Conservatório Dramático e Musical de S.Paulo

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 160

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 160/7 (2016:2)




Conservatório Dramático e Musical de São Paulo


Uma instituição da
Belle Epoque paulista
nas suas inserções em processos político-culturais


Pelos 150 anos de nascimento do Dr. Pedro Augusto Gomes Cardim (1865-1932)
45 anos de sessão na Sala Gomes Cardim do Conservatório Dramático e Musical


Arquivo ABE

 

Nos trabalhos desenvolvidos em Nápoles em continuidade àqueles motivados pelos 125 anos de falecimento da Dona Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, Imperatriz do Brasil (1822-1889), ocorrido no mesmo no ano da proclamação da República, considerou-se o significado da tradição dos conservatórios de Nápoles para a história global da formação de músicos e professores de música no decorrer dos séculos, nela também incluindo-se o Brasil.


Os atuais trabalhos realizam-se após 40 anos do primeiro ciclo do programa euro-brasileiro levado a efeito em Nápoles e região. No início dos trabalhos, em 1976, tratou-se de considerar a história dos conservatórios europeus sob a perspectiva das transformações que ocorriam no tradicional conservatório da cidade alemã de Colonia (Konservatorium der Stadt Köln), que passara a ser designado como escola de música renana (Rheinische Musikschule).


No debate, conduzido com participação brasileira, comparou-se a mudança que ocorria na Europa com aquela que se processara e ainda se processava no Brasil, onde mudanças de legislação relativas ao ensino musical e artístico levaram a graves situações críticas nos conservatórios que, em cidades como São Paulo, constituiam uma ampla rêde de estabelecimentos particulares.



A problemática brasileira discutida na Europa


As mudanças ocorridas no Brasil foram consideradas e discutidas sob muitos aspectos, entre êles as concepções dos seus agentes motores na política e em círculos influentes que levaram a esse processo de mudança, à estrategia seguida e aos caminhos percorridos na mudança estrutural que incluiu singulares passos como aqueles de distinção entre cursos "estaduais" e "federais", de reconhecimento "federal" ou não de instituições, de diplomas "estaduais" ou "federais", da introdução de "cursos técnicos de música", um desenvolvimento marcado por ambivalências e injustiças, e que levou por fim à desqualificação da formação em conservatórios e do próprio conceito, assim como a falência de empreendimentos e de empenhos particulares.


Esses paralelos com desenvolvimentos que ocorreram e ocorriam no Brasil no debate sobre o ensino musical na Europa na década de 70 pôde ser conduzido em estreita cooperação com personalidades que tinham atuado como inspetores e fiscais no "Serviço de Fiscalização Artística do Estado de São Paulo", órgão que tinha sido responsável pelo supervisão de cumprimento de programas, da habilitação de professores, de normas de examinação, de concessão de diplomas e seu reconhecimento da vasta rêde de conservatórios do Estado.


Em trabalhos que já haviam sido conduzidos em cursos de "Música e Evolução Urbana de São Paulo" no âmbito dos recém-implantados cursos de Licenciatura em Música e Educação Artística, salientara-se que essa estrutura de inspetores, fiscais, professores diplomados e instituições possuía uma história de décadas, nas quais se encontravam representados relevantes nomes de personaldidades da vida e do pensamento musical paulista e paulistano, de modo que o abalo do sistema dos conservatórios repressentava um estremecimento e mesmo destruição de obras de vida de indivíduos e mesmo famílias.


Nessa complexa rêde de personalidades ligadas entre si por elos oficiais, de colegialidade, familiares e de amizade, destava-se a família Gomes Cardim, como a inspetora Dulce Santiago Albernaz demonstrou em trabalho de pesquisas de acervos familiares e do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo realizado sob a orientação do editor e apresentado em 1973.


Esse trabalho inscreveu-se em desenvolvimento de reflexões e preocupações de anos e que, ao contrário de ser retrógrado ou reacionário, procurava a atualização de concepções, de repertórios, de programas e métodos de ensino, o que, porém, exigia a tomada de consciência dos próprios condicionamentos no contexto da história do sistema de ensino em geral e de cada instituição em particular.


Partindo da instituição-mater da rêde, a necessidade de estudos da história do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo através de estudos dos materiais conservados no seu valioso acervo e com base na memória de mestres e ex-alunos, foi salientada em 1975 em encontros com a participação de professores da instituição, entre êles  Estephania Gomes de Araújo, João Sepe e Fausta Sermarini.


A proximidade entre músicos e famílias de músicos tradicionais de São Paulo e mentores italianos que aqui se manifestou - embora a instituição também contasse com personalidades de outras nacionalidades - , puderam ser constatados em outras instituições nas quais atuavam aqueles professores, no caso de Estephania Gomes de Araújo a Escola Normal Pe. Anchieta, no caso de João Sepe e Fausta Sermarini o Conservatório Musical Osvaldo Cruz, então sob a direção de Andrelino Vieira.


Este, músico ligado à tradição de cidades como Santana do Parnaíba e São João del Rey, era um daqueles que mais salientava a injustiça que se fazia para com músicos representantes de antigas rêdes de músicos paulistas vinculados à prática coro-instrumental de igrejas de irmandades e do interior e de bandas, silenciados e ignorados.


Essa crítica ao desconhecimento e desvalorização de uma esfera submersa da cultura musical encontrava um singular paralelo naquela de professores italianos ou ítalo-brasileiros que lamentavam uma desvalorização que sentiam perceber da atuação italiano no ensino e na vida musical, o que representria ainda consequências de posições críticas do nacionalismo de décadas passadas.


Essa situação sentida como injusta era sobretudo sentida como grave em instituição marcada na sua história e no seu presente pelos vínculos de seu corpo docente com a colonia ítalo-brasileira: o Conservatório Musical Carlos Gomes, sucessor da antiga Sociedade Beneficiente Benedetto Marcello.


Vários de seus professores, nascidos já no Brasil ou na Itália, tinham participado intensamente da vida musical paulista através de décadas, sobretudo da cena lírica e da história dos teatros da cidade, vivenciado mudanças de contextos políticos, de modo que o silenciamento ou a desvalorização de suas experiências de vida significavam prejuízos para o estudo da própria história cultural da cidade e do Estado.


Personalidades como Armando Belardi e representantes da família Peracchi lembravam também que essa distância relativa à atuação de italianos na história e no presente da vida musical levava a um obscurecimento da tradição em que se inseria o próprio sistema de conservatórios, e que levava, historicamente, à Itália.


Com o processo de mudanças legislativas que levaram à superação desse sistema e mesmo à desqualificação do conceito, tirava-se a possibilidade de reconhecimento esses contextos históricos, nas suas continuidades e descontinuidades, levando a instituições - como os recém-criados departamentos de música - que pareciam surgir do nada, sem consciência histórica de suas dependências e condicionamentos culturais.


A orientação dirigida a processos nessa preocupação pela renovação de perspectivas, e que levou à fundação de uma organização de fomento nos estudos e na prática dessa nova orientação (Nova Difusão, 1968). Tendo em vista a superação dos problemas assim tematizados, essa sociedade alcançou, do Serviço de Fiscalização Artística do Estado de São Paulo, em 1970, a inclusão privilegiada nos programas de estudos do conservatório por ela orientado de área histórico musical voltada ao estudo de processos músico-culturais brasileiros nas suas inserções em contextos internacionais.


Significativamente, em Festival promovido por essa sociedade, sob o patrocínio do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, tratou-se de diferentes aspectos desse movimento renovador e de tomada de consciência da história e dos condicionamentos culturais das instituições de ensino da cidade, em encontros e conferências realizadas em diferentes conservatórios da capital.


Procurava-se, assim, integrar democraticamente nas reflexões e nas mudanças que ocorriam os próprios alunos e professores que passavam a ser atingidos pelas mudanças, em particular os grêmios estudantís,


Entre as instituições que abrigaram as sessões, salientaram-se, para além do Carlos Gomes, conservatórios como Villa-Lobos, Marcelo Tupinambá, Beethoven, da Lapa, Meirelles e Santa Marcelina. Um particular significado assumiu, compreensivelmente sessão levada a efeito no Salão Gomes Cardim do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Nela, em cooperação com estudantes e arquitetos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, tratou-se de relações entre a história do conservatório, linguagens visuais e a história da arquitetura e urbanismo de São Paulo.


O conservatório, já pela sua natureza e denominação relacionando o dramático e o musical, surge como instituição indispensável para estudos culturas e artísticos interdisciplinares nas suas relações com a história das transformações urbanas de São Paulo.


Esse significado do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo para os estudos de processos culturais foi considerado em diversas ocasiões e em diferentes contextos na Europa. Foi alvo de reflexões no âmbito do projeto "Culturas Musicais na América Latina", desenvolvido no âmbito do Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia, encetadas com a participação de pesquisadores de vários países das Américas, salientando-se Francisco Curt Lange. (Veja) Os contatos com o conservatório e os seus crescentes problemas intensificaram-se à época da atuação de Roberto Schnorrenberg na respectiva fundação.



Sao Paulo. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright ABE


Ínicio dos trabalhos euro-brasileiros em Nápoles, em 1976


Nos trabalhos desenvolvidos em 1976 em Nápoles, o Conservatorio di San Pietro a Majella esteve no centro das atenção. Nele se formaram músicos que atuaram na prática, no ensino e na criação musical do país. Estes formaram músicos e professores,  que por sua vez formaram outras gerações, transmitiram técnicas, repertórios, práticas e sobretudo concepções de música, músico-culturais e profissionais.


A inscrição da história do conservatório em processos político-culturais evidencia-se na sua história. A sua denominação explica-se pelo  fato de, em 1826, do rei das Duas Sicílias, Francesco I Gennaro (1777-1830) ter instalado um Real Collegio di Musica fundado em 1808 em edifício de antigo convento ao lado da igreja de San Pietro a Majella. (Francesco Florimo, La scuola musicale di Napoli e i suoi conservatorii. Con uno sguardo sulla storia della musica in Italia. Napoli: Morano, 1880–1882, reimpresso em Bologna: Forni, 1969).


A sua denominação e o fato de ser instalado em edifício conventual indicam a inserção dessa instituição na tradição dos conservatórios napolitanos e que já tinha, há muito, transpassado as fronteiras de Nápoles e Duas Sicílias.


A própria vida do seu diretor a partir de 1840 - Saverio Mercadante (1795-1870) (Veja) - exemplifica essa tradição: de origem familiar problemática, ilegítimo e sem meios, apenas pôde obter formação e ascender profissionalmente, alcançando posições respeitáveis na sociedade por ter sido abrigado no Conservatorio di San Sebastiano de Nápoles, onde recebeu ensino instrumental e de canto por competentes professores.


Essa trajetória de Mercadante traz à lembrança alguns aspectos fundamentais para estudos das instituições que se designam como conservatórios e que exigem ser tratadas como fatos e sob perspectivas culturais.


O próprio termo conservatório, aparentemente incompreensível se fosse entendido apenas como designação de escola de música, revela dimensões múltiplas do conceito de conservar (conservare), e que, sob o aspecto histórico, relacionam-se antes com o de abrigar, o de dar abrigo a crianças enjeitadas e órfãos.


Substituindo a família, ofereciam através da formação musical possibilidades de aprendizado de uma profissão, de ganho de vida, de dignificação, de integração na sociedade e mesmo ascensão social.


Resultantes assim do exercício da caridade, fundamentados em princípios cristãos ou mantidos pela ação conjunta de abnegados ou congregações, possibilitaram a formação de profissionais trabalhadores em música conscientes de uma dignidade de seus ofícios.


Ainda que nos conservatórios também meninas fossem abrigadas e recebessem formação, diferente era a função do ensino. Um exercício digno do aprendido não poderia ser em princípio no estrado de palcos ou em fossos de orquestras segundo as normas sociais da época, mas antes no seio familiar ou em círculo social mais restrito. A dignificação alcançada pela formação conservatorial contribuia a que bem casassem, e que se tornassem boas esposas e mães; mulheres assim formadas tornaram-se formadoras sobretudo de mulheres ou, como mães de filhos bem formados. Mesmo assim,  a formação musical obtida desencadeou um desenvolvimento gradual quanto à aceitação de atuação profissional feminina, sobretudo de cantoras, o que levou ou foi acompanhado por uma gradual mudança de convenções e normas.


A expansão de conservatórios em outras cidades européias desde fins do século XVIII necessita ser considerada como expressão e motor de processos culturais mais amplos, com transformações e continuidades. Já não eram mais orfanatórios ou casas de abrigo, mas mantiveram determinadas características e conotações da tradição em que se inseriram. Na série de instituições designadas como conservatórios distinguem-se aquelas criados em fins do século XVIII e primeiras décadas do século XIX - Paris (1795), Praga (1811), Viena (1819) - e aquelas de um surto de fundações de meados do século - Leipzig (1843), Munique (1846), Berlim e Colonia (1850), Dresden (1856), Stuttgart (1857), S. Petersburgo (1862), Frankfurt (1878). Nessa série, insere-se o do Rio de Janeiro.


O Conservatório Imperial de Música nas suas inserções em processos históricos


Os dados conhecidos sobre a fundação do Conservatório de Música no Rio de Janeiro indicam, como na tradição italiana, também iniciativas de associação de músicos para fins assistenciais. Como discutido no projeto "Culturas Musicais a América Latina no século XIX" e em encontros realizados em Colonia e Maria Laach , foram antes de amparo a artistas caídos em necessidades ou idosos em tradição secularizada de irmandades como a de Santa Cecília. Esse fato explica ter sido uma "Sociedade de Beneficiência Musical" que, em 1841, requereu a concessão, por parte do Govêrno, de duas loterias anuais, durante oito anos, destinadas à criação de um conservatório de música, um procedimento que se seria similar àquele empregado na criação do Conservatório Dramático e Músical de São Paulo no início do século XX.


Um dos iniciadores - talvez o principal - foi Fortunato Mazziotti, um dos três irmãos formados em Lisboa que, chegados ao Brasil em 1810, representaram a continuidade da presença sacro-musical italiana na Real Capela e, posteriormente, na Capela Imperial.


A criação do Conservatório de Música deu-se por decreto que, em 1847, definia os objetivos da instituição como sendo tanto de ampla formação musical de todos os interessados como também o mais específico de formação de artistas capazes de satisfazer as exigências do Culto e do Teatro.


Os elos com a tradição italiana se manifestaram em programas e alocuções, assim como no corpo de professores. Assim, entre as obras do concerto inaugural, em 1848, ouviu-se o Stabat Mater de G. Rossini.


No discurso inaugural, lembrou-se que a criação do conservatório no Brasil era tardia, uma vez que o primeiro conservatório europeu tinha sido criado em Nápoles em 1537, "à custa de esmolas mendigadas de país em país e de porta em porta". Na França, o conservatório apenas pôde ser fundado em 1791 à custa de consideráveis auxílios do Govêrno. O procedimento que possibilitou a criação do conservatório no Brasil, se partido também de uma Sociedade de Beneficiência, contara, como o da França, com a benevolência oficial, o que podia ser visto como sinal da era de progresso que a nação vivia. (Cf. Ayres de Andrade, Francisco Manuel da Silva e seu tempo, Rio de Janeiro I: Tempo Brasileiro 1967, 253).


É a consideração desse complexo constituído por intuitos associativos de auxílio mútuo e de abrigo áqueles que poderiam encontrar caminho de vida e profissional como músicos, de anelos de difusão ampla de conhecimentos e de formação de artistas capazes para o Culto e o Teatro em nome da civilização e progresso que abre caminhos para estudos de processos culturais que levaram à criação de conservatórios na Província de São Paulo.


Também no Rio o Conservatório Imperial tornou-se modêlo e motivou a criação de outras escolas de música. Para São Paulo, a irradiação do Conservatório Imperial vinculou-se sobretudo à personalidade e à atuação de João Gomes de Araújo ((1846-1943). Tendo ali estudado, manteve durante toda a vida a consciência de ser um continuador da obra de Francisco Manuel da Silva, o seu protetor e mentor. Manteve-se sempre fiel aos elos com a tradição dos conservatórios italianos, sobretudo através do seu professor G. Giannini (1817-1860). (Veja)


Foi, porém, sobretudo o anelo quase que missionário de contribuir ao progresso e á civilização ali recebido, à difusão ampla de instrução musical e à formação de músicos capazes para o levantamento de nível da pratica musical de culto e de teatro que o levou a fundar um conservatório particular, no economicamente florescente Vale do Paraíba.


Com a sua viagem à Itália, onde desenvolveu estudos no Conservatório de Milão, teve a oportunidade de enraizar-se ainda mais profundamente na vida dos conservatórios italianos e dos novos desenvolvimentos e tendências quanto ao ensino e repertório.


A tradição musical familiar de Pedro Augusto Gomes Cardim (1865-1932)


O idealizador do Conservatório foi o autor de peças teatrais e político Dr. Pedro Augusto Gomes Cardim, inserindo-se assim a sua fundação em contextos luso-brasileiros, porém estreitamente relacionados com desenvolvimento ítalo-portugueses e ítalo-brasileiros.


Nascido em Porto Alegre, era filho de João Pedro Gomes Cardim, artista e músico português, conhecido pelas suas composições patrióticas, para tetro, sinfônicas, sacras e de salão, relacionado tanto com o meio musical do Rio como com aquele da Faculdade de Direito de São Paulo. Uma de suas principais composições teatrais foi a ópera cômica Os Argonautas, tendo o compositor, durante a sua estadia no Rio, realizado uma redução para orquestra, em 1878.



De suas obras patrióticas, pode-se destacar a sua sinfonia a grande orquestra de título Brazileira, oferecida a seus amigos Jose Pedro d'Oliveira Gaia e Domingos d'Oliveira Gaia.



Como organizador e diretor de grupos de cantores profissionais que atuavam sobretudo em festas de igreja, colaborara com a apresentação da missa de João Gomes de Araújo no Vale do Paraíba  que lançou os fundamentos de sua ida à Itália. (Veja)


Criado assim em ambiente familiar marcado pela música, Pedro Augusto Gomes Cardim foi levado a Portugal em 1875, onde fêz os estudos secundários no Porto. Retornando ao Brasil, formou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1888. Como músico, o jovem entrou na história cultura da Faculdade de Direito com uma composição, a Valsa Acadêmica.




Essa valsa acadêmica- diferentemente de muitas valsas lentas posteriores de compositores brasileiros que refletem antes a valsa inglesa ou francesa  - testemunha a recepção de valsas celeres vienenses, adequadas à juventude estudantil e, ao mesmo tempo a intensidade com que o seu compositor seguia correntes e modos de vida em moda da atualidade.  Considerar essa atenção a desenvolvimentos europeus surge como pressuposto para a análise das suas poesias que foram colocadas em música para os alunos do Conservatério. Gomes Cardim destacou-se como escritor e autor de peças teatrais, entre elas "Da Monarquia  à República" (1896), comédias e a ópera cômica Baronato. Na política, foi deputado e vereador, sendo eleito, em 1897 a intendente da capital.




Homem de ação, iniciou e realizou obras de grandes dimensões e desempenhando papel de liderança no ensino artístico. Co-atuou energicamente na criação de várias instituições, salientando-se, além do Conservatório, o Teatro Municipal, a Academia Paulista de Letras e a Companhia Dramática de São Paulo.


Outros republicanos: A. Lacerda Franco (1853-1936) e Carlos de Campos(1866-1927)


Para a fundação do Conservatório, Gomes Cardim, que tomou a si o Secretariado, contou com o apoio do Dr. Antonio Lacerda Franco (1853-1936), que ocupou o cargo de Presidente, assim como do Dr. Carlos de Campos (1866-1927), que passou a exercer a função de tesoureiro.


Antonio Lacerda Franco, influente agricultor e político de Araras, foi, assim como Gomes Cardim, convicto republicano, tendo fundado o partido republicano da sua cidade. Com a proclamação da República, transferiu-se para São Paulo, passando a fazer parte da Comissão Permanente do Partido, sendo eleito senador estadual, em 1892.


A influente posição na política e nas finanças de Lacerda Franco, assim como o seu enérgico empenho em outras instituições - como a Escola de Comércio Álvares Penteado - explicam o fato de a êle ter-se confiado a presidência do Conservatório.


Também a escolha do Dr. Carlos de Campos para a Tesouraria manifesta a similaridade de formação e a coerência política dos envolvidos na fundação da instituição.


Também Carlos de Campos era uma personalidade do interior do Estado, marcado pelo desenvolvimento cafeeiro, uma vez que nascera em Campinas, de influente família de políticos, tendo como pai Bernardino de Campos (1841-1915). Bernardino de Campos apoiara a segunda viagem de João Gomes de Araújo à Itália, em 1904, quando devia criar uma obra magna que marcasse a presença do Brasil no cenário internacional. Significativamente, essa obra, o drama lírico Maria Petrowna, foi a êle dedicada. (Veja)


Também Carlos de Campos formara-se na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1887, tendo iniciado a sua carreira política em Amparo, em 1890, tendo sido deputado estadual de 1895 a 1915. Carlos de Campos permaneceria por décadas estreitamente vinculado ao Conservatório, o que explica também o significado da Revolução de 1924 na história do estabelecimento.


Com a diretoria assim constituida, o Conservatório foi fundado no dia 15 de fevereiro de 1906. Instalou-se no dia Primeiro de Março do mesmo ano, quando foi solenemente inaugurado.


No dia 12 de Março de 1906, realizou-se uma sessão matinal de inauguração com a presença do Presidente do Estado Dr. Jorge Tibiriçá (1855-1928) - destacado republicano e presidente do Partido Republicano Paulista (PRP). Deputados, secretários, presidente e vereadores da Câmara estiveram nela presentes. Já esse fato testemunha o significado concedido à instituição nos meios políticos da cidade e do Estado.


É à luz dessas implicações políticas da iniciativa do Conservatório que merecem ser consideradas as nomeações de seus professores. O seu corpo docente manifestava de início o pêso concedido às artes dramáticas. A essa seção pertenciam, além do próprio Gomes Cardim,além de várias personalidades formadas na Faculdade de Direito que se dedicavam ao teatro e atores, entre êles Dr. Pinheiro da Cunha, Dr. Wenceslau de Queiroz e Dr. Adolfo Araujo, Hipólito da Silva e Augusto Barjona.


Para a seção musical, foram convidados, para além de João Gomes de Araújo, os seguintes professores: Antonio Carlos de Andrade, Giulio Bastiani, Paulo Florence, Felix Otero, Luigi Chiafarelli, Guido Rochi e Paulo Tagliaferro. Entre os professores da seção de música, cumpre salientar João Gomes de Araújo, uma vez que, assumiu as classes de canto e de canto coral, fundamentais para a representação pública do Conseravtório. Significativamente, o concerto matinal de inauguração do Conservatório foi organizado por João Gomes de Araújo. Todo o empenho dos primeiros meses da instituição foi dado à preparação de alunos de cantos e de coros que se apresentaram em recital logo após três meses.


Instalação em representativo edifício já existente - o do salão "Steinway"


Foi primeiramente sediado em casa que tinha sido residência da Marquesa de Santos, situada entre a rua Brigadeiro Tobias e a ladeira de Santa Ifigênia. Com a presença de personalidades influentes na política e na economia na diretoria da instituição, tornou-se possível alcançar auxílios do Govêrno que, ao lado de recursos obtidos em loterias, permitiram á congregação adquirir representativo edifício na principal via da cidade. Tratava-se de prédio construído pelo industrial Frederico Joaquim, que possuia um representativo salão, o "Salão Steinway". Este, uma das principais salas de concerto da cidade, surgia como particularmente adequado ao Conservatório. A instituição passava assim a possuir a melhor e mais distinta sala de música de São Paulo.


As novas instalações foram inauguradas no dia 14 de Outubro de 1909. A solenidade foi aberta com a execução do poema musical "Pátria" de João Gomes de Araújo. Na segunda parte, representou-se o primeiro ato de "Os Solteirões", em tradução de Latino Coelho. A terceira parte constou de oito peças musicais para piano, flauta e canto. A execução foi confiada aos melhores alunos do Conservatório, às pianistas Nair de Carvalho, Maria Lacaz Machado, Ruth Vergueiro e Maria Odete de Figueiredo, ao flautista J. Teodoro e às cantoras Ercilia Suplicy, Rosita Wamberg e Alice Fischer.


Ponto alto da solenidade foi a execução de "Les nymphes des bois" de Leo Delibes (1836-1891) pelos alunos do curso de canto coral com acompanhamento de orquestra sob a regência de João Gomes de Araújo.


Tematizava-se, aqui, já na fundação do Conservatório o motivo da ninfa, adequado por diversos motivos às concepções e à constituição do corpo discente da instituição. Este tema voltaria a ser tratado em peça que passou a fazer parte do repertório do côro, composta pelo próprio João Gomes de Araújo com base na tradição oral napolitana. (Veja)


Discrepância entre arquitetura historicista do edifício e a instituição


O prédio adquirido, um dos edifícios mais representativos edifícios da capital e privilegiadamente situado, não foi assim construído especificamente para o Conservatório.


O estilo arquitetônico que se manifesta na sua fachada correspondia a anelos de representação e de suas funções anteriores, não àquelas das idéias condutoras e mesmo político-culturais daqueles que se congregaram para a sua fundação. O Historismo que se evidencia na sua aparência externa e na do seu salão não bem correspondiam às tendências mais recentes dos principais de seus iniciadores e professores. Assim como num teatro pode-se encenar obras de épocas posteriores à sua construção, também o edifício adquirido passou a abrigar correntes do pensamento e da prática mais recentes, não correspondentes, re-interpretadoras e em partes contrárias à linguagem visual historicista do edifício.


A discrepância entre a arquitetura e a instituição que nela tomou moradia levou a problemas de compreensão adequada das tendências que orientaram a criação do Conservatório, levando a suposições de um conservativismo ou mesmo reacionarismo que não correspondeu à singular modernidade de intentos, ainda que politicamente estivessem inscritos em espectro que hoje poderiam ser considerado como de direita.


Essa problemática intensifica-se, porém, ao considerar-se que arquitetura e instituição interagiram-se no decorrer das décadas, obscurecendo os intuitos renovadores dos primeiros tempos, fazendo com que o Conservatório surgisse de fato muito posteriormente, após a Segunda Guerra, como templo da história e do tradicionalismo. Analisar os intuitos que deram origem á sua criação e conduziram as suas atividades nos primeiros tempos surge porém como necessidade para que se compreenda os pressupostos do papel desempenhado pelo Conservatório no período de entre-Guerras.


Aproximações a concepções condutoras do Conservatório


Esse espírito condutor da instituição era antes voltado ao presente, imbuido de anelos de renovação que tinham a sua correspondência em movimentos europeus da passagem do século e do período anterior à Primeira Guerra e que, apesar de todas as diferenças, apresentavam elementos comuns, tais como o Art Nouveau, o Jugendstil ou o estilo Liberty dos italianos.


Mais adequado teria sido a instalação do Conservatório em prédio que correspondesse arquitetônicamente a essa época tão marcada por anelos de coerência na superação de fronteiras entre a arte e a vida, de formas de expressão consideradas elevadas com as de uso quotidiano. Ideal teria sido um edifício como o da Escola de Comércio Alvares Penteado.


Não tanto a história ou épocas passadas, mas sim a natureza, sobretudo a vegetal, surgia como referencial do pensamento. A mulher, como na linguagem visual do Art Nouveau esbeltas, elegantes, esvoaçantes, etéreas - as ninfas do Conservatório - constituia o foco das atenções numa instituição na qual alunas constituiam a maioria.


Como o seu nome indica, o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo obedecia a uma concepção artística peculiar que abrangia tanto as artes dramáticas como a música. Inseria-se aqui na antiga tradição dos conservatórios remontantes à Itália, uma vez que neles se formavam músicos e artistas para o teatro.


Também na fundação do Conservatório Imperial de Música do Rio de Janeiro, que similarmente tinha como um de seus objetivos formar artistas competentes para o teatro, a declamação fêz parte integrante das ofertas de ensino. Já na sua inauguração lembrara-se dos elos entre teatro e música na Antiguidade, mencionando-se imagens da mitologia. Entretanto, o pêso dado ao dramático na concepção do Conservatório deve ser considerado no contexto modificado de fins do século XIX e início do XX.


Os elos entre o teatro e a música basearam-se, em São Paulo, em convicções estéticas relativas às relações intrínsecas entre as duas expressões artísticas e que tinham a sua fundamentação na Antiguidade Clássica, nas interações entre a música, a tragédia e a comédia, porém segundo a recepção de obras publicadas na Europa relativas à mitologia, em particular a Orfeu.


Não considerar essa concepção motora da instituição, dirigindo o olhar apenas a seu papel como instituição de ensino musical, leva a uma redução de seu significado e à não compreensão do edifício de idéias e imagens que explica posições e realizações de Gomes Cardim.


Também a tradição em que se inseria João Gomes de Araújo, emprestando particular acento ao canto lírico, solista e coral, vinha de encontro às concepções estéticas de Gomes Cardim quanto às íntimas relações entre a música e o drama. Consequentemente, o canto lírico predominou no ensino do Conservatório nos anos que precederam a Primeira Guerra.


Sob o signo da internacionalidade na transformação cosmopolita de São Paulo


O Conservatório nasceu e desenvolveu-se sob o signo da internacionalidade, seja devido à origem, à formação ou à orientação de seus professores, tendo sido expressão de uma época do desenvolvimento cultural, artístico e educativo na Europa e da cidade de São Paulo em transformação urbana e social possibilitada pelos seus numerosos imigrantes. Foi, ao mesmo tempo, uma iniciativa fundamentada e conduzida em contexto político determinado e por um círculo de personalidades relacionadas entre si por convicções políticas, em particular do Partido Republicano Paulista. Surgia, como instituição a serviço da formação cívica, voltada ao progresso e à ordem segundo esse direcionamento político de classes que passaram a ser dominantes.


O Conservatório Dramático e Musical de São Paulo adquire assim um significado para os estudos de instituições de ensino artístico e musical nas suas dimensões mais amplas e sobretudo naqueles que enfocam concepções e práticas de ensino nas suas inserções em interações culturais.


O Conservatório surge como um testemunho do espírito de progresso e da convicção do significado das artes do início do século XX, de um idealismo construtivo da Belle époque paulistana, tendo alcançado o seu ponto de maior brilho no ano em que eclodiu a Primeira Grande Guerra.


Internacionalidade em época de imigrações e política internacional


O apogeu do Conservatório deu-se nos anos e meses que imediatamente precederam a eclosão da Guerra de 1914. Como uma das mais significativas instituições paulistas, recebeu a visita de destacados representantes da vida artística e musical, brasileira e internacional. Uma delas foi a de Pietro Mascagni (1863-1945), o compositor celebrado da Cavalleria rusticana (1889) nos meios italianos de São Paulo.


A sua popularidade superava aquela dos círculos artísticos, dos quais João Gomes de Araújo era um dos principais representantes. Ela se estendia aos operários de bairros que se tornavam centros da italianidade, como o Brás com o seu Teatro Colombo, um edifício representativo da Belle Époque paulistana nos seus elos com a imigração.


Devido justamente à internacionalidade de seu corpo docente e dos contextos em que se inseria, sofreu em particular com as tensões e os conflitos entre as nações européias e que tiveram ressonância no meio imigratório, entre estrangeiros e entre estes e brasileiros. A entrada do Brasil na Guerra e sobretudo o seu desfecho foram marcos de mudança de era e de orientações, obrigando a instituição a seguir caminhos antes regionais e nacionais.


A história da instituição foi aqui e posteriormente marcada por processos político-culturais e de identidade de seus professores. Situações da política internacional condicionaram posições de retraimento, de  reserva, de evitamento de extroversões que pudessem ser tomadas a mal pela sociedade brasileira, fazendo com que uma instituição que nascera em auto-consciência e vitalidade adquirisse uma feição singular de semi-obscuridade cultivada, sentida como por demais conservadora.


Sempre refletindo desenvolvimentos políticos europeus, vivenciou mudanças de referenciais artísticos no decorrer das décadas, de peso e autoridade de seus professores de diferentes origens e formações.


Obras remontantes aos anos iniciais do Conservatório e imbuídas do seu espírito continuaram a ser executadas em décadas posteriores, mantendo assim uma continuidade  apesar das transformacões. Uma delas foi o poema lírico Trilogia da Noite, com texto de Jacques d'Avray, de natureza descritiva, executado no Conservatório em 1929 com solos, coros e orquestra sob a sua regência.


Os elos do Conservatório com personalidades influentes da política mantiveram-se durante décadas e a música foi fator de estreitamento de relações.João Gomes de Araújo escreveu um hino à Marinha de Guerra Brasileira em homenagem ao Ministro Protogenes Guimarães (1876-1938), executado pela Banda da Força Pública, no dia 26 de Fevereiro de 1935.


A Segunda Guerra Mundial e o seu desfecho pode ser considerado neste sentido como outro marco na história da instituição. Diferentemente da época de 1914-1918, a instituição apenas pode manter por poucas décadas a posição de liderança que alcançara. Um processo de decadência fêz-se sentir de forma acentuada, que não pôde ser detido com mudanças institucionais, de mantenedoras e de elevação a nível superior.


Neste sentido, o conservatório modêlo da cidade e do Estado teve o mesmo fim dos muitos outros que procuraram corresponder ás mudanças do ensino musical implantadas por uma política nem sempre lúcida e respeitadora da diversidade de organismos de longa história, indissoluvelmente vinculados ao desenvolvimento cultural da cidade e do Estado. Triste é assim a história final do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, marcada por desapropriações e dissolução de seu considerável patrimônio instrumental, arquivístico e de biblioteca, dispersos estes entre outras instituições.


Seria como se Paris não renovasse, mas acabasse com o seu tradicional Conservatoire, êle próprio bem cultural, dispersando os seus documentos em centros culturais municipais ou em recentes departamentos de música de escolas de comunicações e artes.


O Conservatório Dramático e Musical de São Paulo foi durante décadas a principal instituição de ensino musical da capital e do Estado, escola modêlo de muitos outros conservatórios, centro de formação de músicos, compositores e professores de música, de irradiação de tendências estéticas e da prática musical, sede de concertos e conferências, visitado por artistas de renome mundial, e mesmo pedra angular e referencial na política cultural e artística de São Paulo, não podendo em absoluto deixar de ser considerado em toda e qualquer consideração do passado musical paulistano da primeira década do século XX.


Súmula de trabalhos da A.B.E.e do I.S.M.P.S. sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo, Universidade de Colonia




Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“ Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Uma instituição da
Belle Epoque paulista
nas suas inserções em processos político-culturais“
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 160/7 (2016:02). http://revista.brasil-europa.eu/160/Conservatorio_Dramatico_e_Musical.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
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Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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