"O dolce Italia... io debbo dirti addio!"
ed. A.A.Bispo
Revista
BRASIL-EUROPA 160
Correspondência Euro-Brasileira©
"O dolce Italia... io debbo dirti addio!"
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BRASIL-EUROPA 160
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N° 160/8 (2016:2)
"O dolce Italia dal ciel ridente, io debbo dirti addio!
A tarantella napolitana e o adeus à Itália em Maria Petrowna
no cenário político internacional antes da Primeira Guerra
e na na vida musical ítalo-brasileira de entre-guerras
100 anos de morte de Bernardino José de Campos Júnior (1841-1915)
Presidente do Estado de São Paulo (1892-1896 e 1902-1904)
Para um país que teve uma imperatriz napolitana e de formação musical como o Brasil - Dona Teresa Cristina (1822-1889) - , as extensões internacionais da vida musical napolitana, assim como da recepção de obras, estilos e concepções de ensino e da prática musical de Nápoles no Brasil merecem particular atenção.
Ainda maior atenção merecem os músicos napolitanos que viveram e atuaram no Brasil, tais como os irmãos Arnaud (Veja), Archangelo Fiorito (1813-1887) (Veja) e outros.
Há, porém, elos menos diretos e dimensões mais amplas da recepção de Nápoles no Brasil.
Como cidade e região marcada por tradições populares de música e dança, Nápoles desempenhou importante papel na Itália que procurava valorizar o seu passado e a sua cultura popular em época marcada por anelos de ressurgimento e de unificação em Reino nacional.
Esse movimento interno italiano não deixou de ser acompanhado pelo Brasil e de ter consequências para as relações ítalo-brasileiras. Foi esse complexo político-cultural não isento de tensões e ambivalências que foi trazido por imigrantes e que marcou a formação de brasileiros em outros centros italianos. Essa recepção de Nápoles procedeu-se assim também indiretamente através de impulsos recebidos em cidades do Norte da Itália, como Milão ou Turim.
O interesse brasileiro pelas letras, pela cultura e pelas tradições populares italianas foi acentuado no Brasil sob Dom Pedro II (1825-1891). Significativo foi o fato de Renato Fucini (1843-1921, poeta e escritor conhecido como Neri Tanfucio, ter- oferecido, em 1872, a sua obra "Cento sonetti in vernacolo pisano", lançada em 1871. (Veja)
A obra que mais evidentemente manifesta o fascínio de brasileiros pelas tradições populares italianas, em particular napolitanas, transpondo mesmo Nápoles para o palco, cai, porém no período republicano. Trata-se do drama lírico Maria Petrowna, do compositor paulsita João Gomes de Araújo (1846-1943). Essa composição do compositor paulista foi criada em 1904 durante a sua segunda viagem a Milão.
A obra foi dedicada a Bernardino José de Campos Júnior (1841-1915), Presidente do Estado de São Paulo (1892-1896 e 1902-1904) pelo apoio que concedeu à viagem e estadia na qual deveria criar uma obra significativa, capaz de projetar internacionalmente o compositor e representar o Brasil como nação de progresso, à altura dos demais países em desenvolvimentos internacionais.
Em 1898, o Brasil estivera presente na primeira mostra ítalo-brasileira no âmbito da Exposição Internacional de Turim. Nela, apresentaram-se trabalhos desenvolvidos em missões indígenas de missionários italianos atuantes no continente americano e produtos de imigrantes italianos residentes no país. (Veja) Esse evento foi seguido, em 1899, pela Esposizione della Società Promotrice di Belle Arti (catálogo: Torino, Roux Frassati e C., 1899). Nessa ocasião, apresentou-se a primeira sinfonia de João Gomes de Araújo. Com essa obra, o compositor paulista mostrava-se à altura das tendências de desenvolvimento da música instrumental e da recepção de L.van Beethoven na Itália a partir da França, uma vez que aquela se orientava cada vez mais segundo Paris.
Precedentes: de Edmeia, Carmosina a Maria Petrowna
O projeto de criação de uma ópera que possibilitasse o reconhecimento internacional de João Gomes de Araújo e fosse digna de marcar a presença do Brasil no concêrto das nações foi resultado de estudos e atividades anteriormente desenvolvidas no gênero lírico pelo compositor na Itália e no Brasil, assim como do interesse de representação por parte do govêrno republicano brasileiro. Esse interesse tinha finalidades práticas, servindo à expansão econômica e à recuperação do prestígio como nação civilizada e progressista no Exterior. (Veja)
João Gomes de Araújo realizara em fins do Império - e com apoio de Dom Pedro II - estudos no Conservatorio di Milano. Seguia, na sua carreira, os passos de Antonio Carlos Gomes, o seu admirado modêlo já da época de sua formação no Rio de Janeiro e de atividades no vale do Paraíba.
Em Milão estudou, entre 1884 e 1888 com Cesare Dominiceti (1821-1888), também professor do seu filho, o compositor João Gomes (de Araújo) Júnior (1868-1963).
Dominiceti, que também se formara no conservatório milanês, garantiu a integração do brasileira na vida operística italiana. À época da chegada do compositor paulista, fazia parte da comissão julgadora de óperas apresentadas a concurso do editor Sonzogno, presidida por Amilcare Ponchielli (1834-1886), professor de composição no conservatório desde 1883, mentor, entre outros, de G. Puccini (1858-1924) e P. Mascagni (1863-1945). Em particular, mantinha contatos estreitos com o Teatro Dal Verme, no qual levara, em 1873, o seu celebrado Morovico.
Compreende-se assim, que, no ano em que finalizou os seus estudos, o brasileiro teve a oportunidade de ver representada a sua obra Carmosina no Teatro Dal Verme. Esse teatro da Via San Giovanni sul Muro, inaugurado em 1872, encontrava-se no período áureo de sua história, sendo uma das mais renomadas casas de ópera da Europa. Ali representara-se, no ano da chegada do compositor, a ópera Le Villi, de G. Puccini.
Durante a elaboração da sua obra, o compositor procurou Dom Pedro II em Cannes, onde se encontrava em tratamento, para assistir à estréia da ópera. Este, com outros membros da família imperial, honrou com a sua presença a representação. Diferentemente até mesmo de seu professor Dominiceti, que não poucas vezes alcançou apenas moderado sucesso com as suas obras, João Gomes de Araújo teve a alegria de ver Carmosina levada quatro vezes.
Foi o sucesso que garantiu o seu renome no Brasil e assegurou a representação da ópera em São Paulo, em 1901, e no Rio de Janeiro, em 1903, por companhia italiana.
Uma obra que não trata de assunto nacional - motivos políticos e de imagem
Um fato que surge como singular ao considerar-se a obra de João Gomes de Araújo é que ela não trata de assunto nacional brasileiro. Foi um motivo de críticas e fator da reduzida atenção à obra na literatura histórico-musical brasileira.
Cumpre considerar que a decisão de não tratar uma temática brasileira foi consciente por parte do compositor. Embora tendo sido aconselhado insistentemente por amigos para que tratasse de tema nacional ao viajar à Itália no início do século, não aceitou as sugestões.
Segundo os seus amigos, se A. Carlos Gomes tinha projetado o Brasil no Exterior através do Il Guarany, João Gomes de Araújo devia prosseguir na criação ou intensificação de uma imagem do Brasil marcada por temática indígena através da criação de um drama lírico, tendo-se sugerido os Os Guayanases do General José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898). Essa obra possibilitaria grandes efeitos cênicos com a presença de indígenas no palco. Justamente esse fato, porém, surgia como inoportuno para a imagem do Brasil no Exterior. Se já A. Carlos Gomes renunciara a tratar novamente de temática indígena, compreende-se que João Gomes de Araújo, algumas décadas mais tarde, também tenha visto como inconveniente tratar musicalmente Os Guayanases.
O afastamento da temática indígena relacionou-se aqui estreitamente com os problemas da imigração italiana. Os muitos imigrantes italianos que retornavam à Itália amargurados por insucessos e pelas circunstâncias encontradas em regiões coloniais, criavam uma imagem extremamente negativa do Brasil. Essa propaganda negativa, na qual se exageravam experiências quanto à primitividade e mesmo a ataques de "bugres" em colonias seria acentuada por uma obra que colocasse indígenas em cena, prejudicando assim a política e/imigratória e a representação do Brasil no Exterior. Repetiu-se, na Itália, com décadas de atraso, o prejuízo para o renome e a seriedade do Brasil na Alemanha causados por relatos de imigrantes frustrados nas suas expectativas e daqueles retornados que dramatizavam as suas experiências para justificar os seus próprios insucessos.
A recusaem tratar assunto indígena, voltando-se antes a uma temática histórica italiana, foi, assim, na visão do compositor, uma decisão até mesmo cívico-patriótica de defesa dos interesses nacionais. O assunto a ser escolhido, embora histórico, devia ter significado para a atualidade, conferindo, assim, à obra interesse e relevância.
Ferdinando Fontana (1850-1919) e o grupo dos "descabelados"
O assunto a ser tratado na obra projetada foi tratado em encontros de João Gomes de Araújo com músicos, professores do Conservatório, intelectuais, libretistas em Milão.
Assim como Antonio Carlos Gomes, João Gomes de Araújo aproximou-se, em Milão, do grupo Scapigliatura. Nesse grupo, entrou em contato com Ferdinando Fontana, um poeta, autor de peças teatrais, tradutor e libretista que mantinha relações com Giacomo Puccini, para o qual preparou os libretos Le Villi (1884) e Edgar (1889). Trabalhara como jornalista no Corriere della Sera e, Correspondente da Gazzetta Piemontese (La Stampa), interessando-se por estudos da cultura popular, em especial de dialetos. Tendo apoiado a revolta dos trabalhadores de 1898, precisou fugir para a Suiça.
O assunto, tratado por Fernando Fontana, baseou-se em peça do dramaturgo napolitano Michele Cucinièllo (1823-1889). Este autor, ainda que se dedicando em geral a temas históricos, como em Maria Tudor (1846) e Caterina II (1874), neles considerava problemas sociais. Segundo a tradição, G. Verdi (1813-1901) ter-se-ia interessado pelo assunto, não o tratando apenas devido ao fato do mesmo já ter sido escolhido pelo brasileiro.
Maria Petrowna e o Verismo
Com a escolha do assunto, João Gomes de Araújo mostrava estar em sintonia com tendências mais recentes da criação operística. Assim como óperas que gozavam de grande popularidade - como Cavalleria rusticana de P. Mascagni (1863-1945) ou I Pagliacci de R. Leoncavallo (1857-1919) - o libretto permitia que, apesar da obra iniciar-se quase como comédia, tivesse um desfecho sério, mesmo trágico. Êle permitia que, similarmente a outras óperas do Verismo, a obra se iniciasse com uma festa tradicional em meio popular, no caso de camponeses e pescadores de Nápoles. O compositor brasileiro partia assim de um meio popular de camadas sociais mais simples, não brasileiras, mas italianas, dele desenvolvendo-se uma trama política que levava aos mais altos círculos da aristocracia russa - da aldeia de Nápoles a palácio de S. Petersburgo.
Maria Petrowna no contexto político internacional
Poucas obras de compositores brasileiros foram concebidas tão conscientemente para corresponder à atualidade política internacional como Maria Petrowna.
Escolhendo um assunto histórico ítalo-russo, João Gomes de Araújo vinha de encontro ás atenções que o Império Russo despertava devido à Guerra Russo-Japonesa. As tensões entre os dois impérios tinham-se acentuado já em 1903, eclodindo o conflito com o ataque japonês a Port Arthur em fevereiro de 1904.
A época da concepção e elaboração da ópera foi assim marcada pelas notícias dos conflitos e das batalhas que, em outono de 1905, levariam à derrota russa. A apresentação da primeira versão de Madame Butterfly de G. Puccini (1858-1924) em Milão, em fevereiro de 1904, permite avaliar a atualidade de confrontos, tensões e interações entre o Ocidente e o Extremo Oriente nos meios intelectuais e artísticos.
O desenrolar do conflito e o seu desfecho levou a uma onda de simpatia pela Russia - pela primeira vez uma potência ocidental foi derrotada por nação asiática -, podendo-se assim explicar o interesse do brasileiro pela história e pela cultura russa, em particular pelo seu folclore musical e de danças.
Dedicando-se à temática russa no contexto da guerra russo-japonesa, a obra do compositor paulista assume uma considerável relevância nos estudos culturais em relações internacionais. Ela se insere em época que determinou desenvolvimentos de grandes consequências para a Rússia, para o movimento revolucionário, precedendo a Primeira Guerra e, por fim, à Revolução de 1917.
O drama lírico de João Gomes de Araújo pode assim ser considerado como expressão de uma participação cultural brasileira em conflito bélico de dimensões internacionais e que é visto sob determinados aspectos como precursor da Primeira Guerra Mundial.
De aldeia ao mar de Nápoles a palácio de S. Petersburgo
O enrêdo decorre em 1766 nos arredores de Nápoles, na praça de uma aldeia próxima ao mar.
Inicia-se na comemoração ruidosa do casamento de Laura Bianchi e Alexis Derfutzel, com danças e cantos regionais. A entrada dos noivos é comemorada com entusiásticas saudações e flores.
Inicia-se com uma tarantela, em lá menor.
Alexi oferece à esposa além da aliança um anel que pertencere à sua mãe e que servirá de talismã. Pede, em troca, um outro que usa, que fora de seu pai. Laura recusa, pois esse anel contém um veneno e traz infelicidade. Só o tirará no dia em que perer o amor de Alexis, para com ele se matar. Ivan Burque chega, enviado da Rússia por Gregorio Orloff, irmão de Alexis e favorito da Imperatriz Cataria com a missão de levar Alexis para a Rússia. Alexis, indignado, trata Ivan como m lacaio.
O primeiro quadro do primeiro ato passa-se no salão o Palácio Imperial de São Petersburgo. O segundo quadro, no gabinete particular do Paço Imperial tendo ao fundo larga porta que dá para o salão de baile, onde toda a corte dança animadamente. O segundo ato decorre em sala no castelo de Kanzoff, no qual, segundo a história, existe uma passagem subterrânea que comunica com o Paço imperial.
O prólogo passa-se em Napoles e nele se destaca um tercetto e o Adeus à Itália Foi este canto que provavelmente justificou que o compositor fosse agraciado mais tarde com o titulo de comendador da Coroa da Itália.
O "O dolce Italia dal ciel ridente, io debbo dirti addio! Come un bel sogno nella mia mente...") - que possivelmente manifestou também sentimentos do autor, não poderia deixar de emocionar os italianos e, posteriormente, aqueles residentes no Brasil.
A frustrada realização do drama lírico na Itália
Pelas suas dimensões e grande número de participantes que exigia, a realização do ambicioso drama lírico do músico brasileiro não podia ter sido fácil. O intuito de João Gomes de Araújo era o de apresentá-lo na Itália logo após à sua composição, uma vez que vinha de encontro a uma situação internacional de atualidade.
Procurou, para isso, a empresa G. Belletti, uma das mais renomadas de Milão, responsável por grandes encenações em teatros como o Dal Verme, com ela fechando um contrato com avultada soma a ser paga em parcelas. Após ter pago a metade, o empresário exigiu o restante de uma só vez devido aos grandes custos de montagem. Após ter recebido o pagamento, o empresário retirou os cantores de nome, substituindo-os por outros quase desconhecidos, reduziu a massa coral, o número de bailarinas e realizou cortes que diminuiam o efeito da encenação. Constatando a situação precária da companhia, João Gomes de Araújo confrontou-se com a necessidade de tomar medidas legais. Um longo processo judicial teve início para a recuperação do material em posse da empresa. Assim, apesar de receber proposta de Pavia, a obra não chegou a ser representada na Itália.
A frustração do acalentado projeto teve consequências não apenas pessoais. Para além das perdas financeiras e das decepções, impediu que a obra fosse apresentada no seu contexto epocal adequado. Perdendo o momento de sua atualidade, sendo executada apenas um quarto de século após a sua criação, e nunca na Itália, tornou-se uma obra eternamente ligada a um passado, passando a ter o anacronismo como característica.
Helena - realizada em anos marcados pela Primeira Guerra Mundial
Retornando a São Paulo, sem perder as esperanças de recuperar os materiais da ópera e ainda realizá-la, o compositor dedicou-se a partir de 1906 a suas atividades de ensino de canto e canto coral no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, colaborando intensamente a que, em poucos anos, se tornasse uma das mais representativas e renomadas instituições da cidade e mesmo do Brasil. Os elos com os desenvolvimentos estéticos da criação lírica contemporânea continuaram vivos, para isso contribuindo trocas de idéias com visitantes brasileiros e estrangeiros do conservatório, entre os quais se destacou P. Mascagni.
Esse desenvolvimento do Conservatório foi interrompido na sua intensidade com a eclosão da Primeira Guerra em 1914, que abalou profundamente uma instituição tão marcada pelos seus elos com a Europa e com a imigração italiana no Brasil. Assim como Maria Petrowna tinha sido criada em função de conflito internacional, o compositor procura, no âmbito do Conservatório, corresponder à situação política com uma nova obra. Sob diferentes aspectos manteve a tradição em que se inseria, agora, porém, escolhendo um assunto brasileiro. Também aqui foi uma obra referenciada segundo uma figura feminina - Helena -, um só ato como outras popularizadas do Verismo - e também aqui partia de meio tradicional e popular, no caso do interior brasileiro. Se em Maria Petrowna tinha sido a tarantella em aldeia napolitana referência caracterizadora, em Helena a festa de São João, tão bem conhecida pelo compositor de sua infância e juventude no Vale do Paraíba.
Significativamnete, a ópera teve a sua estréia no dia festivo francês da tomada da Bastilha, o 14 de Julho de 1916, no Teatro Municipal. O Brasil era alcançado por notícias dos desenvolvimentos da guerra, dos horrores da batalha de Verdun e da procura de reconquista pelos franceses de territórios a leste do Maas, de modo que a sessão no Municipal representava um posicionamento político e uma participação intelectual e artística. Os italianos no Brasil sentiam-se particularmente abalados pelos acontecimentos que levariam, no mês que se seguiu ao concerto, à situação declarada de guerra da Alemanha.
A representação de Maria Petrowna após a Guerra
Impedida de ser encenada no início do século, a execução de Maria Petrowna em São Paulo, em 1929, deu-se em época político-cultural totalmente diversa.
Se por um lado a sua realização foi gratificante para o compositor, que teve na sua juventude a decepção e os prejuízos de vivenciar a frustração do seu mais acalentado projeto, não foi, por outro, apenas uma demonstração nostálgica daquilo que poderia ter criado o compositor caso tivesse sido mais apoiado ou ter tido outra sorte na sua projeção internacional no passado.
A obra encontrava-se defasada das tendencias da época, não apenas quanto à sua linguagem estilística; em anos de entusiasmo e propaganda nacionalista, surgia como uma ópera não-nacional pelo seu assunto.
Nela, ao contrário, o compositor esforçara-se em estudar outras culturas, em captar empaticamente outras atmosferas e tradições de música e dança. Revelava o esforço do autor brasileiro em tratar de contextos europeus, no caso italiano e russo, uma espécie de singular exotismo, no qual o europeu surgia como o outro.
Ela lembrava, também, que era até mesmo muito mais difícil sentir a música na alma de outro povo, do que no próprio país natal do compositor. O seu assunto tinha exigido muitos mais estudos históricos, culturais e musicais por parte de João Gomes de Araújo do que Helena.
O significado da representação da obra em 1929, porém, não pode ser reconhecido adequadamente apenas através desses argumentos registrados na literatura. Torna-se necessário considerar as razões político-culturais que explicam a sua redescoberta e realização.
Os círculos italianos do Centro Musical de São Paulo e Maria Petrowna
A execução da obra apenas foi possível com o empenho de músicos de círculos da imigração italiana de São Paulo. Estes eram os italianos que pertenciam ao Centro Musical de São Paulo, entidade que - apesar da sua designação - surgia como uma organização de classe profissional.
A empresa agregava cantores e músicos de orquestra que, na época eram dirigidos pelo internacionalmente renomado maestro Guido Picco. Os principais papéis da ópera foram assim desempenhados por cantores italianos e ítalo-brasileiros Anita Comti, Augusto Cingolani, Bruno Carmassi, Amalia Bertola, Conrado Tatanti, Eugenio Dall'Argine, Salvador Perrota e Renato De Pascale.
Também os irmãos Belardi apoiaram o evento, fazendo questão de nele participarem. Esse apoio era devido ao fato de ser João Gomes de Araújo estreitamente vinculado à Sociedade Beneficiente Benedetto Marcello - o futuro Conservatório Musical Carlos Gomes.
A realização da ópera por essa entidade italiana pode ser compreendida no contexto do exacerbado nacionalismo brasileiro da época. Com ela, os italianos procuravam ganhar simpatias através da escolha de uma obra de compositor brasileiro, ainda que criada na Itália e tratando de tema napolitano.
Essa primeira realização de Maria Petrowna pode ser assim considerada sob a perspectiva dos estudos culturais da imigração italiana em São Paulo nos complexos processos político-culturais de fins da década de 20. Ao mesmo tempo, a realização da obra surgia - ou poderia ser sentida - como uma manifestação que contrariava tendências nacionalistas na linguagem musical.
Ela servia para lembrar que a liberdade criativa do compositor não poderia ser restrita e que muitos outros compositores de renome se dedicaram a outras culturas, como G. Verdi ou G. Puccini. Pelo contrário, o seu mérito residia justamente nessa abertura do criador a outras culturas, o que exigia estudos e esforços de empatia.
A estréia brasileira em homenagem ao Dr. José Pires do Rio (1880-1950)
João Gomes de Araújo, que nunca perdera a esperança de ver realizada a sua obra de juventude, criada à época do Presidente Bernardino de Campos, à qual foi dedicada, contara com o apoio do seu grande amigo de décadas, o político, intelectual e músico Dr. Carlos de Campos (1866-1927), personalidade estreitamente vinculada ao Conservató´rio. Essa expectativa, porém, foi frustrada com a morte de Carlos de Campos.
Novas perspectivas abriram-se com a simpatia que o Dr. José Pires do Rio (1880-1950), Prefeito de São Paulo de 1926 a 1930, dedicava ao Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Essa simpatia pela instituição era sobretudo devida à amizade familiar de anos com João Gomes de Araújo, uma vez que também Pires do Rio nascera no Vale do Paraíba, em Guaratinguetá.
Por êle motivado, o compositor entrou com um requerimento junto à Câmara Municipal para que a Prefeitura concedesse um substancial apoio financeiro para possibilitar a montagem da sua obra e a execução pelos músicos do Centro Musical de São Paulo. Esse auxílio foi autorizado por decreto em maio de 1928. Por essa razão, a estréia da obra foi dedicada ao Prefeito Dr. Pires do Rio e à Câmara Municipal de São Paulo.
Correspondente a esse apoio oficial, à realização da obra estiveram presentes grande número de autoridades civís e militares do Estado e da capital, constituindo um evento de considerável significado político.
A execução de Maria Petrowna no Rio de Janeiro, em 1937
Em ambos os casos tratou-se do conquistar a simpatia de autoridades e do público por parte da vida musical e operística italiana pelo fato de escolher-se uma obra de autor nacional e, ao mesmo tempo, de trazer à lembrança o fato de brasileiros terem escrito obras em italiano e com assunto italiano.
Significativamente, a realização de Maria Petrowna no Rio deu-se um ano após as celebrações do centenário de Antonio Carlos Gomes em São Paulo e na capital do país. Essas festividades tinham sido intensas em São Paulo, nelas desempenhando o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo importante papel, não por último devido ao empenho de João Gomes de Araújo.
Casada com o industrial Henrique Lage (1881-1941), era personalidade de influência em círculos de liderança da capital do país.
Tendo fundado, no início de 1937, a companhia Sociedade Anônima Teatro Lírico Brasileiro, composta por artistas residentes no país, surgiu como politicamente conveniente incluir, como primeira ópera de autor nacional, a obra do compositor paulista. Maria Petrowna era uma obra de autor brasileiro, mas profundamente relacionada com a Itália. A obra foi interpretada por artistas brasileiros e ítalo-brasileiros, entre êles Adjaldina Fontenele, Heloisa de Albuquerque, Mario Di Lorenzo, Eduardo Vasconcelos, Lisandro Sergenti, Salvador Perrota, Mario Ernani Simoni, sendo a orquestra dirigida por Eduardo de Guarnieri (1899-1968). Os bailados estiveram sob a direção de Maria Olenewa (1896-1965).
Entre os compositores brasileiros que assistiram à apresentação, salientaram-se aqueles que mantinham relações de amizade com João Gomes de Araújo, entre êles Francisco Braga (1868-1945). Nessa ocasião, pretou-se uma homenagem a Francisco Manuel da Silva (1795-1865), o professor de João Gomes de Araújo. Estabeleceu-se, assim, simbolicamente, uma ponte com o passado brasileiro da época de sua formação no Conservatório Imperial de Música.
Súmula de trabalhos da A.B.E.e do I.S.M.P.S. sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo, Universidade de Colonia
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“A tarantella napolitana e o adeus à Itália em Maria Petrowna no cenário político internacional antes da Primeira Guerra e na na vida musical ítalo-brasileira de entre-guerras“.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 160/8 (2016:02). http://revista.brasil-europa.eu/160/Maria_Petrowna.html
Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha
Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne
Corpo consultivo - presidências: Prof. DDr. J. de Andrade (Brasil), Dr. A. Borges (Portugal)
Titulo e e coluna: Capri. Texto: Napoles.
Fotos A.A.Bispo 2014. Arquivo ABE