Cantai hinos, homens de asas contra o vento

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 160

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 160/13 (2016:2)



Cantai hinos,
homens de asas contra o vento que dominam espaços e abrem novos céus ao pensamento
no exemplo de
Às Aves, poesia de Dr. Pedro Augusto Gomes Cardim (1865-1932)


Aproximações ao edifício de imagens condutoras do canto coral feminino
a partir de obras de João Gomes de Araújo (1846-1943) (IV)

Pelos 150 anos de nascimento do Dr. Pedro Augusto Gomes Cardim (1865-1932)



Arquivo ABE
 
O canto coral merece uma particular atenção nos estudos culturais relacionados com a música no Brasil e, vice-versa, nos estudos musicológicos de orientação teórico-cultural.


Uma tarefa de significado atual


Tornou-se quase que lugar comum entre regentes de coros um contínuo salientar de funções sociais, comunitárias e educativas da prática coral. Essa valorização do sentido do cantar em conjunto tem geral o objetivo de chamar a atenção e ganhar o apoio de autoridades e órgãos, de alcançar apoios, incentivos, subvenções e justificá-las. Serve também à valorização da atividade do regente, que apresenta-se como educador, formador de público e agente de expansão cultural.


Tem-se assim um discurso que contribui a uma consciência de liderança, que chega a assumir características questionáveis de extremo egocentrismo e vaidoso culto pessoal. Maestros e maestrinas de coros passam a desempenhar um papel de guias e agentes da vida musical e de ensino que transcende a sua atividade.


Os argumentos utilizados se repetem, embora sejam por vezes sentidos como novos. Esses argumentos apenas podem deixar de ser lugares comuns a partir de estudos mais aprofundados de concepções relativas ao canto coral na sua história. Somente assim pode-se evitarcontínuas repetições e aguçar a sensibilidade para implicações e consequências de concepções insuficientemente refletidas.


Os vários movimentos corais das últimas décadas, que conheceram fases de singular intensidade em alguns Estados e regiões, contribuiram muitas vezes à renovação de repertórios e mesmo à produção de obras corais. Estas, criadas para determinados grupos ou movimentos, refletem orientações e concepções. Esses movimentos possuem não apenas diferentes funções, fundamentadas mais ou menos conscientemente em edifícios conceituais, de imagens e ideológicos, como também podem ser instrumentalizados para fins religiosos ou políticos.


Canto coral na formação de mentalidades a serviço de idéias e visões


Várias décadas da história da música e do ensino musical secundário no Brasil foram marcadas pela soberania do Canto Orfeônico. Uma extraordinária estrutura para a formação de professores, de criação e edição de repertórios, de práticas de arregimentação popular através do canto como nas concentrações orfeônicas em estádios determinou a história da Educação Musical, da vida musical e da Política Músico-Cultural no Brasil de grande parte do século XX.


Distinguindo-se na plêiade de personalidades liderantes dese movimento o mais renomado compositor do país - Heitor Villa-Lobos (1887-1959), compreende-se que o Brasil se saliente entre as muitas nações nas quais a música, a dança e sobretudo o canto coral foram colocadas a serviço de regimes de Estado autoritário nas suas muitas acepções, nacionalistas, nacional-socialistas ou fascistas, mas também naqueles de esquerda.


Compreende-se, também, que a superação desses regimes e estruturas políticas foram necessariamente acompanhadas por empenhos de mudança de uma prática de canto, de ensino, de formação de professores e de educação do povo ou de massas que foi um de seus principais esteios.


Esta renovação, porém, foi muito mais difícil do que aquela obtida por revoluções e golpes, uma vez que vasta rêde de professores formados segundo a sua ideologia continuavam a exercer suas atividades e repertórios cultivados mantiveram por mais tempo concepções de um passado político a ser vencido. A maior lentidão dessas mudanças condicionou defasagens entre o ensino, a formação, a vida musical e desenvolvimentos políticos, correndo a prática coral em muitos casos o risco de transformar-se em esfera particularmente passadista e mesmo reacionária.


A análise de fundamentos conceituais e orientações nas suas inserções em edifícios ideológicos de práticas e repertórios impôs e impõe-se para a renovação consciente e refletida da atividade coral. O Canto Orfeônico - e o conceito de Orfeão - adquirem um significado muito mais acentuado para os estudos culturais e musicológicos no caso do Brasil do que em outros contextos nacionais.


Antecedentes do Canto Orfeônico de décadas nacionalistas


O movimento orfeônico brasileiro tem sido analisado sob diversos aspectos, e um deles disse respeito a seus antecedentes e pressupostos em contextos europeus. O orfeonismo brasileiro sobretudo liderado por H. Villa-Lobos foi analisado como fenômeno tardio, como adaptação e mesmo instrumentalização para fins ideológicos de movimentos e práticas anteriores, surgidas em outros contextos políticos, sociais e culturais. Lembrou-se repetidamente do movimento dos orfeões na França a partir de meados do século XIX e, entre outros, em Portugal.


Uma das atenções dos estudos relativos ao conceito e à prática dos orfeões no mundo de língua portuguesa foi o das suas relações com concepções de comunidade de fundamentação religiosa constatado sobretudo nos seus elos com o culto do Espírito Santo nos Açores.


Também os pressupostos do orfeonismo brasileiro em época anterior à sua eclosão sob a égide de H. Villa-Lobos nos anos 30 foram alvo de atenções. O movimento não teve início com as atividades enérgicas desse compositor, mas já possuia antecedentes importantes quanto a grupos corais, a seu papel no ensino, na formação do público e mesmo a seu embasamento em reflexões de natureza cultural.


São Paulo desempenhou neste sentido um papel de fundamental importância, não tendo sido por acaso que H. Villa-Lobos tenha escolhido a capital paulista como marco e ponto de partida de sua missão político-coral. Encontrou ali grupos e personalidades de apoio, que, embora com diferentes orientações, puderam ser canalizadas e integradas no seu edifício de idéias e intuitos a serviço político.


A análise das concepções relativas à prática, ao sentido e à função da prática coral em São Paulo antes da nivelação de suas diferenças na instrumentalização política nacionalista constitui importante tarefa para os estudos musicológicos paulistas e brasileiros em geral.


A recepção de H. Villa-Lobos no início de sua missionação político-coral no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo serviu já há muito para dirigir a atenção ao papel desempenhado por professores e formados nessa instituição na eclosão da fase então iniciada da prática coral no Estado.


O canto coral no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo


A tradição do canto coral no Conservatório merece, assim, ser considerada com particular atenção, uma vez que constituiu desde a sua fundação uma das principais áreas de ensino e de atividades. Foi o canto coral de discípulas da instituição que permitiu já nos primeiros anos do Conservatório no início do século a sua representação pública, a apresentação dos rápidos progressos obtidos no seu ensino. Seria, porém, inadequado considerar o canto coral no Conservatório retroativamente a partir de concepções do orfeonismo dos anos 30.


Essa prática não foi irrefletida ou arbitrária, não deixou de ser fundamentada em estudos e convicções. Detectar até que ponto essas idéias condutoras da prática coral e de seu sentido prepararam ou foram transformadas e instrumentalizadas na política dos anos 30 constitui uma tarefa primordial para um tratamento justo e diferenciado dos desenvolvimentos e de seus representantes.


O canto coral foi prática e instância teórico-cultural de fundamental importância no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Ela relacionou-se indissoluvelmente com o próprio nome da instituição, com o próprio projeto de criação, na capital paulista, de um centro de formação e cultivo concomitante e interrelacionado do dramático e do musical.


A criação do Conservatório não refletiu apenas o desejo de criar-se uma escola de música para a formação de instrumentistas e cantores em cidade então em extraordinária expansão e desenvolvimento, mas sim expressão de uma visão cultural e estética.


É essa visão que, até hoje insuficientemente considerada, é que empresta à antiga instituição paulista uma característica especial que a distinguiu do Instituto Nacional de Música no Rio de Janeiro e outras instituições.


Essa visão marcada pela íntima relação entre o dramático e o musical surge em considerações mais aprofundadas como singularmente atual e expressão de erudição e atenção a tendências do pensamento na Europa da época.


Canto coral e linguagem visual da Belle époque


O principal nome a ser lembrado é o do Dr. Gomes Cardim, estudioso do teatro, da literatura, homem de vasta erudição, advogado e político.


O seu projeto sugere resultados de estudos da literatura da época relativamente às origens do drama nos seus estreitos elos com a música. E nessas reflexões o próprio Conservatório, na sua estrutura fundamentalmente baseada no conceito de congregação, surgia como um Coro no antigo sentido de local demarcado para as coréias em ocasiões festivas.


A prática do coro no Conservatório, liderada por João Gomes de Araújo como grande colaborador de Gomes Cardim, atuava como participante indispensável do desenvolvimento da instituição, expressava nos textos dos seus cantos as principais idéias condutoras do projeto, elucidava o público a respeito de intenções e salientava convições e concepções na formação de discípulos e do público. Se estava sempre presente nas principais datas festivas, o coro atuava também continuamente de forma não explicita ou visível na vida da instituição.


Se o antigo drama e o antigo coro tiveram as suas origens no âmbito do culto dos antigos deuses, as obras criadas por João Gomes de Araújo com textos de Gomes Cardim revelam a intenção de adaptá-los à visão da natureza.


Art Nouveau, natureza e a visão da natureza indígena


Os conhecimentos da cultura indígena baseavam-se em estudos do General José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), o que pode ser comprovado na composição Coema Piranga do compositor e dedicada a Gomes Cardim. (Veja)


Nessa obra, decanta-se a alvorada rubra ou purpúrea segundo a contagem do tempo indígena. Pertencendo ainda à noite, cujas partes eram contadas a partir da lua e do cantar de pássaros, o purpúreo é visto como a luz que o sol que ainda não surgiu envia dos montes e que ilumina os campos com as suas flores. A a luz purpúrea da alvorada é conotada masculinamente, assim como os pássaros cujo canto permitem determinar essa parte do dia.


São essas concepções indígenas dos pássaros da alvorada rubra ou purpúrea que permitem compreender o sentido do côro "Às aves" para sopranos e contraltos, com acompanhamento de piano, de João Gomes de Araújo e poesia de Gomes Cardim.


Diferentemente de obras que apresentam imitações de cantos de pássaros, essa obra surge singularmente como um canto de saudação às aves, um hino em Maestoso, quase que marcial nas suas figurações pontuadas.


Se hinos cívicos marcaram a produção para canto coral em São Paulo já antes do movimento orfeônico de Villa-Lobos, destacando-se aqui o próprio filho do compositor, João Gomes Júnior, o hino "Às aves" indica uma singular relação entre o marcial e os cantos de pássaros, apenas compreensível a partir de um edifício de imagens e concepções subjacente.


Dominadoras do espaço


As aves são saudadas de início como dominadoras do espaço, como aquelas que, pairando nas nuvens, passando rapidamente de monte a monte, fitavam a luz do sol ardente sem se deixarem esmorecer. Essas palavras hínicas aos pássaros como dominadores do espaço sugerem os sentidos figurados do poema, elaborados musicalmente em movimento ascendente, em piano, sentidos que se elucidam apenas no decorrer da composição.


Salve dominadoras do espaço / Que entre nuvens pairaes, / fitando a luz do sol ardente, /sem que os membros lassos a firmeza vos corte a plumea cruz! // Aligeras, passando monte a monte



Asas destes ao homem contra o vento


As aves como dominadoras dos espaços revelam-se a seguir como imagens do homem que tem asas contra o vento, ou seja, o homem audacioso que segue à frente apesar de correntes espirituais contrarias, voando em amplidão infinita e, assim, abrindo novas céus ao pensamento humano. Esses homens são decantados como aves gloriosas, altivas, que vooam sobre os cimos e os abismos. Como os pássaros, esses homens surgem como navegantes de regiões siderais, e estas seriam as infinitas esferas dos sonhos. O hino é dirigido, assim, a esses homens sonhadores, comparados com os pássaros que vencem potentemente as amplidões dos céus.


Azas destes ao homem contra o vento, /Na largueza infinita do horizonte, /Abrindo novos ceos ao pensamento / Aves gloriosas quee adejaes, altivas, /De altos cumes a baratros medonhos, Siderios nautas, Das paragens interminas dos sonhos. /Salve! Salve, potentes vencedoras /Das amplidões!Oh! aves sonhadoras!




Precursoras da luz nos alvores das manhãs


Se o termo aves é feminino, mas, como imagem, diz respeito aos homens que figurativamente possuem asas contra o vento, o poema decanta a seguir as mulheres na imagem das flores. Elas são saudadas como humildes companheiras do homem, sacrificando-se no trabalho do lar. A concepção da mulher surge como bem definida: ela é da família, da intimidade, infantís, quase que como irmãs de crianças. Elas não são luz, mas precursoras da luz como as flores são beijadas pela luz na alvorada, antes do nascer do sol. Assim como as flores são colhidas, também elas são sacrificadas. São flores com asas e musas de quintais.


Salve/ também, humildes companheiras Do lar, que em sacrifícios sem renome, Sois do rico as alegres quintaleiras, Matando, aos pobres muita vez, a fome! /Sois da familia; entraes na intimidade,/Sois das creanças como quasi irmãs; Precursoras da luz que a immensidae /Oscula nos alvores das manhãs. /Sois, no lar, como as flores nos jardins. /E mais que as flores sois sacrificadas/Em holocausto ao goso dos festins, Oh! Musas dos quintaes, /flores aladas!


Cantai hinos, cantai!


As mulheres são assim alvo de saudação como modestas companheiras dos homens nas horas de alegria ou de dor. A voz, porém, é aquela dos homens com asas contra o vento, que cantam como as aves ligeiras nas névoas matutinas, soando na escuridão das matas. O canto desses pássaros plenos de ufanismo que são hinos à luz da aurora. Essa música traz consolo àqueles que se encontram em necessidade.


Salve! Salve! Queridas e modestas companheiras na dor como nas festas!/ E voz? cantae, cantae divinas aves canoras, saltitantes, lestas, Que encheis de encanto as nevoas matutinas e as solidões sombrias das florestas! Avesinhas, cantae, cantae ufanas/ Vossos hymnos e iriaes a luz da aurora! Derramae na miseria das choupanas a esmola dessa musica sonora! Mensageiras de Deus, salve innocentes trovadores dos bosques e dos pomares! Mostrae um ceo aos corações descrentes Na dulsorosa, vibração dos ares. Deixae o mal que pelo mundo vae. Mensageiras de Deus, cantae, cantae!





Súmula de trabalhos da A.B.E.e do I.S.M.P.S. sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo, Universidade de Colonia



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“Cantai hinos, homens de asas contra o vento que dominam espaços e abrem novos céus ao pensamento no exemplo de Às Aves, poesia de Dr. Pedro Augusto Gomes Cardim (1865-1932)“
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 160/13 (2016:02). http://revista.brasil-europa.eu/160/As_Aves_Gomes_Cardim.html


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