"con la nostalgia...per la sua cara Napoli"

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 160

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 160/3 (2016:2)



...con la nostalgia in cuore per la sua cara Napoli, pure amando il Brasile...

Arcangelo Fiorito (1813? - 1887)
canto, música sacra e
pasta alla napoletana no Rio de Janeiro


Trabalhos em Nápoles pelo centenário de Archangelo Fiorito (1813-1887)

 
A música sacra é um dos aspectos dos estudos das relações entre Nápoles e o Brasil que mais vem recebendo atenção nas últimas décadas.


Esse interesse é compreensível, uma vez que a vida religiosa marca fundamentalmente a história, as tradições e a cultura de Nápoles, sendo a música sacra uma de suas principais expressões, constituindo uma das mais ricas heranças do seu patrimônio cultural.


A música sacra napolitana de séculos passados transcendeu de muito os limites peninsulares, adquirindo assim um significado para estudos histórico-musicais em contextos globais. É impossível de não ser considerada  não só sob a perspectiva específica da história sacro-musical, eclesiástica e religiosa, mas sim também sob aquela dos estudos de processos culturais em geral e de uma musicologia assim orientada.


Essas dimensões da música sacra napolitana necessitam ser consideradas sobretudo no contexto euro-mediterrâneo das antigas configurações políticas do reino de Nápoles e Duas Sicílias e que incluem a Península Ibérica.


Marcando a prática nas igrejas, a criação musical e a formação em Portugal, irradiou-se ao Brasil colonial e do Reino Unido, ali prolongando-se após a Independência.


Compreensivelmente, a "escola" ou "influência napolitana" sobretudo no Seminário da Patriarcal de Lisboa constitui objeto constante e imprescindível de consideração nos estudos histórico-musicais referentes a Portugal e ao Brasil.


Menor atenção tem recebido o fato do Brasil ter vivenciado uma atualização e mesmo intensificação dos seus elos com desenvolvimentos na prática musical das igrejas de Nápoles pelo fato de ter tido uma princesa napolitana como Imperatriz: Dona Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias (1822-1889).


Com a sua formação e profunda religiosidade, mas sobretudo pela vinda de músicos napolitanos na sua comitiva, as décadas que se seguiram à sua chegada representaram uma nova fase na história da música sacra no Brasil nas suas relações com Nápoles.


A passagem do centenário de nascimento do maior dos seus representantes, Archangelo Fiorito, surgiu como motivo para a reconsideração in loco desses desenvolvimentos da prática e da criação musical nas igrejas do Brasil nos seus elos com Nápoles.


Pareceu ser necessário retomar estudos que vêm sendo desenvolvidos desde os anos 70 à luz de perspectivas teórico-culturais mais recentes e de resultados da pesquisa e das reflexões das últimas décadas no âmbito da história religiosa, da música sacra e da musicologia de orientação cultural.


Centenário de Arcangelo Fiorito (1813-1887), intérprete de G. Balducci (1796-1845)


Napoles. Foto A.A.Bispo 2014. Copyright ABE
A atualidade do interesse pela vida e obra de G Balducci redespertou a atenção a nome Arcangelo Fiorito. (Jeremy Commons, The Life and Operas of Giuseppe Balducci, 1796-1845,, in L'arte armonica, Serie III, vol. 15, Roma: Accademia Nazionale di S. Cecilia, 2014). (Veja)


Arcangelo Fiorito participou como intérprete do melodrama em três atos Bianca Turenga de G. Balducci, representada no Real Teatro San Carlo, no dia 12 de agosto de 1838. Com apenas 25 anos, já era um dos mais destacados baixos da cena lírica.


Dessa sua atuação - justamente em anos de apogeu das atividades de Balducci nos círculos da nobreza napolitana - existe uma ilustração do personagem representado por Fiorito na biblioteca do Conservatorio di musica S. Pietro a Majella de Nápoles. Essa imagem fala, na pose do personagem, das qualidades teatrais e da imponência da presença de Fiorito no palco e como personalidade.


O significado de Fiorito na vida musical da época tinha sido já revelado em estudo sobre a última estação napolitana de Domenico Barbaja (1836-1840) (Paologiovanni Maione e Francesca Seller, "L'Ultima Stagione Napoletana Di Domenico Barbaja 1836-1840: Organizzazione e spettacolo", Rivista Italiana di Musicologia 27/1-2, 1992, 257-325).


Napoles. Foto A.A.Bispo 2014. Copyright ABE


Desenvolvimento dos estudos


Os estudos relativos a Arcangelo Fiorito tiveram início com a consciência sobre a necessidade de reconsideração do século XIX na história da música do Brasil despertada em meados da década de 60 do século XX.


Fiorito surgia como um dos muitos nomes da vida musical do passado brasileiro silenciados ou apenas mencionados de passagem na literatura. Esse fato correspondia à desvalorização de décadas da história da música no Brasil, justamente aquela do país independente e de sua solidificação como nação, fato que se explicava pela perspectiva da historiografia nacionalista do século XX e pela posição crítica relativa à música nas igrejas do passado na literatura orientada segundo as normas restauração litúrgico-musical e da qual um dos principais documentos tinha sido o Motu Proprio de Pio X (1903). Toda música sacra de um longo passado era desqualificada por apresentar elos por demais estreitos com a ópera, surgindo como teatral, profana e decadente. 


Ao mesmo tempo, reconhecendo-se a problemática de distinções de esferas culturais do erudito e popular, assim como do sacro e profano na compreensão e na metodologia de áreas de estudos - que deixava sem a necessária atenção situações e desenvolvimentos intermediários e transpassagens - passou-se a defender uma orientação das atenções segundo processos, o que levou à fundação de sociedade respectiva (Nova Difusão) em 1968 e do seu Centro de Pesquisas em Musicologia.


Em viagem de estudos realizada a centros da prática sacro-musical que ainda se mantinham fiéis à antiga tradição coro-orquestral de Minas Gerais, em particular em São João del Rey, tomou-se consciência que as tão criticadas interações entre o sacro e o profano, o sacro-musical e o teatral expressavam posições e perspectivas inadequadas para a compreensão e valorização de contextos e de processos culturais.


Aproximações adequadas apenas podiam partir de posicionamentos empáticos através de observações participantes de um universo cultural que não conhecera separações tão determinantes entre o sacro e o profano, de formas de culto e de vida estreitamente relacionadas, de uma cultura católica abrangente, por assim dizer integral, ainda que com outras características daquela que deveria ser reinstaurada segundo critérios de sacralidade de um movimento restaurador litúrgico-musical marcdo pelo Historismo.


Essa problemática, que dizia respeito a várias áreas de estudos, tendo sido em particular discutida no âmbito da Associação Brasileira de Folclore, levou a tentativas de aprofundamento de conhecimentos do passado silenciado e, na prática, a esforços de execução de obras de uma produção sacro-musical desvalorizada como teatral.


Essas tentativas relacionaram-se com aquelas de ambientação adequada das execuções, no seu sentido mais amplo de reconstrução de formas de culto do passado, trazendo à consciência que também celebrações - como a arquitetura, a música e as artes plásticas - transformaram-se no decorrer da história, adquiriram diferentes formas de expressão e expressaram diferentes culturas espirituais.


Na preparação de cantores líricos para a execução de solos, árias e cavatinas que exigiam qualidades vocais e técnicas especiais, em particular nas assim-chamadas Missas de Gloria de compositores que realizaram estudos no Rio de Janeiro em meados do século XIX, a atenção foi dirigida ao vulto de Arcangelo Fiorito como um dos principais cantores da Capela Imperial e professor de canto do Conservatório Imperial de Música.


Em pesquisas no Rio de Janeiro, em 1970, teve-se a possibilidade de, ao lado de obras de outros compositores do século XIX, levantar e estudar as muitas obras de Fiorito conservadas na biblioteca da Escola Nacional de Música/Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Com base no material assim levantado, Fiorito tornou-se um dos nomes que passaram a ser considerados no programa de estudos euro-brasileiros iniciado em 1974 na Europa, em particular naqueles relacionados com a música sacra.


No âmbito do projeto "Culturas Musicais da América Latina no século XIX" (Veja), e sobretudo nos trabalhos da seção de Etnomusicologia do instituto de estudos etnomusicológicos e hinológicos da organização pontifícia de música sacra levados a efeito em estreitos vínculos com o Istituto Pontificio di Musica Sacra em Roma, tratou-se da questão da necessária consideração das culturas espirituais nas suas diversas formas de expressão como pressuposto para a condução de estudos adequados. 


Em diversas ocasiões foram consideradas diferenças de modos de ver, de sentir e de viver a existência não só entre regiões marcadas pela Reformação e aquelas católicas da Europa, mas também entre os diferentes contextos do Catolicismo.


Nesses estudos, sempre se salientou que regiões católicas como a Renânia, a Baviera ou o Tirol, em geral vinícolas, distinguem-se por múltiplas tradições e expressões que indicam acentuada alegria de vida, festiva e doméstica, humor e calor humano. Foram justamente nessas regiões que por mais tempo conservaram-se repertórios e práticas da música sacra com acompanhamento orquestral, cultivados ainda hoje em ocasiões festivas.


Mesmo católicos socializados nessas regiões, porém, surpreendem-se, em Roma e em outras regiões da Itália, com uma  ainda mais acentuada alegria de vida, de desfrute da existência, de celebrações do comer e beber, de visões e modos de sentir e agir que surgem a olhos de protestantes quase que  como resquícios de antigo paganismo.


Em diferentes ocasiões, estudiosos católicos e teológos procuraram demonstrar que justamente essa alegria de vida em estreitas interações de espírito, alma e corpo seria característica da cultura católica, de uma Igreja que ri e chora, de populações que não se preocupam primordialmente com argumentações e especulações teológicas e racionais, mas que vivem no óbvio de um todo cultural em que se integram.


Essas reflexões psicológico-culturais não poderiam deixar de ter consequências para estudos de história da arte, da música e de tradições culturais, por exemplo para a apreciação adequada de um Barroco por vezes sentido por demais volumoso, portentoso, "gordo" em comparações com o Barroco centro-europeu.


As diferenças quanto a intensidade e formas de expressão entre regiões marcadas pelo Catolicismo da Europa Central e aquelas italianas - salientando-se aqui Nápoles - aguçaram a sensibilidade para a consideração de intensificações e transformações na forma de ver, sentir, viver e celebrar que teriam ocorrido no Brasil no século XIX: formas de espiritualidade e de expressão afins do contexto luso-brasileiro teriam sido acentuadas e sofrido modificações com a intensificação de elos com a Itália, em particular com Nápoles.




Aproximações interdisciplinares na consideração da música sacra


Uma aproximação interdisciplinar nos estudos das expressões do Catolicismo e em particular da música sacra em Nápoles surge como necessária e mesmo fundamental para  adequadas apreciações e análises.


Como perspectivas da esfera litúrgico-musical institucionalizada levam a desvalorizações, pois partem da tradição de pensamento restaurativo e de critérios normativos estabelecidos a posteriori, procurando superar justamente concepções e práticas vistas como por demais próximas à tradição do bel canto e da ópera, ou seja, do teatral e do profano, não podem a procedimentos que procurem analisar e compreender expressões culturais, de visões de vida, de modos de pensar, sentir e agir, assim como de aspectos psíquico-culturais nas suas relações e interações entre contextos culturais.


"Ah! ce n'est pas tout à fait de leur faute si les Napolitains sont paresseux comme on le dit. Il leur faut si peu de chose! L'air est si doux, le plus léger vêtement suffit, le moindre toit vous abrite assez. On vit de rien. Les hommes du peuple se nourrissent d'une poignéé de macaroni, d'une tranche de pastèque (...). Ils aiment le mouvement, le plaisir, l'agitation, la joie bruyante, les chansons et les cris, les danses, les farces des bateleurs, la musique gaie, les recits en vers et en prose des chanteurs et conteurs en plein air. (...) Mais il n'y a pas besoin de carnaval pour ce peuple insouciant, ni de jours désignés pour s'amuser: c'est tous les jours fête, pourvu qu'il fasse soleil. Alors on danse, on chante, ou joue du flageolet, du tambourin et des castanettes, non pas parce que c'est le jour, mais parce qu'on a le temps et l'envie de danser. (...)

Naturellement artistes, mais de sans éducation, les Napolitains ont beaucoup de goût pour la peinture, la sculpture et tous les métiers que tiennent en quelque chose de l'art. Le plus grand malheur de ce peuple, que a tan d'heureuses qualités, c'est l'ignorance, à laquelle, naturellement, font cortège le fanatisme et les superstitions." (Ch. Delon, Les peuples de la terra, 5a. ed., Paris: Hachette 1905, 84-85)



Nápoles nos estudos culturais de tradições católicas: S. Januarius (Gennaro)


A exigência de aproximações antes próprias os estudos culturais - antropológico-culturais, etnográficos e folclóricos - evidencia-se já pela intensidade das tradições religiosas populares com suas expressões e práticas singulares no Catolicismo napolitano.


Delas, a mais importante e conhecida é a do milagre da liquefação do sangue de S. Gennaro, bispo de Nápoles e Benevento dos primeiros séculos do Cristianismo, conservado em ampula na catedral de Nápoles.


É compreensível, assim, que nos estudos de religiosidade popular, de folclore religioso essa tradição e o santo cujo primeiro túmulo se encontra nas catacumbas que trazem o seu nome, venha despertando particular interesse. Pouco se sabendo com segurança histórica a respeito da vida desse mártir que teria sido decapitado sob Diocleciano, e cujos companheiros teriam morrido nas fontes de enxôfre de Pozzuoli, a pesquisa se volta sobretudo a aspectos culturais que se manifestam na linguagem visual e nas tradições orais.


Tem-se lembrado, nos estudos referenciados segundo o espaço luso e brasileiro, da intensidade do culto na Idade Média tardia, assim como o fato do traslado de suas relíquias de Benevento a Nápoles ter ocorrido a 1 de maio de 1491, ou seja à época das viagens de descobrimentos portugueses.


Uma aproximação cultural a esses dados históricos e hagiográficos aguça a sensibilidade para o próprio nome do padroeiro da catedral de Nápoles: Januarius. Surge como significativo o fato de haver outros santos com o mesmo nome e com similares problemas histórico-hagiográficos de fontes, entre eles o de Córdoba, venerado no sul da Espanha.


Essa atenção ao nome do santo abre caminhos para a consideração de remotos processos de cristianização de concepções da Antiguidade nas suas relações com o ano natural.


O nome indica relações com janua, a porta ou portal, com a divindade Jano, significando Januarius o porteiro ou aquele que se encontra à entrada.


Esse complexo de relações de sentidos se perpetuou na designação do correspondente mês de janeiro, aquele que abre o ano. Várias dessas relações e suas sobrevivências em tradições populares vem sendo há muito alvo de estudos etnográficos, folclóricos e imagológicos.


Entre os aspectos desses estudos, tem-se lembrado que aqui poderia residir uma elucidação mais convincente da denominação do Rio de Janeiro. As explicações convencionais, a de que a denominação da cidade remontaria a uma suposição errônea do navegador Gaspar de Lemos que, ao chegar à baía da Guanabara em 1502, julgara ser esta a desembocadura de um rio, não surgem como plausíveis.


Considerando que em época marcada por compreensões de sentidos religiosos do ano natural as denominações de localidades e regiões descobertas eram determinadas pelas festas do dia, essa hipótese explicativa surge como pouco consistente.


Outras dimensões de sentidos do primeiro de janeiro do calendário teriam marcado essa denominação, e essas teriam relações não com desembocadura, mas sim com porta, com entrada, e com o fluir, o correr. Não é sem significado lembrar do papel desempenhado por italianos nas viagens dos Descobrimentos, lembrando-se que Gonçalo Coelho (1451/54-1512), nas viagens que realizou junto com Amerigo Vespucci (1454-1512), recebera formação em Pisa.


Para além do desenvolvimento desses estudos e reflexões relativos à época dos Descobrimentos, tem-se dado particular atenção às extensões culturais, em particular de tradições religiosas napolitanas ao Brasil no século XIX.


Tem-se lembrado que pouco convincente é a explicação de que Dona Januária de Bragança (1822-1901), filha de Dom Pedro I (1798-1834), irmã de Dom Pedro II (1825-1891), a "Princesa da Independência" e Princesa Imperial do Brasil, tenha recebido o seu nome em homenagem ao Rio de Janeiro, cidade onde nasceu.


Em família na qual a tradição de escolha de nomes segundo santos tinha tanta importância surge como pouco plausível que o nome Januária. para além de suas associações com a cidade ou com a abertura de uma nova época, não estivesse em primeiro lugar sob a égide de um santo, no caso Januário. Não se deve esquecer que uma das mais importantes casas de espetáculos do Rio de Janeiro trazia o nome desse santo: o Teatro São Januário


Os dados - ainda que sumários - que se possuem sobre Arcangelo Fiorito permitem reconhecer uma particular proximidade à família da princesa Dona Januária, condessa d'Aquila por casar-se com o Conde d'Aquila, Luigi di Borbone delle Due Sicilie (1824-1897), o irmão de Dona Teresa Cristina.



Músico a serviço do Império, da música sacra da Capela Imperial e do teatro.


Os estreitos elos de Fiorito com o Império que passaria a servir acompanhando a princesa napolitana que seria Imperatriz já se manifestaram durante a viagem de Nápoles ao Rio. Durante a travessia, Fiorito compôs uma Cantata dedicada a D. Pedro II que esperava pela sua consorte no Rio de Janeiro e que foi executada no dia 2 de outubro de 1843.


No Brasil, Fiorito logo foi nomeado para o côro da Capela Imperial. Pode-se avaliar o significado atualizador que representou a integração de um recém-chegado cantor de renome em Nápoles em instituição já tradicionalmente marcada pela influência napolitana na música sacra através da formação que antigos músicos tinham recebido em passado já remoto em Lisboa. No ano seguinte, Fiorito participou como solista na execução de missa de Fortunato Mazziotti na Capela Imperial por ocasião do matrimônio da Princesa D. Januária e do Conde d'Aquila.


Os estreitos elos entre o culto e o teatro que já tinham marcado as suas atividades em Nápoles mantiveram-se no Brasil. Às vésperas de São João de 1844, o cantor, apresenta-se no Teatro S. Pedro de Alcântara como grande representante do bel canto por ocasião da primeira execução, no Brasil, da ópera Anna Bolena, de G. Donizetti (1797-1848).


Em 1860, Fiorito foi nomeado mestre de música da Capela Imperial, um cargo que, para além de testemunho do seu prestígio, indicava o papel que lhe era confiado na formação de cantores e instrumentistas.



Intensificando s suas atividades de professor de canto, piano e matérias teóricas à medida que se afastava da vida artística como intérprete-artista, Fiorito foi nomeado, em 1869, a professor de canto do Conservatório Imperial de Música. Como uma das personalidades mais respeitadas na Corte, o seu parecer era pedido pelo Imperador para a avaliação de mérito de compositções, como foi o caso da Marcha Imperial de Afonso Altavila, em 1871 (Dom Pedro II e a Cultura, Rio de Janeiro: Ministério da Justiça/Arquivo Nacional 1977, doc. 242, pág. 49).


O renome que granjeou como uma das mais destacadas personalidades da música no Brasil levou a que fosse condecorado com a Ordem da Rosa, em 1874. Em 1880, tornou-se mestre-compositor da Imperial Câmara. (Ayres de Andrade, Francisco Manuel da Silva e seu tempo II, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1967,169)


Arcangelo Fiorito e patriotismo brasileiro - a banda da Casa Imperial


Inserindo-se a sua vinda e a sua atuação no Brasil estreitamente em meios sociais da Côrte, é compreensível que Fiorito tenha-se também destacado na composição de obras para datas patrióticas para banda de música.


Escreveu Grande Hymno Triumphal para grande orquestra e vozes para celebrar a vitória na Guerra do Paraguai (1868), e, em versão para banda, um Hymno da Victoria, impresso também em redução para canto e piano. Essa composição, destinada a festejar os triunfos das armas brasileiras no Paraguai, com poesia de A. E. Zaluar, foi dedicada à nação brasileira, e  escrita por ordem superior - certamente provinda da família imperial - para ser executado pelos alunos do Conservatório, tendo sido executado em 1870 em grande solenidade festiva, sob a sua regência. ( M. de Moura Reis, A Música Militar no Brasil no Século XIX, Primeira Exposição Geral do Exército, Rio de Janeiro: Imprensa Militar 1952, 69/70, 75)


Arcangelo Fiorito deixou não apenas considerável número de composições, em particular de música religiosa, como também possuiu um grande acervo de partituras.


Com a sua morte, ocorrida já em época marcada pela reforma litúrgico-musical que implicava na desvalorização da prática sacro-musical a que pertencera, esses materiais passaram para o acervo da banda de música da Côrte, como ocorreu também em muitos outros casos no Brasil.


As partituras foram arrematadas do espólio pela Casa Imperial e entregues á banda de música, então sob a direção do mestre Amaro Ferreira de Melo. Em 1887, encontrando-se as partituras ainda retidas na Imperial Academia das Belas Artes, foi o seu diretor - Antonio Nicolau Tolentino - premido a que fossem enviadas ao arquivo da banda, ao qual pertenciam. (Dom Pedro II e a Cultura, op.cit., doc. 2143, pág. 346)


Luigi Lablache (1794-1858) como mentor - baixos bufos na Itália e no Brasil


Como cantor da Capela Imperial e como professor de canto prestigiado no Rio de Janeiro, A. Fiorito deve ser considerado na tradição do seu professor, o renomado baixo, ator e professor de canto Lugi Lablache. Tudo indica que Fiorito não apenas recebeu de Lablache técnicas, repertórios e orientações interpretativas, mas que nele também teve um modêlo de modos de vida e de comportamento, o que explicaria o fato de A. Fiorito ter sido considerado como personalidade singular e excêntrica no Rio de Janeiro.


Lablache, que obteve a sua formação no Conservatorio della pietà de'Turchini em Nápoles, procedia de condições familiares problemáticas. Era filho de um mercador de Marseille e de mulher irlandesa, inserindo-se assim na tradição de amparo dos conservatórios napolitanos de crianças desprivilegiadas. Esse fato poderia elucidar singularidades da sua carreira profissional.


Lablache projetou-se como "buffo napoletano" no Teatro di San Carlo em 1812, atuando na ópera La Molinara de Valentino Fioravanti, distinguindo-se sobretudo no gênero cômico, ainda que também posteriormente atuando em obras sérias.


A simpatia de Saverio Mercadante, que a êle dedicou a sua ópera Elisa e Claudia, foi decisiva para a sua carreira internacional. Como um dos principais intérpretes de óperas de G. Rossini (1792-1868), com elas alcançou popularidade em grandes centros operísticos da Europa.


O conhecimento de Lablache no Brasil explica-se pelo fato da sua filha Francesca Cecchina ter-se casado com Sigismond Thalberg (1812-1871), em 1843, o maior pianista de renome internacional que esteve no Brasil em meados do século XIX.


Assim como Lablache entrou na história pela sua aparência imponente e pela sua presença de palco, sobretudo também pelas suas qualidades de ator e representação de papéis cômicos, também A. Fiorito foi um cantor inserido sobretudo na tradição dos baixos bufos de um Lablache ou memo Donizetti, sendo visto como uma personalidade cheia de humor e mesmo extravagante no meio musical do Rio de Janeiro.


O buffo na consideração de Fiorito e do seu papel na vida musical


É significativo que Vincenzo Cernicchiaro, na sua Storia della Musica del Brasile, dedique a Archangelo Fiorito um longo texto no qual salienta o fato de ter gozado de fama de ser um homem de excêntrica originalidade. Essa menção à excentricidade de Fiorito não deixa de sugerir traços cômicos que surgem até mesmo como caricaturescos de sua personalidade e modos de vida. Pessoalmente e na sua moradia manifestava-se a sua tendência à encenação teatral e ao humorismo.


Recordava-se ainda, muitos anos após a sua morte, que a sua moradia em São Cristóvão era marcada por fantasia e engenhosidade. Ao subir-se a escada ouvia-se a escala diatônica; o músico construíra um aparato curioso de papelão para espantar moscas enquanto compunha, tinha uma pele de gato negro envolvendo um filtro de água de cerâmica, uma banheira para banhos de imersão, que tomava cantando ária de ópera do "Giuramento" de Mercadante e na qual quase se afogou.


In vita vi fu chi lo chiamasse eccentrico; e certamente pare che lo fosse, date le leggende simpatiche che corrono sul suo conto. Difatti, la sua dimora di via Escobar, n.1, ove l'onesto uoumo visse molti anni e vi morì, è ricorata como tra le più fantastiche e ingegnose: una serie di campanelli che intonano la scala diatonica al salire la vecchia scalinata; il seggiolone da barcollare appeso al tetto della sala da visita; un pianoforte antichissimo, straziato dal tarlo; un serto... die cartone, circondato di pendenti in carta, assai curioso, per scacciare via le mosche, quando componeva; un filtro in terracotta per l'acqua ghiacciata, avvolto dalla pelle di un gatto nero, che gli era stato assai caro, quando era in vita; una stanzetta murata di zinco, ridotta a vasca per il bagno d'immersione, che egli stesso, cantand l'aria del 'Giuramento', vedeva empirsi d'acqua. Senonche un giorno, preso da forte distrazione, si dimenticava di chiudere il rubinetto, e mancò poco che non affogasse!... (op.cit., Milano: Fratelli Riccioni 1926, 162-163)


Música sacra, canto lírico e pasta alla napoletana


Vincenzo Cernicchiaro registra também uma iniciativa de Arcangelo Fiorito que acentua traços singulares de sua personalidade e a manutenção de modos de vida e de comportamento napoletanos no Rio de Janeiro.


Embora ocupando cargos de alta responsabilidade - cantor e mestre da Capela Imperial (!) -, Fiorito tentou estabelecer-se comercialmente, criando uma indústria de produção de massas à moda de Nápoles. Introduziu no Rio de Janeiro massas de diversas cores, o que, porém, despertou suspeitas de drogas, o que o obrigou a fechar o comércio.


Un bel di volle anche essere industriale, e fondò una fabbrica di paste alimentari uso Napoli. I colori svariati, mai sino allora applicati ai maccheroni, agli spaghetti, alle tagliatelle, gli parvero di buon avviso applicarli alla nascente e originale industria sua. Senonché un clamore generale di lagnanze si innalza contro la fabbricazione di simili paste e, credendole fatte a base di droghe tossiche, e perciò nocive alla salute pubblica, l'obbligarono a chiudere bottega!...(loc.cit.)


Concomitância do comîco com a seriedade e identidade napolitana


Vincenzo Cernicchiaro termina o seu comentário sobre Arcangelo Fiorito salientando que a sua conhecida originalidade excêntrica não excluia o fato de ter uma grande alma, um coração de artista, com virtudes de ensino e de amor à arte da qual era uma espécie de sacerdote.


Nunca, porém, deixou de lembrar-se com saudades de Nápoles, apesar de amar o Brasil, país onde viveu meio século, aumentando essa nostalgia nos seus últimos anos.


Però convien dire che a questa eccentrica originalità, parte già accenata quando trattammo dei compositori degli Inni, si accoppiava un'anima grande, un cuore d'artista distinto, con l'esclusiva virtù all'insegnamento ed all'amore dell'arte, di cui egli era un sacerdote di classico e rispettabile esempio. Egli moriva, in Rio de Janeiro, nel 16 marzo 1887, a 74 anni d'età, e con la nostalgia in core per la sua cara Napoli, pure amando il Brasile, ove visse circa mezzo secolo. (loc.cit)


Diferentemente de um pianista como Achille Arnaud "Napolitano" (1832-1894), que nunca perdeu a sua identidade napolitana, expressando-a em composições que recordavam de forma mais refinada paisagens do Golfo, a napolinidade de Fiorito surge como mais abrangente de espírito, alma e corpo. Considerar essa cultura católica de cunho napolitano, vivida de forma particularmente intensa por um cantor tão impregnado de seu papel bufo, surge como significativa para o desenvolvimento adequados de estudos históricos de mentalidades e, em particular, daqueles de música sacra em orientação teórico-cultural.




Súmula de trabalhos da A.B.E.e do I.S.M.P.S. sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo, Universidade de Colonia



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“Arcangelo Fiorito (?1813-1887): canto, música sacra e
pasta alla napoletana no Rio de Janeiro“.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 160/3 (2016:02). http://revista.brasil-europa.eu/160/Arcangelo_Fiorito.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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Fotos Nápoles. No texto: Rio de Janeiro (3)
.A.A.Bispo 2014, 2007©Arquivo A.B.E.