida da cidade-luz trouxe à consciência que, assim deixando-se cair, realiza-se justamente aquilo que foi o desejado pelo terror.

Por todo o lado ouviu-se então o apelo: voltem aos bares, aos restaurantes, aos concertos e aos estádios, superem o mêdo, tenham coragem, passeiem pelos boulevards e parques, movimentem de novo a vida noturna, recuperem e vivam o estado de espírito e alma de Paris em alegria, apesar de toda tristeza e respeito para aqueles que perderam a vida.

É nesse apelo que pode ser percebido o sentido mais profundo da expressão Je suis Paris: cada indivíduo foi alvo do ato terrorista. Cada indivíduo é Paris no processo humanizador que deve ser mantido, retomado e reintensificado. A insegurança e o mêdo não podem vencer, a humanidade não pode ser arrastada à paralisante passividade e à escuridão de uma situação em que se pergunta: o que se passou comigo?

Je suis Paris. Recapitulando o papel da alegria nas reflexões psicológico-culturais

O Je suis Paris traz à consciência a necessidade de uma recapitulação de reflexões psicológico-culturais que já há muito se voltam à problemática que é vivenciada com tal intensidade trágica no presente.

Recordar essas reflexões, análises e o desenvolvimento de estudos culturais que dizem respeito a processos destruidores e desumanizadores de um lado, mas também àqueles construtivos e humanizadores de outro surge como de significado por situar o vivenciado em dimensões mais abrangentes, oferecendo profundidade histórica e fundamentação a visões e atitudes que são reconhecidas hoje dolorosamente como prementes.

Elas podem também sugerir caminhos esclarecedores em direção a um progresso que vincula luz do espírito com valores de sentimentos, um progresso evolutivo no seu significado maior.

Reciprocamente, a vivência da situação e dos desenvolvimentos trágicos da atualidade abrem os olhos para o significado de análises de processos culturais e de reflexões psicológicas e demopsicológicas, para personalidades, obras, esforços e correntes de pensamento que cairam no esquecimento ou que foram incompreendidas e desconsideradas. Essa recapitulação representa ao mesmo tempo uma oportunidade para a atualização de formulações e formas de expressão superadas e que necessitam ser corrigidas, assim como para uma retomada do desenvolvimento de correntes de pensamento e procedimentos.

É nesse contexto e em tempos nos quais se rememoram os cem anos da Primeira Guerra que se revela o significado de vultos, círculos e empreendimentos voltados à filosofia de vida e à renovação cultural num mundo marcado por horrores e tragédias da violência e guerra em relações Leste/Oeste, Ocidente/Oriente, e que influenciaram também desenvolvimentos no Brasil e em outros países latino-americanos.

Entre êles, a atenção a processos desumanizadores e humanizadores no homem e na cultura manifesta-se na sua forma mais evidente nas „Meditações Sulamericanas“ do conde Hermann Keyserling (1880-1946), obra que foi ao mesmo resultado e motor da „Escola da Sabedoria“ de Darmstadt. (Veja) (Graf Hermann Keyserling, Südamerikanische Meditationen, 2a. ed., Stuttgart Berlin 1933 (1a. ed. 1932), 335 ss.).

Passos no processo humanizador a partir de uma situação existêncial má

Em suas muitas meditações, Keyserling considera repetidamente uma situação que designa como original de trevas, nas quais desponta a luz da consciência.

Essa situação é analisada à luz do relato bíblico da Criação, interpretado à partir da criatura. O „faça-se a luz, e a luz se fêz“ é considerado a partir da vida na qual se dá a entrada do espírito e desponta a luz.

Com esse despontar da luz na consciência, o homem passa a ter a possibilidade de criar imagens próprias, inicialmente de memória e conscientização da situação de trevas da sua existência, marcada que é por insegurança e mêdo. (Veja)

Essa situação existencial é designada pelo filósofo como sendo a de uma vida primária ou de origens que, devido à insegurança, desenvolve uma força de atração que puxa o homem para baixo. (Veja) Este, atraído e preso, passa a assumir as normas desse estágio primário de vida, sendo assim tomado de insegurança e mêdo.

Essa queda representa uma perda de liberdade, pois o espírito, em si, é livre, uma vez que o pensamento, as idéias e as imagens são livres. Há, assim uma tensão insolúvel entre duas esferas ou ordens no interior do homem e da cultura, entre aquela do espírito do homo sapiens e aquela do homem enquanto parte do mundo da existência terrena. Trata-se de um conflito insolúvel, marcado por dois caminhos contrários de desenvolvimentos evolutivos, sendo o terreno aquele da luta pela sobrevivência da teoria da Evolução. (Veja)

O indivíduo no qual desponta a luz da consciência vivencia o início de um complexo processo que se desenrola em estreitas interações do espírito que entrou na existência e aquele experimentado pela vida que foi tomada pelo espírito.

Esse processo pode ser humanizador - uma vez que a luz do espírito no sentido de capacidade de criação de imagens condutoras é própria do homem -. ou desumanizador, caso haja uma queda e retrocesso à situação de trevas, marcada por insegurança e mêdo.

Vários passos nesse complexo processual de processos são considerados por Keyserling. O caminho que leva de uma situação existencial primária de trevas àquela iluminada conhece primeiramente dois momentos de instabilidade: o da superação da cegueira sem problemas - quando o homem nada vê devido à falta de luz da consciência, não sendo assim culpado nos seus atos, como entre animais selvagens - e o da superação do compenettrar-se do trágico da existência do homem.

O indivíduo passa de uma situação de cegueira àquela da compreensão da realidade como sendo trágica. Se o reconhecimento do estado de cegueira a partir do primeiro despontar da luz da consciência já é difícil, marcado pela memória de desenvolvimentos precedentes que possam explicar a situação de trevas da existência e pelas primeiras imagens que reproduzem apenas especularmente a triste situação, também não é óbvia a segunda - aquela que passa ao entendimento da nova situação a partir do espírito.

O brincar de crianças como passo no processo humanizador

O próximo passo no caminho de espiritualização da vida no sentido de desenvolvimento de capacidade de construção de imagens condutoras em direção humanizadora é aquele que corresponde ao brincar de crianças.

Esse estágio da vida humana pode ser revivenciado pelo adulto na sua procura de desenvolvimento interior. Trata-se, nessa revivência, de uma espécie de iniciação, de uma preparação à vida marcada pela união de sua ordem emocional com o espírito, da espiritualização da alma e da sensibilização do espírito.

As meditações de Keyserling a respeito desse passo no processo de desenvolvimento espiritual surgem como significativas não apenas para o estudo de antigas práticas relativas à „incubação“, remontantes à Antiguidade e da Gnosis referentes ao IAO - e transmitidas através dos séculos no contexto de cultos de determinados santos, como Cosme e Damião - , como também para a análise de práticas correspondentes conhecidas no Brasil.

A dificuldade da nova visão consciente dos acontecimentos que se passam com o homem ao despontar da luz da consciência pode ser avaliada pensando nas dificuldades que uma criança sente quando, no início da juventude, passa do brincar à seriedade da via.

O filósofo lembra que, sob determinados aspectos, a criança, a partir de um determinado ponto de seu desenvolvimento, é mais espiritual do que o adulto, pois nela vive um mundo de imagens no seu interior.

Nessa fase, o mundo externo é simples matéria, instrumento para a sua imaginação e fantasia. A criança vive em mundo criado na imaginação, percebendo a realidade exterior a partir dele e percebendo-o por vezes até mesmo como perturbação do seu mundo imaginado.

O exterior e a vida do corpo surgem antes como instrumentos. A criança pode criar na imaginação, pode desenhar e construir cidades, países e paisagens de brinquedo onde vivem, se locomovem, agem, onde se desenvolvem histórias e acontecem casos.

Vivem, assim, em mundo do espírito, pois imagens e criação de imagens são as principais operações e prerrogativas da esfera espiritual.

Uma criança nessa situação vive na fantasia, não possue relação consciente com a própria realidade orgânico-fisiológica. As estórias e as lendas parecem-lhe mais reais do que acontecimentos e fatos da realidade.

Essa vida na esfera espiritual das imagens não é teatro, pois não é representação de algo externo à vida do indivíduo, mas sim vivência de realidade espiritual, sem maior consideração do mundo exterior.

Na criança, o espiritual manifesta-se assim de forma espontânea. Ela sabe que o seu agir e brinquedo é de brinquedo, não sério, mesmo que leve a sério todo o seu brincar.

Por essa razão, a criança pode surgir como modêlo para um adulto que se espiritualiza, lembrando aqui Keyserling de palavras de Jesus ao propor que o homem siga o exemplo dos pequeninos.

Essa fase de vida numa esfera espiritual da imaginação e fantasia é mantida enquanto os impulsos vitais das esferas mais primárias do homem como animal encontram-se adormecidos.

Quando estes acordam, então sucede uma entrada de impulsos que teem as suas origens nas profundezas do seu ser, naquelas de trevas anteriores à luz da consciência e nas quais esta despontou.

A criança ou o jovem passa a se sentir estranho a si próprio, perde a sua orientação e têm mêdo. O indivíduo passa a constatar a própria realidade fisiológica e o mundo exterior; as estórias perdem a sua credibilidade, e o indivíduo sofre em ter que abandonar o seu mundo de imagens.

Desenvolvimento espiritual do homem e da humanidade

Como a criança, o homem, segundo Keyserling, teria começado e começa brincando a sua existência no processo do desenvolvimento interior 

Êle sabe que brinca, mas experimenta o mundo lúdico como o seu próprio, enquanto que o exterior é estranho e incomoda.

Keyserling constroi aqui uma ponte para a elucidação de povos que designa como infantís. Estes vivem na imaginação. A sua vida é um mito, um poetar, comparável com o mitologizar dos antigos gregos, apenas que em muitos casos ainda em situações mais arcaicas.

Povos infantís viveriam como crianças a partir e dentro, ea imagens e fantasias. Ao explicar e manipular fenômenos naturais, seja nascimento, reprodução ou morte, utilizam-se de imagens, mitos e de ritos e cerimoniais que devem ser bem executados. Julgados a partir da norma da terra, esses povos e indivíduos que vivem na esfera das imagens do espírito procedem de forma incompreensível e surgem necessariamente como desvairados, loucos. alucinados, uma vez que a vida existencial está sempre preocupada com a realidade terrena, marcada pela procura de segurança.

Homens dotados de espírito brincam sempre que podem - Liberdade!

Keyserling afirma que homens dotados de espírito sem brincam quando podem. Mesmo os assuntos mais sérios são considerados muitas vezes de forma lúdica. Assim, para os inglêses, a excessiva seriedade alemã seria bad form. Tudo indica que o humor contribui a levar o sério a um plano no qual êle se torna mais irreal; a guerra passa a ser esporte e a política jôgo. Na antiga China, a vida era marcada por rituais a serem cumpridos.

Com esses exemplos de ingleses e chineses, Keyserling amplia as considerações a respeito do valor espiritual do brincar das crianças à condução de vida, ao processo espiritualizador e humanizador e aos Estados.

O parlamentarismo inglês partiria segundo êle da idéia de que a realidade deve ser manuseada segundo regras de jogo. Aqui residiria a sabedoria do sistema parlamentar da Inglaterra, país tão admirado por Keyserling pelo seu grau de desenvolvimento e pela sua forma de vida, o que valeria também para o Brasil do tempo do Império.

O brincar ingênuo de crianças, cujo brincar é a verdadeira vida, leva ao conhecimento da situação onde a realidade da vida na terra é vivenciada a partir do espírito. Isso significa liberação das algemas que prendem o homem, ditadas pelas normas da vida segundo a natureza da existência terrena.

Essa libertação através do brincar é sempre de fundamental significado onde o mêdo e a fome de origens entram na consciência, onde o vínculo de prisão à terra é sentido como destino e quando a alma é inundada pelas correntes de tristeza da criatura que reconhece a situação tenebrosa em que cai.

Se a própria vida não é vivenciada como brinquedo na sua realidade existencial, a atitude lúdica é aquela que possibilita a mais elevada possibilidade de aliviar o peso das cadeias. Keyserling lembra, neste contexto, que os presos sentem a necessidade de brincar e jogar.

Imagens projetadas no espírito - problemas do mais parecer do que ser

O significado do lúdico seria particularmente importante na América do Sul, um continente de tristeza, com povos pobres de imaginação, fato constantemente salientado por Keyserling a partir de suas observações e vivência.

Na situação sul-americana, haveria imagens desejadas, mas não como poesia e jogo do espírito criador de imagens, mas sim como reflexos e projeções da realidade externa e, assim uma „mentira empírica“.

Os sulamericanos não procuravam tornar realidade uma imagem criada no espírito, nem na vida nem no jôgo, mas procederiam com a seriedade da desesperação de ser o que sabem que não são, exigindo dos outros que os vejam segundo a imagem que desejam.

Esse mecanismo se manifestaria no exagêro de palavras e representações. Em lugar de realmente crescerem e configurarem a vida como obra de arte a partir de imagens condutoras criadas no espírito, os sulamericanos usariam de títulos em abundância, ordens de mérito distribuidas aos montes e outros ornamentos que substituem o pensamento realmente criativo espiritual.

A tendência ao brilho exterior, o fato de apresentarem o prometido como tendo sido já cumprido, as manifestações de engrandecimento do eu sem fundamentos em conquistas próprias mas sim apropriadas, aconcorrência imitativa de imagens e representações dariam um testemunho de nível ainda elementar do desenvolvimento espiritual do subcontinente.

Repetir-se-ia na América do Sul, segundo Keyserling, a situação experimentada por todos os povos presos por cadeias à vida do tipo primário, daquela próxima à existência do homem como animal. Esse homem é escravo, explicando-se assim a temática da escravidão em representações tradicionais de processos interiores do homem.

Na América do Sul, segundo Keyserling a fantasia, por ser pobre, não consegue mais do que criar um mundo subjetivo a partir de imagens desejadas e, assim, levar a uma situação onde o parecer torna-se mais importante do que o ser.

O homem terreno que já participa do espírito, mas que ainda se encontra em estado elementar no seu desenvolvimento espiritual é falso relativamente ao real.

Amor não se reduz à reprodução. Amor de alma e amor espiritual. Amor como ludus

Um aspecto importante e de difícil compreensão nas meditações de Keyserling diz respeito ao fato de haver e não haver transpassagens entre a vida real e a representada, entre o orgânico e o jogo, entre o mimetismo e a comédia, entre a vida na sua existencialidade e o espírito. Cada deslocamento de sentidos significa um momento de instabilidade.

Nesse contexto, o amor seria a ilustração mais perfeita desses processos. As suas raízes residem segundo Keyserling não só no terceiro dia da Criação, mas nas profundezas da noite do primeiro dia.

Nessas reflexões, o filósofo indica inserir-se em correntes do pensamento científico-natural relativo à fisiologia e ao ato sexual e reprodutivo dos cientistas e pensadores teuto-bálticos, tais como Karl Friedrich Burdach (1776-1847). (Veja) O amor terreno, compreendido quanto às suas raízes, seria alimento por ímpetos vindos das profundezas da vida existencial. Mesmo nas suas formas mais sublimes interfere nele o subterrâneo dentro do homem.

No homem, porém, o sentido do amor não se reduz à reprodução. Há o amor de alma e o amor puramente espiritual.

Keyserling lembra que o ato de geração teria diferentes significados. Já entre os animais o prazer dissociar-se-ia da reprodução. Nos homens, essa separação seria um fenômeno fundamental e mesmo primordial

O próprio ato sexual pode ter os mais diversos sentidos: vontade de prazer, expressão de desejo de filhos, união de corpo, alma e espírito ou expressão de pura arte.

Para Keyserling, a união corporal de amantes, independente do motivo da reprodução, é ludus no sentido mais profundo e belo da palavra. O processo gerador não se limita à reprodução física, mas ocorre também em outras esfera, na alma e no espírito.

O imaginar-se de uma ordem espiritual como se esta já estivesse desenvolvida

Tudo o que é de necessidade, tudo o que obriga diz respeito às forças da terra. Se estas não forem domesticadas, o espírito não pode agir. Na entrada do espírito, trata-se da tentativa de imaginar-se dentro de uma ordem já existente e consistente. Não se trata de ignorar o terreno no homem. Se o homem deve abrir-se ao espírito, para que este possa atuar, a decisão reside no terreno do homem.

Resumindo as suas reflexões, Keiserling afirma que a imagem, como forma de manifestação original do espírito, é como êle não palpável, não pesada, ela não resiste, não se liga e não pode-se ligar. À atividade do espírito falta o sério na forma como a seriedade é compreendida pela terra: a atividade do espírito é essencialmente lúdica.

Não só o teatro é a mais primordial expressão da vida co-determinada pelo espírito: o prototipo da vida espiritual é êle próprio jogo de visões e imagens, representação.

O significado da arte no desenvolvimento espiritual e a consciência do trágico

Para Keyserling, seriam raros os casos de exclusiva ligação terrena. No estado pós-infância, o indivíduo passa a compreender a beleza e a alegria da infância vivida, marcada pelo lúdico e, assim como uma forma de existência redenta.

Assim se explica o significado incomparável da arte no processo de desenvolvimento espiritual.

Esse significado transforma-se de forma proporcional à profundidade da vivência do espírito. Se o estado fundamental é o da tristeza da creatura, então a arte é compensação. Em mundo tornado leve e etéreo e por fim não real, a realidade dura e pesada procura ser esquecida. A profundidade da tragédia grega deriva do fato de que nela redime-se o sentimento de vida real trágica.

Esta compreensão da vida como tragédia representaria o primeiro despertar do homem para a sua realiade integral, que é tanto terrena quanto espiritual. E assim, os dramas de mistério cristãos podem tornar vivenciável o supraterreno na imaginação.

A vivência profunda nesse tipo de drama significaria aqui segundo o filósofo uma ab-reação. À medida que essa vivência irrealiza o terreno, irrealiza porém também o espírito, pois este deve-se de-manifestar, para poder ser vivido em mundo de imaginação oferecido de fora.

A verdadeira vida de espírito começa onde o espírito vivo é vivido de forma central pela pessoa como teatro, momento no qual o „reino dos céus“ começa a se realizar na terra.

Toda a vivência passa nesse estágio do desenvolvimento por um deslocamento. Não é mais a imaginação em si, sem relações com o eu que se vivencia e forma lúdica. Também não é uma transposição da vivência terrena na esfera das imagens, como o filósofo vivenciou na América do Sul.

Também não se trata de pré-figurações, que atuam no consciente como algo estranho. É a própria pessoa que se transforma em meio de expressão do espírito. Assim, a vida, em dimensão mais alta, parece como transloucada ou desvairada, alucinada para os filisteus.

Identificação do pessoal com o supra-pessoal em culturas africanas

A primeira expressão da vida pessoal do espírito seria a absoluta identificação do pessoal com o supra-pessoal: nesse estado, a vida do homem é um teatro realizado.

Citando Leo Frobenius (1873-1938), seu amigo e colega na Escola da Sabedoria, o filósofo lembra que há milênios a existência de reis da África foi uma representação de um mito no medium da vida real. A vida era um teatro. Não era porém um teatro no sentido da criança, nem de arte do palco, nem transposição do real ao imaginário, nem também de redenção na fantasia. Era concreta realidade, vivenciada porém por um eu identificado com o cósmico.

O homem intelectualizado da época contemporânea pensa ter superado esse tipo de jogo de imagens e representação. Há, porém, em grau importante da vida, situações nas quais o mais moderno e esclarecido não pensa e sente de forma diferente dos antigos reis africanos.

Esse é o plano da ocorrência histórico-social. Até mesmo as dimensões da pressuposta correspondência entre decorrências da natureza e o jogo de imagens ter-se-iam transformado apenas em época recente. Apesar de reduzir-se o campo de correspondências, a existência histórica depende do reconhecimento de que o significado o homem é mais decisivo do que o seu biológico, do sentido da vida do que a vida em si, e que este sentido se manifesta totalmente no papel que é desempenhado.

A vida histórica, vista da perspectiva da terra, é reconhecida como sendo jogo de imagens.

Relação primária do espírito despertado: a etiqueta

O caráter específico da relação primária do espírito acordado para a natureza  pode ser entendido da melhor forma a partir da etiqueta: uma relação de distância.

Quem quiser marcar uma supremacia sobre a natureza, deve-se dela distanciar interiormente. Isso sucede da forma mais fácil através da manifestação da distância no sentido de um cerimonial rigidamente observado. 

Assim, cada pessoa, como pai, marido, filho, segue, independentemente do que é em si, uma certa etiqueta. A sua rigidez cresce com a distância que deve ser marcada. 

Tanto mais pessoas entram no jogo, tanto mais distância torna-se necessária. O espírito deve deve por si próprio criar limites e distâncias que necessita para a sua representação. Por essa razão, encontra-se por todo lado onde o espírito determina socialmente uma ordem hierárquica geral. Para Keyserling, toda a hierarquia seria de origem espiritual.

O que parece ser hierarquia na natureza nada mais é do que o equilíbrio natural que resulta do peso das forças de vida primária de gana. No caso de uma verdadeira hierarquia, é o cargo que cria a posição. Por outro lado, uma ordenação da vida segundo significado e valor apenas é possível com base em hierarquia.

Se espiritual deve determinar no mundo gana, que por si nada sabe do espírito, então deve ser materializado como tal. Entre essas materializações encontram-se aquelas das designações. Isso vale tanto mais quanto menos uma pessoa tem consciência do seu eu espiritual.

Keyserling lembra do gosto e do significado de títulos e ordens de mérito na América do Sul, ultrapassando, no caso do Brasil, os limites do ridículo. Cabelereiras brasileiras, por exemplo, teriam fundado uma academia dermo-capilar segundo o modêlo da Académie française, com uniformes, diplomas, símbolos e graus.

Nessa situação primária daquele que deseja desempenhar um papel histórico ou social, o indivíduo passa a ver como real o seu jogo de imagens. A sua carreira é de fato a sua vida. Quem ocupa interiormente um cargo ou ministério, sente-se como rei, como chefe-de-Estado, como juiz, mais do que como indivíduo particular. A sua profissão dá sentido à sua vida. No sentido da sua existência, vê o núcleo de seu ser.

Se o sentido da existência é visto como o mais importante por uma pessoa, então o seu papel é para êle absolutamente real.

O homem acordado em consciência reconhece que o espírito entra posteriormente no tecido da vida primária, aquela dominada pela gana, marcada por hipersensibilidade e na ordem emocional.

O espirito pode perder o seu caráter de sujeito, caindo, reduzindo-se a instrumento da vida marcada pela gana. Este seria o caso do materialismo e do pragmatismo em geral. O espírito pode-se vingar, transformando-se em negativo, e este seria o caso do satanismo.

No estágio atual do desenvolvimento da humanidade, o espírito é o núcleo do ser do homem que vive sobre a terra.

Daí resultaria que o indívíduo deveria celebrar-se ludicamente como se fosse um rei, chefe de Estado, juiz ou outra imagem que desse sentido à sua vida, pois sem papel não há vida espiritual. Esse modo de viver não devia ser mal-compreendido no sentido de que o indivíduo que assim age  é aquele que deseja simplesmente sucesso ou proveito material. O que distingue um cargo imaginário de outros papéis é o fato de que êle não representa uma forma de realização indiviual, mas típica e originalmente coletiva, não do indivíduo. Aquele que se encontra no processo de desenvolvimento humanizador corporifica tipos.

Keyserling lembra, porém, que teatro também significa uma vida isolada determinada pelo espírito. À medida que uma dimensão maior passa a significar mais, a vida individual transforma-se em teatro público. O poeta sente-se como representante do espírito do seu povo, o erudito da ciência, o psicólogo da consciência daqueles que o procuram, o particular torna-se uma autoridade. Assim, pessoas que cumprem a sua determinação, comunicam-se entre si através de papéis.

Desse papel, pressupõe-se naturalmente que corresponda ao indivíduo. Aquele que não chega a uma coerência entre o papel e a existência, sente que há algo errado, e mais ainda é visto como errado pelos outros.

Coerência entre o papel desempenhado e a vida

Para Keyserling, a necessária congruência entre vida e o papel desempenhado por aquele inserido no processo evolutivo espiritual seria tão primária e geral, que não dependeria de maiores interpretações.

Seria indiferente se a congruência é resultado da correspondência necessária entre a ordem cósmica e humana no sentido de uma chamada de cima, ou se, ao contrário, de uma chamada de baixo, como resultado do julgamento de outros ou da opinião pública. Em todas as áreas nascidas do espírito o significado cria fatos, a interpretação faz realidade, e, reciprocamente, uma determinada realidade aproxima-se da sua correspondente interpretação.

Em época marcada por pensamento mecanicista, o fato de não se crer numa correspondência interna entre profissão e ser levaria a problemas de lideranças e guias.

Mesmo em situações mais marcadas por mecanicismo, porém, acredita-se que é o cargo que faz a diferença relativamente à existência natural.  Seria significativo que justamente a época mecanicista tivesse inventado a sociologia, uma ciência que procuraria demonstrar que a especificidade do homem seria mais social do que biológica.

A possibilidade da existência da sociologia teria segundo Keyserling como pré-condição a constatação de que é o papel que domina a natureza. Assim, não poderia haver dúvida que o teatro da existência histórica, em si jogo de imagens, teria as suas raízes na realidade, na natureza do homem.

O indivíduo pode, visto da terra, apenas manifestar-se como jogo de imagens. Tanto mais espiritual for um homem, tanto mais é êle ator de imagens.

Por que um indivíduo quer ser famoso? Segundo Keyserling para fundamentar a sua existência no espírito, pois fama vale exclusivamente para o papel, de modo que todo o terreno passa para a esfera o espírito. O que termina na glória, começa com a procura de dignidade. Toda a procura de dignidade promove o seguir o caminho, diferenciando-a da decorrência biológica, e carreira é jogo de imagens.

O engôdo de representar um papel que não compete ao indíviduo

Ainda que fosse um mal-entendido compreender que a comédia da vida social e história fosse fundamentalmente um engôdo, isso, de fato, ocorria.

Não se pode esquecer que a primeira expressão do espírito na terra - como tratado em outras meditações - foi o de despistar e deslocar. Há muitos indivíduos que mentem a si próprios e a outros para desempenhar um papel que não lhes compete. Isso não reside, segundo Keyserling, na natureza mentirosa da hierarquia e da posição, mas sim na superficialidade do indívíduo, que o impede de ser espiritual, na sua incapacidae configurativa de fundir o papel com a vida, ou na sua covardia em lutar para conquistar o seu papel. Assim, de fato, muito na vida histórica seria realmente engôdo.

Dignidade daquele que vê a vida como ludus e glória na alegria

Neste contexto, cumpre lembrar que palavra alemã Ehrgeiz  - usada por Keyserling - é muito mais profunda do que o termo ambição em português. Tem a ver com dignidade e honra, e esta é, segundo o filósofo, o mais espiritual dos valores, pois diz respeito à singularidade do indivíduo.

Ao contrário, a palavra das linguas românicas para a glória é mais profunda do que a alemã para fama ou renome. Ela torna clara que motivos da vida primária de gana entram a serviço do espírito.  Haveria um paralelo entre a procura de glorificação e a procura de dignidade na esfera espiritual com aquela dos anelos de poder, e de importância e de posse na esfera subterrânea.

Aquele que estiver profundamente à procura de dignidade no ser alegre procura sempre o impossível. A seu caminho, chega a reuninciar à felicidade para alcançar algo maior, trocando o o presente pelo futuro, chegano a desprezar a propriedade e o poder externo para tornar-se espiritual.

Generalizando: à medida que uma pessoa é espírito ou espiritual, a sua vida real é essencialmente comédia - no sentido de Dante Alighieri (1265-132) - e êle vê um mundo seriamente como comêdia, tomado de alegria: Divina Comédia.

De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“Seja alegre! A vida como Divina Comédia. A visão lúdica no processo humanizador “
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 158/19  (2015:06). http://revista.brasil-europa.eu/158/Vida_como_Divina_Comedia.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2015 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne
Corpo consultivo - presidências: Prof. DDr. J. de Andrade (Brasil), Dr. A. Borges (Portugal)




 





Fotos A.A.Bispo, 2014 ©Arquivo A.B.E.