Exulta, Oh Brasil! S. Mercadante (1795-1870)
ed. A.A.Bispo
Revista
BRASIL-EUROPA 160
Correspondência Euro-Brasileira©
Exulta, Oh Brasil! S. Mercadante (1795-1870)
ed. A.A.Bispo
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BRASIL-EUROPA 160
Correspondência Euro-Brasileira©
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N° 160/2 (2016:2)
Exulta, Oh Brasil!
Saverio Mercadante (1795-1870)
suas obras e seus discípulos no Brasil e sua aluna brasileira Heloísa Marechal (?-1860)
Grandiloquência melodramática em processos ascensionais sociais e político-culturais
Trabalhos em Nápoles pelo centenário de Arcângelo Fiorito (1813-1887)
Uma das finalidades dos estudos euro-brasileiros desenvolvidos em Nápoles em continuidade àqueles motivados pelos 125 anos de falecimento de Dona Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias (1822-1889), a imperatriz do Brasil de origem napolitana, foi a de retomar pesquisas relativas às muitas personalidades da vida musical regional que caíram no esquecimento e que hoje passam a ser recordadas e reconsideradas. Neste sentido, foram retomados estudos que se iniciaram em 1976 em Nápoles e sua região.
A procura de dados em documentos representou, porém, sempre, apenas um aspecto dos esforços de desenvolvimento adequado de estudos culturais em relações napolitano-brasileiras. Talvez o principal anelo foi o de procurar captar e compreender empaticamente mentalidades, modos de sentir e de se expressar, atmosferas e espírito da época em questão, ou seja de desenvolver estudos e reflexões de cunho psicológico-cultural com base em considerações de processos sociais e político culturais.
Esse intento impõe-se, pois uma das razões do esquecimento em que cairam obras e nomes dessa época parece residir num distanciamento na apreciação estética de formas de expressão dessa época napolitano-brasileira e, concomitantemente, de modos de ser, sentir, agir e de ver o mundo e a vida.
Problemas na aproximação empática a universos culturais submersos
Na percepção desses tempos remotos e de outros contextos culturais submersos muito dessa época surge como por demais grandiloquente, ostentativo, portentoso, melodramático, uma extroversão e exaltação exultante que desperta sensações de desagrado e desconforto perante um gosto sentido como duvidoso, o que inibe interesses de estudos mais demorados.
A realização de estudos mais sensíveis e empáticos desse universo cultural napolitano do século XIX surge como exigência também para os estudos brasileiros, pois abre perspectivas para análises de mentalidades e de um estado de espírito ou de configurações psíquico-culturais que também reinou no Brasil numa determinada época e em determinados contextos e que não corresponde à imagens e a auto-imagens posteriores de brasilidade, em particular também daquelas vigentes no presente.
Se essa época de intensas elos entre Nápoles e o Brasil pertence a um já remoto passado, não deixou, porém, de ter consequências e mesmo continuidades, aqui em particular em círculos ítalo-brasileiros. Estudar esses processos surge, assim, como de significado para análises mais diferenciadas do universo cultural do Brasil na sua diversidade e para a superação de estereotipos na sua auto-imagem e representação.
Um dos caminhos para aproximações empáticas a esse universo cultural submerso napolitano-brasileiro é aquela da música, em particular do canto e do teatro lírico.
Atualidade de interesses pela época de G. Saverio Mercadante (1795-1870)
Publicações recentes a respeito de compositores do século XIX de Nápoles e mesmo a execução de suas obras vêm contribuindo à superação de barreiras representadas por distância cultural, desconhecimentos, ressentimentos e preconceitos que inibem reconstruções e análises históricas.
Uma dessas personalidades redescobertas é a do compositor Giuseppe Balducci (1796-1845), alvo de estudos de Jeremy Commons, pesquisador da Nova Zelândia (Jeremy Commons, The Life and Operas of Giuseppe Balducci (1796-1845), in L'arte armonica, Serie III, vol. 15, Roma: Accademia Nazionale di S. Cecilia, 2014).
Um exemplo desse novo interesse por músicos e compositores napolitanos do século XIX foi a realização, na cidade alemã de Bad Wildbad, em 2007, da "ópera de salão" séria, em dois atos de Giuseppe Balducci, Boabdil - Re di Granata.
Embora provindo de uma distante região do globo, Jeremy Commons revelou não só o significado para a sua época de um nome e sua produção, como também trouxe luz a contextos hoje submersos e que são de grande interesse também para estudos relacionados com o Brasil.
A vida de Balducci por êle estudada indica o significado de relações entre mestres e discípulos na vida musical napolitana e na esfera mais ampla do Mediterrâneo em época marcada pelos elos entre Nápoles, Sicília e o mundo ibérico. Também traz luz ao papel da música nas camadas mais altas da sociedade, nas famílias da aristocracia, que a êles confiavam a formação musical de suas suas filhas e apoiavam ensembles e apresentações de salão. Um dos principais salões de Nápoles na primeira metade do século XIX foi o da antiga família dos marqueses de Capece Minutolo.
Essa função da música na formação feminina no contexto político napolitano assim salientada não deixa de abrir perspectivas para análises do papel de músicos napolitanos no ensino musical no Brasil. Entre os nomes de professores que formaram discípulos e influenciaram através deles a vida musical em distantes regiões podem ser salientados os mestres de Balducci, Giacomo Tritto (1733-1824) e Niccolò Antonio Zingarelli (1752-1837). A ópera realizada na Alemanha, e que tem como assunto um rei de Granada, traz à luz o significado da temática iberica no reino de Nápoles e na Sicília e os elos culturais, econômicos e familiares que ligaram essas duas regiões do Mediterrâneo. O próprio Balducci atuou intensamente na Espanha, onde a família a que serviu e que o apoiou mantinha contatos, vindo a falecer em Málaga.
Um intérprete de Balducci foi Arcangelo Fiorito (1813-1887), um aluno de Giuseppe Saverio R. Mercadante que transferiu-se para o Brasil na comitiva de Dona Teresa Cristina, exercendo, no Rio de Janeiro, intensas atividades como cantor, compositor e professor de canto. Formando cantores brasileiros, deu continuidade, no Brasil, á tradição e a desenvolvimentos do canto lírico de Nápoles. (Veja) A passagem do seu centenário, em 2013, tornou assim oportuno retomar estudos a seu respeito e sobre o seu professor.
O nome de Mercadante, compositor de renome internacional na sua época e posteriormente caído em esquecimento, não é hoje totalmente desconhecido nos meios musicais internacionais. Da sua obra, permaneceram no repertório sobretudo composições instrumentais, em particular a suas composições para flauta ou trompa, disponíveis em muitas gravações. Também algumas de suas óperas passaram a ser redescobertas, realizadas e gravadas, não, sem, porém, levar a comentários que registram a estranheza que despertam sob muitos aspectos e que relativam sentidos e possibilidades de revitalizações. Somente aproximações orientadas segundo processos culturais poderão abrir novas perspectivas na apreciação adequada de Mercadante, das suas obras e de sua época.
Nome sempre presente em Nápoles: O Teatro Mercadante
O seu nome encontra-se perpetuado desde 1870 na designação de importante teatro de Nápoles, o antigo Teatro del Fondo, que, com a sua sala do século XVIII, representa um monumento da arquitetura teatral européia. Nele têm lugar produções do teatro estável napolitano e dos maiores teatros italianos e do Exterior.
Construído em 1777/1778 com meios resultantes de confiscações de propriedades dos Jesuítas após a sua expulsão de Nápoles, o edifício é marcado históricamente por estas suas relações com a época do Iluminismo e pelo papel que desempenhou como Teatro Patriottico nos anos da Reppublica Napoletana (1799).
O antigo Teatro del Fondo foi palco de representações e estréias de obras dos mais renomados compositores da história da ópera, entre êles de Gioacchino Rossini (1792-1868) e, sobretudo, Gaetano Donizetti (1797-1848).
O nome de Mercadante no frontispício do teatro faz com que se encontre continuamente presente na cidade não só o compositor, mas as décadas em que foi a personalidade mais destacada e de maior projeção internacional de Nápoles. Essa época foi também aquela na qual uma princesa napolitana de Bourbon e Duas Sicílias regia como imperatriz da maior nação sul-americana.
Desenvolvimento dos estudos
Mercadante desempenhou um papel significativo nas reflexões voltadas à redescoberta e revalorização do século XIX na pesquisa histórico-musical brasileira a partir da década de sessenta do século XX. Foi um dos principais nomes de compositores então esquecidos que trouxe à luz a necessidade de revisões de perspectivas historiográficas que levavam à desvalorização do passado anterior à eclosão nacionalista no século XX.
Essa atenção a Mercadante foi despertada pela gravação de "Exulta, Oh Brasil" de Saverio Mercadante pelo Côro da Rádio M.E.C. sob a direção de Julieta Strutt e Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio M.E.C. sob a regência de Alceo Bocchino na série "Música na Côrte Brasileira 4: Na Côrte de D. Pedro II, Angel 3-CBX 413).
Os comentários de J. C. de Andrade Muricy (1895-1984), segundo o qual o "Exulta, Oh Brasil" seria típico de costumes sociais da época e escrito com intenção manifestamente laudatória, não pareciam esgotar o significado do fato de um dos mais renomados compositores da Europa ter criado uma obra de tal grandiloquência para um país distante.
O "Exulta" parecia refletir antes um próprio estado de espírito napolitano, exultante pelo fato de ter uma de suas princesas em trono imperial, uma manifestação filoborbônica que valia como exortação a que o próprio Brasil exultasse.
Se essa obra não despertava admiração pelas suas qualidades musicais ou mesmo simpatias pelo seu desagradável teor apoteótico, trazia à consciência a necessidade de sua apreciação como documento de uma época e de contextos político-culturais de dimensões internacionais.
O "Exulta, Oh Brasil" tornou-se, assim, uma obra condutora de reflexões, e o "Exulta" imperativo condutor na consideração de elos entre Nápoles e o Brasil. Esse conceito parecia bem designar um estado de espírito que teria marcado reciprocamente essas relações.
Com a publicação dos estudos de Ayres de Andrade (Francisco Manuel da Silva e seu tempo: 1808-1865: uma fase do passado musical do Rio de Janeiro à luz de novos documentos, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1967), tomou-se conhecimento da execução de considerável número de óperas de Mercadante no Rio de Janeiro, entre elas O Juramento, levado em 1845, D. Afonso, levado em 1848, A Vestal, representada em 1849, A Nau de Vasco da Gama, realizada em 1850, O Bravo e Leonora, em 1853, assim como Horacios e Curiacios, em 1856.
Com o início do programa euro-brasileiro na Europa, em 1974, a realização de estudos de fontes e contextos em Nápoles foi marcada por esforços empáticos de percepção e compreensão dessa atmosfera exultante que teria marcado as relações com o Brasil.
Em discussões no âmbito do projeto "Culturas Musicais da América Latina no século XIX" levado a efeito no Instituto de Musicologia de Colonia (Veja), salientou-se que consideração de Saverio Mercadante também não poderia ser feita anacrônicamente a partir de situaçõs político-culturais posteriores.
Uma perspectiva a posteriori da Itália como estado nacional não faz jus a um contexto geo-político-cultural no qual Mercadante principalmente se inscreveu e que foi aquele vinculou o sul da Itália com o mundo ibérico. Não se pode esquecer que Mercadante atuou na Espanha e mesmo em Portugal entre 1827 e 1830 como maestro de teatros italianos e compositor. Essas atuações foram precedidas por estudos e atividades como músico e compositor em Nápoles, onde alcançara sucesso, entre outras com a cantata "L'unione delle belle arti", em 1818, tendo composto numerosas obras para o teatro lírico.
É essa esfera político-cultural de um passado hoje submerso do Mediterrâneo, - ou seja de uma perspectiva dos estudos europeus a partir do sul - é que se compreende o significado de Mercadante para o mundo latino ibérico, para a esfera atlântica, para Portugal e para o Brasil. Essa visão do sul foi salientada como necessidade para a condução de estudos musicológicos adequados sob a perspectiva cultural por ocasião dos preparativos para o Ano Europeu da Música, em 1985, quando fundou-se o Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS).
Embora as relações ítalo-ibéricas tenham sido sempre consideradas nos estudos histórico-musicais, sobretudo sob a perspectiva de uma predominante e por muitos criticada excessiva influência italiana, em especial da escola napolitana na vida musical e operística de Portugal nos séculos XVIII e XIX, o nome de Saverio Mercadante pouco é lembrado.
A atenção dirige-se a alguns vultos maiores de época precedente, entre êles Domenico Scarlatti (1685-1757) por ter atuado nos países ibéricos. No caso do Brasil, lembra-se de Marcos Antonio da Fonseca Portugal (1762-1830), o maior nome da música portuguesa da sua época que, tendo alcançado renome internacional, transferiu-se para a Côrte quando no Rio de Janeiro. Marcos Portugal foi objeto de estudos e reflexões em eventos promovidos pela A.B.E., destacando-se aqui o simpósio "Dimensões européias da música de Portugal" em 2002 por motivo da celebração do Porto como capital européia da cultura. Como repetidamente salientado pelo especialista português Manoel Ivo Cruz (1935-2010), Marcos Portugal surge como um dos nomes injustiçados na história músico-cultural por motivos de ressentimentos e visões unilaterais do passado e que só aos poucos veem sendo superadas.
Ascensão social através da música: um fator de excessos exultantes?
Uma consideração adequada do caminho de vida, da obra e do significado de Mercadante não pode ser feita apenas através de estudos históricos. A consideração de aspectos sócio-culturais abre perspectivas para a análise de processos em que se inscreveu e que promoveu.
Mercadante surge como exemplo tardio dos meninos pobres que, obtendo formação em conservatórios itálicos como que em asilos, seguiram a carreira musical. Nascido em Altamura, nas proximidades de Bari, no sul da costa adriática da Península itálica, obteve a sua formação a partir de 1808 no Conservatorio de San Sebastiano em Nápoles. Entre os seus professores de instrumentos de sopro, corda e canto contam-se Giovanni Furno (1748-1837) e os mencionado Giacomo Tritto e Nicolo Antonio Zingarelli (1752-1837). De origem social modesta, a vida de Mercadante levou-o aos círculos mais influentes da sociedade, uma ascensão que permite pressupor ímpetos de auto-afirmação, dignificação e projeção que poderiam ajudar a compreender características grandiloquentes e mesmo portentosas de sua obra.
A vivência e as atividades de Mercadante na Península Ibérica, precedendo a época mais intensa de sua atuação em Nápoles, co-determinaram os desenvolvimentos, em particular do real conservatório de música. Sucessor co seu mentor Niccolò Antonio Zingarelli a partir de 1840 como diretor da instituição, o ensino musical em Nápoles teria também refletido as experiências ibéricas. Neste cargo, Mercadante marcou a formação de muitos discípulos e levou o conservatório às alturas de uma instituição que passou a ser vista como modêlo, inclusive no Brasil.
Discípulos de Mercadante no Brasil - Luigi Maria Vaccani (1809-1881)
A influência de Mercadante no Brasil não se deu apenas diretamente de Nápoles, mas sim de centros ibéricos nos quais atuou e que estavam mais estreitamente relacionados com as suas atividades.
É nesse contexto, que pode ser considerada a atividade de Luigi Maria Vaccani (1809-1881), um músico que chegou ao Rio de Janeiro em 1831, passando a atuar como maestro do Teatro São Pedro de Alcântara, assim como também no ensino.
Tendo chegado ao Rio mais de uma década antes do início da intensificação dos elos com Nápoles com a chegada de Dona Teresa Cristina e sua comitiva, em 1843, Luigi Maria Vaccani surge como um nome relevante nesse período que antecedeu e preparou a grande fase da história das relações Nápoles-Brasil.
A sua contratação indica o prestígio que já gozava na Península Ibérica. Êle e outros membros de sua família - em particular Domingo Vaccani -, distinguiram-se, por exemplo, como atores e cantantes no Gli Aventurieri/Los Aventureros, um drama jocoso-sério com música de Giaccomo Cordella, levado no Teatro Principal de Cadiz, em 1829.
O nome deste centro portuário de comércio no sul da Espanha, conhecido pelo papel nele desempenhado por comerciantes judeus, sugere um contexto de elos mediterrâneos com outras cidades portuárias, entre elas Gênova, também de acentuada população de origem judaica.
Provavelmente de família desta cidade, Vaccani representaria assim a vida musical e operística em cidades ibéricas com meios econômicos derivados do comércio capazes de sustentá-la.
Seria também esses pressupostos possibilitados com o comércio do porto do Rio de Janeiro que explicaria os elos músico-culturais com a Espanha nessa fase da história do Brasil.
No Rio de Janeiro, o caminho de Luigi Maria Vacanni levou a Petrópolis, fundado em 1825 por colonos. O plano imperial de ali estabelecer uma residência de verão, em 1843, fazia com que a localidade se oferecesse como promissora para a atividade e vida de um músico que tinha vínculos com o principal compositor da terra da imperatriz.
Sabe-se que Luigi Maria Vacanni era casado na Itália e que retornou à Itália em 1846/47, deixando-a em Petrópolis, assim como com filha nascida no Rio de Janeiro naquele ano.
Na Itália, atuou como compositor (Aria "Calma l'affanno o caro", para côro e soprano) e deu continuidade a seus estudos teórico-musicais e de composição como testemunha uma Fuga d'Esperimento fatta da me na residência da Accademia Filarmonica em agosto de 1850. Nessa época dedicou-se também à música sacra (Laudate Dominum,1850)
Posteriormente, Vaccanni ter-se-ia envolvido com o movimento de unificação italiana, compondo música patriótica para banda, como um hino da independência da Itália (HIno dell'indipendenza d'Italia, Milão: Ricordi 1860). Os elos entre os Vaccani na Itália e aqueles do Brasil foram reforçados com a vinda de Miguel Vaccani, em 1860, que, em Petrópolis, passou a viver com a sua cunhada Maria da Gloria, deixando descendência.
Alunos de Mercadante na comitiva de Dona Teresa Cristina, em 1843
Uma nova e mais intensa fase dos elos musicais entre Nápoles e o Brasil iniciou-se com a vinda de músicos na comitiva da Imperatriz Teresa Cristina, em 1843, agora sob outras condições sociais do que aquelas do meio de comércio e da colonização de quarteirões italianos de Petrópolis. O principal nome a ser considerado é o do já mencionado de Arcangelo Fiorito (1813-1887). (Veja)
Este cantor e compositor, que já gozava de renome em Napoles, compôs durante a travessia, Fiorito compôs uma Cantata dedicada a D. Pedro II, que esperava a sua esposa napolitana no Rio de Janeiro. Essa obra foi executada no dia 2 de outubro de 1843.
Logo a seguir, Fiorito foi nomeado para o côro da Capela Imperial. No ano seguinte, participou como solista na execução de missa composta por Fortunato Mazziotti (?- 1855) na Capela Imperial por ocasião do matrimônio da Princesa D. Januária (1822-1901) e de L. C. M. de Bourbon e Duas Sicilias, Conde d'Aquila (1824-1897), príncipe de Bourbon e Duas Sicílias, irmão de Dona Teresa Cristina.
A atuação de Fiorito em obra do mestre-de-capela Fortunato Mazziotti pode ser vista como marco de uma nova fase e intensificação e atualização da prática musical orientada segundo desenvolvimentos italianos no Brasil. Se Mazziotti tinha recebido uma formação assim orientada em Lisboa há décadas, Fiorito possibilitava agora vinculos com a vida musical contemporânea de Nápoles.
É significativo que já no dia 23 de junho desse ano, Fiorito ter-se apresentado publicamente no Teatro S. Pedro de Alcântara por ocasião da primeira execução, no Brasil, da ópera Ana Bolena, de G. Donizetti (1797 -1848).
Em 1860, Fiorito foi nomeado mestre de música da Capela Imperial. Paralelamente, intensificou as suas atividades de professor de canto, piano e matérias teóricas. Em 1869, foi nomeado professor de canto do Conservatório Imperial de Música.
Heloísa Marechal - aluna brasileira de Mercadante
Se discípulos italianos de Mercadante vieram ao Brasil e desenvolveram atividades artísticas e de ensino na capital do Império, uma particular atenção merece a ida de uma brasileira para Nápoles para com êle aperfeiçoar-se em canto. Trata-se da contralto Heloísa Marechal, cujo nome e significado no Rio de Janeiro foram considerados por Vincenzo Cernicchiaro na sua Storia della Musica nel Brasile (Milão, 1926, 207/8) e por Ayres de Andrade (Francisco Manoel da Silva e seu tempo II, Rio de Janeiro, 60-61).
A lembrança dessa cantora é de relevância pelo fato de ter sido, como Ayres de Andrade salienta, a primeira senhora de círculos mais elevados da sociedade que subiu aos palcos líricos com ambições de projeção artística ou mesmo de carreira profissional como cantora, superando assim normas e preconceitos da época.
Distinguiu-se, em 1857, no papel de Açucena em Il Trovatore e no de Adalgisa em Norma. O seu sucesso como Açucena chegou a valer-lhe a dedicatória de uma valsa de título Açucena Brasileira.
Havendo na época intenção de envio de uma cantora brasileira à Europa para que se aperfeiçoasse em canto, o teatro financiou-lhe uma viagem de estudos a Nápoles.
Esse fato é de significado para estudos sociais da mulher e da história de brasileiros que desenvolveram estudos na Europa. É apenas compreensível pela proteção que Heloisa Marechal teria gozado por parte da Imperatriz Dona Teresa Cristina.
Se uma carreira artística por parte de senhora de círculos mais altos da sociedade ainda representava uma audácia e ultrapassagem de normas no Brasil, o mesmo não acontecia em tal intensidade em Nápoles. O alto significado da música e das artes nos salões de círculos nobres na terra natal de Dona Teresa Cristina contribuia a que uma projeção de senhoras como cantoras não surgisse como tão prejudicial à dignidade e à reputação.
A aceitação da brasileira como aluna por parte de Mercadante também supõe a influência ou pelo menos o prestígio de uma indicação da Imperatriz brasileira. Também o fato de Heloisa Marechal já cantar em italiano, e talvez ter até mesmo uma ascendência italiana e mesmo aristocrática teria facilitado a sua integração na sociedade napolitana.
Parece ser significativo que Heloisa Marechal nem tenha chegado a apresentar-se ao público da Ópera Nacional, no Rio de Janeiro, partindo para a Europa em junho de 1858 a bordo da nave Tamar, como registra Vincenzo Cernicchiaro na sua Storia della Musica nel Brasile. Segundo esse autor, porém, o seu destino deveria ser Milão.
"Quest'ultima non giunse a presentarsi al pubblico dell'opera nazionale; partiva per l'Europa a bordo del Tamar (8 giugno 1858), per compire i suoi studi a Milano, a spese dell'impresario del teatro lirico italiano, cui parve, per le felici disposizioni dimostrate, ed una voce tra le outtre piú belle, dovesse divenire una cantante di merito eccezionale. (loc.cit.)
Como Ayres de Andrade registra, mencionando notícia em periódico brasileiro não especificado, Heloisa Marechal encontrava-se em 1859 em Nápoles e já fizera consideráveis progressos nos seus estudos dois anos após a sua partida. Naquele ano, a cantora brasileira apresentou-se em sarau musical na casa de Mercadante, cantando duas árias de Lucrezia Borgia de Gaetano Donizetti e da Beatrice di Tenda de Vincenzo Bellini (1801-1835). Essa reunião teria sido realizada em homenagem a E. Camillo Sivori (1815-1894), o violinista e compositor genovês de renome internacional que tinha estado no Brasil.
A brasileira teria sido considerada por Mercadante como um de seus alunos que revelavam maiores aptidões e que mais esperanças despertavam quanto a uma carreira artística internacional.
O grande passo na carreira de Heloísa Marechal devia ser dado com a sua apresentação pública no Teatro San Carlo em 1860. Esse plano foi divulgado no Rio de Janeiro através de notícia recebida de Paris e que, por sua vez, baseava-se em notícias recebidas de Nápoles.
Os passos seguintes da carreira de Heloísa Marechal parecem ter-se baseados em contatos de Mercadante em Portugal e com o meio lírico italiano de Paris. Já no início de 1861, tomava-se conhecimento, no Brasil, através do Diário do Rio de Janeiro na sua edição de 3 de janeiro, de que Heloísa Marechal apresentara-se em Lisboa: "A cantora brasileira Heloisa Marechal fêz o seu benefício com a Lucrecia, tendo a lutar com as recordações de Tedesco, mais sahio-se muito bem".
Em Paris, porém, a cantora veio a falecer no mesmo ano de 1861, fato registrado no Brsil pela Semana Illustrada: "Sentimos ter de annunciar que a nossa patrícia Heloisa Marechal, que foi à Europa aperfeiçoar-se no canto, faleceu em Paris" (pág. 390).
A notícia da sua morte prematura não foi porém suficientemente divulgada, o que explica o fato de autores posteriores - como Cernicchiaro - terem suposto injustamente uma falta de sucesso de Heloisa Marechal na Europa.
A quanto pare, la giovane brasiliana (era nativa di Rio de Janeiro), non riusi a trionfare nell'arte lirica, giacchè mai più si fece accenno al suo nome. (loc.cit.)
A brasiliedade ou meridionalidade de Heloisa Marechal
Ainda dez anos após a sua morte, em 1871, a Vida Fluminense recordava, com base em texto do Correios Mercantis de 1857, a brasilidade ou "meridionalidade" de Helena Marechal:
"Era no tempo da Opera Nacional. Tratava-se de mandar à Europa uma discípula do Conservatório para aperfeiçoar-se no canto. Por alguns dias esteve a escolha vacillante entre as senhoras Siebs e Helena Marechal. Afinal, foi a preferencia dada a esta.
Despeitada correu à imprensa a mãe d'aquella para testar que a jovem Marietta deixara de ser escolhida, não porque se lhe desconhecessem as habilitações e talento, mas pura e simplesmente porque era francesa e não meridional."
Essa discussão sobre a não-brasilidade de Marietta Siebs e a meridionalidade de Heloísa Marechal sugere intentos de promoção por parte do teatro lírico de uma cantora devido à sua aparência latina, o que facilitaria granjear simpatias em Nápoles.
É possível, porém, que Heloisa Marechal tivesse ascendência italiana, uma vez que o seu sobrenome encontra-se em famílias aristocráticas da Itália, o que explicaria também a simpatia por ela da parte de Dona Teresa Cristina.
Trata-se, assim, de uma discussão não sem interesse sob o aspecto da história da representação do Brasil no Exterior, o que explica o empenho na procura de mais dados a respeito de Heloisa Marechal nos seus elos com S. Mercadante nos estudos historico-musicais em contextos globais das últimas décadas.
Súmula de trabalhos da A.B.E.e do I.S.M.P.S. sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo, Universidade de Colonia
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“Saverio Mercadante (1795-1870) suas obras e seus discípulos no Brasil e sua aluna brasileira Heloísa Marechal (?-1860). Grandiloquência melodramática em processos ascensionais sociais e político-culturais“.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 160/2(2016:02). http://revista.brasil-europa.eu/160/Mercadante-e-Brasil.html
Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha
Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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Fotos Teatro S. Carlo, Nápoles
No txto: Tetro Mercadante, Nápoles
A.A.Bispo 2014 ©Arquivo A.B.E.