Lucchesi no mundo e Estudos Puccinianos

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 160

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 160/6 (2016:2)



Lucchesi no mundo e Estudos Puccinianos
Michele Puccini Jr. (1864-1891) e brasileiros na Scapigliatura milanesa

Pelos 125 anos do falecimento de Michele Puccini Jr. no Rio de Janeiro



 

O principal monumento da vida artística de Lucca é o Teatro del Giglio, edifício de mais de três séculos de história, no seu significado patrimonial e histórico-musical situado ao lado do San Carlo e Nápoles, do Scala de Milão ou do Teatro Regio de Torino . Nele representaram-se obras magnas da música e da ópera. Nele deu-se a primeira apresentação de Guglielmo Tell, de G. Rossini (1792-1868), em 1831.

Lucca. Foto A.A.Bispo 2014. Copyright ABE

Hoje, o Teatro del Giglio, além de concertos e espetáculos, é centro de convenções e estudos, abrigando uma bem documentada exposição. Ao lado do teatro, na antiga igreja de San Girolamo, instalou-se um auditório, onde, desde 2002, realizam-se apresentações, agora também conhecido como Teatro di San Girolamo.

Lucca como cidade natal de Giacomo Puccini

A exposição no Teatro del Giglio é dedicada a Giacomo Puccini, a principal personalidade da história cultural de Lucca, ao qual levantou-se uma estátua de bronze na Piazza della Cittadella.

A sua casa natal, restaurada em 2011, é hoje um museu no qual se conservam documentos e objetos vários, entre êles o piano no qual compôs Turandot.

Esses monumentos e locais memoriais de Puccini fazem parte de uma vasta rêde de pontos de interesse histórico-cultural e musical de todo o território e que pode ser percorrido - os assim chamados itinerários puccinianos.

A memória de G. Puccini é mantida como um dos principais valores da história da comunidade através de monumento, do museu estabelecido na sua casa de nascimento, em exposição no teatro local e na programação musical, intensificada no corrente ano pela passagem dos 90 anos de seu falecimento.

Lucca. Foto A.A.Bispo 2014. Copyright ABE

A cidade é sede do Centro Studi Giacomo Puccini, instituição cultural constituída em 1996 e que procura reunir especialistas e promover a sua obra, considerando-a nas suas relações com a música e com o teatro do seu tempo e no seu contexto cultural. Entre os projetos de maior relevância dessa instituição conta-se o da edição nacional das obras de Puccini, iniciado em 1997.

Uma recente biografia de G. Puccini (Dieter Schickling, Giacomo Puccini, Biografie, ed. ampliada, Stuttgart: Carus e P. Reclam jun. 2007), oferece um visão pormenorizada da vida do compositor e do contexto em que se formou em Lucca. Publicada pelos 150 anos de nascimento do compositor, o autor, membro do instituto de pesquisas de Puccini em Lucca e co-editor da publicação completa de sua obra, considerou a copiosa documentação coletada nos últimos anos e que compreende mais de 2000 cartas. O autor considera o panorama político da Itália na época, marcado que foi por incertezas e transformações, além da situação complexa, com intrigas e ambições pessoais do comércio de músicas e de casas editôras. Da obra, o leitor ganha uma visão não só das contradições na personalidade e na vida do compositor, como também das contradições de uma época determinada por ambições pessoais de sucesso, vaidades e egocentrismos. Para o auto, Puccini foi um "homem na crise da consciência européia", e assim um vulto exemplar dessa crise vivenciada por vários outros músicos e intelectuais da época.

Puccini em estudos de processos musicais em relações internacionais

Para um compositor que se dedicou ao tratamento de sujeitos relacionados com outras culturas e encontros culturais (Madame Butterfly, La Fanciulla del West,Turandot), enfoques musicológicos de orientação teórico-cultural surgem como indispensáveis. Entre êles, adquirem particular relevância aqueles voltados à emigração italiana a países do Novo Mundo. Essa emigração e as relações entre os seus principais centros como Buenos Aires, São Paulo e New York vem sendo alvo de estudos no âmbito dos trabalhos universitários desenvolvidos com o apoio do ISMPS das últimas décadas.

Considerando a grande porcentagem de descendentes de italianos na população de São Paulo - estimada em ca. de 5 milhões na capital - e no interior do Estado, muitos dos quais de proveniência de Lucca, assim como as regiões de colonização italiana no Sul do Brasil, compreende-se o acentuado interesse pelo Brasil em Lucca, cidade que possui também considerável comunidade brasileira.

A Associazione Lucchesi nel Mondo, sediada em Lucca, possui representações em vários países europeus (Alemanha, Suiça, Irlanda do Norte, Bélgica), no USA, Canadá, Austrália, África do Sul, Tailândia e na América do Sul (Argentina, Uruguai, Venezuela, Colombia, Peru), salientando-se aqui o Brasil (São Paulo, Campinas, Ribeirão Preto, Marília, Rio de Janeiro, Mococa, Jacutinga, Porto Alegre). Os elos entre Lucca e o Brasil são promovidos pelo Istituto Culturale Lucchese-Toscano, pela Associação Lucchesi Toscani del Brasile e pela Associação do Litoral Paulista.

O mais significado testemunho dos elos entre Lucca e o Brasil deu-se em 2009 por ocasião da celebração dos 35 anos do Circolo Lucchese di San Paulo. Por iniciativa de Claudio Pieroni, do Lucchesi nel Mondo de São Paulo, personalidades de Lucca tiveram a sua atenção despertada para a oportunidade de oferecimento de um busto do compositor ao Teatro Municipal de São Paulo, suprindo assim uma lacuna sentida em centro de metrópole e de Estado tão marcados pela cultura musical italiana.

A Associazione degli industriali di Lucca, com o seu presidente Andrea Guidi, e o Rotary Club possibilitaram a realização de reprodução de parte do monumento a Puccini levantado em 1994 na Piazza della Cittadelle, trabalho do escultor Vito Tongiani de Pietrasanta. No concerto inaugural, participou Mauro Favilla, Sindaco do Comune di Lucca e Presidente da Fondazione Giacomo Puccini.

Lucca. Foto A.A.Bispo 2014. Copyright ABE

A exposição dedicada a Puccini no teatro de Lucca demonstra os esforços destinados a salientar contextos da vida musical local que explicam a formação, a vida e a obra do compositor. Os quadros com documentos e fotografias tomam a entrada e os saguões do teatro, e personagens das óperas de Puccini são apresentadas em tamanho natural na sala de espetáculos.
A recepção da obra de Puccini no continente americano merece porém maior atenção dos estudos
musicológicos orientados segundo processos culturais. Ela surge como de particular relevância para países com significativa vida operística e população de origem imigratória italiana, como os Estados Unidos, a Argentina e o Brasil. O levantamento de apresentações de suas obras nos vários centros, das companhias e dos artistas envolvidos não é suficiente na análise dos pressupostos dessa recepção e de ses efeitos em desenvolvimentos regionais. Neste sentido, torna-se indispensável considerar mais diferenciadamente as pré-condições culturais e sociais que possibilitaram
essa recepção.

No caso do Brasil, impõe-se a necessidade de estudos do extraordinário papel desempenhado por artistas e músicos italianos no ambiente político-cultural favorável às relações ítalo-brasileiras em país que teve uma imperatriz de origem napolitana - Dona Teresa Cristina - assim como aqueles da imigração italiana, em particular da transferência de imigrados dos campos a bairros operários de grandes cidades como São Paulo.

Os Puccini e a emigração italiana: Michele Puccini Jr. (1864-1891)

Como sempre salientado em Lucca, a personalidade e a obra de G. Puccini não podem ser estudadas sem a consideração do ambiente musical familiar em que nasceu e se formou. A família Puccini marcou décadas da vida musical de Lucca. Entre os seus antepassados músicos, salientaram-se Giacomo Puccini (1712-1781), Antonio Benedeto M. Puccini (1747-1832), Domenico V. Puccini (1772-1815) e Michele Puccini (1813-1864). Foram compositores que se dedicaram sobretudo à música sacra, destacando-se porém também na ópera e na música instrumental de banda. Esse significado - até mesmo predomínio - da música sacra não pode deixar de ser considerado mesmo no caso de um compositor que, embora tenha alcançado renome internacional com a sua produção lírica, terminou os seus estudos no Istituto Musicale Pacini de Lucca com a composição de uma grande missa para côro e orquestra, a Messa di Gloria. Com essa obra, o compositor revela a sua inserção na grande tradição sacro-musical de acompanhamento instrumental italiana que, com a intensificação do movimento de restauração musical, passava a ser combatida. Compositores, que até então tinham tido na esfera da música sacra campo para o desenvolvimento de suas aptidões e de seus projetos artísticos, passaram a ter quase que só na ópera possibilidades mais amplas para  a sua criação e expressão.

Cada vez mais dirige-se a atenção a pai do compositor, Michele Puccini, que não só foi personalidade de destaque na música sacra como organista da catedral de San Martino e compositor de obras religiosas, como também dedicara-se à ópera. Um de seus alunos, Carlo Angeloni (1834-1901), é lembrado em Lucca com um monumento levantao em 1905 na Piazza della Magione. Angeloni, também como o seu professor compositor de música sacra e de ópera, foi professor de órgão, canto, matérias teóricas e composição no Istituto Musicale Pacini de Lucca. Entre os seus muitos discípulos - entre outros Carlo Carignani, Gustavo Luporini, Domenico Cortopassi e Alfredo Catalani - conta-se também Giacomo Puccini.

O irmão de Giacomo Puccini - Michele Puccini Jr. - merece neste contexto particular atenção sob a perspectiva de estudos referenciados segundo o Brasil, uma vez que imigrou para a América do Sul. Atuou como professor de música e italiano em Buenos Aires, vindo a falecer ainda jovem no Rio de Janeiro. Presume-se que mesmo G. Puccini, em situações difíceis, tenha pensado em seguir o seu irmão na imigração, pelo menos esperado apoio financeiro do Exterior para a realização de projetos.

Michele Puccini (Junior) formou-se na tradição familiar representada pelo seu pai na música sacra, na teatral e na de banda.

Estudou no Istituto Musicale Pacini, também marcado por esta tradição à época de Angeloni e, a seguir, no Conservatório de Milão. Ali conheceu o compositor paulista João Gomes de Araújo (1846-1943) com que travou laços intelectuais, artísticos e de amizade que foram mantidos quando da sua emigração.

Proximidade de lucchesi e de brasileiros à Scapigliatura de Milão

Michele Puccini Jr. e João Gomes de Araújo, apesar da significativa diferença de idade de 18 anos entre ambos, possuiam similar formação. Também o compositor paulista provinha de uma vida musical que fora dominada pela música sacra de acompanhamento orquestral, a do Vale do Paraíba - tendo obtido seu maior sucesso com a composição da missa para a sagração da igreja de São Benedito em 1884, procurando agora o seu desenvolvimento e projeção na ópera seguindo os passos de Antonio Carlos Gomes (1836-1896).

Também êle fora aluno, no Rio de Janeiro, de músico de Lucca, Gioacchino Giannini (1817-1860), dele recebendo uma formação que o inseriu em antiga corrente teórico-musical de Lucca, aquela de Marco Santucci (1762-1843). (Veja) Pela formação e idade, João Gomes de Araújo pertencia assim antes a uma outra geração à de Michele Puccini Jr., mas a sua ida a Milão para estudos fêz com que vivenciasse uma segunda juventude em distanciamento à provincialidade do meio de sua proveniência. paraense José da Gama Malcher (1853-1921)

Como outros estudantes, aproximou-se do grupo de artistas e intelectuais jovens da Scapiglatura Milanese, como já tinha ocorrido com A. Carlos Gomes e mesmo com Giacomo Puccini quando jovem.

Os scapigliati - comparáveis a intelectuais boêmios de outras nações - distinguiam-se como jovens cheios de idéias e anelos avançados, procurando alçarem-se às alturas, de espírito de não-conformismo e oposição, inquietos, desordenados, incapazes de alcançar muitos dos seus objetos pela sua situação financeira e social, sentindo-se livres quanto a normas de comportamento da sociedade. Dos músicos de Lucca, destacava-se, entre os scapigliati, o compositor Alfredo Catalani (1854-1893).

Descabelados foram, além de Antonio Carlos Gomes, também João Gomes de Araújo na sua juventude, contrastando com a imagem transmitida por fotografias posteriores.

A "Carmosina" em Milão e em São Paulo - Refinamento da orquestração

Em 1888, representou-se a ópera Carmosina de João Gomes de Araújo no renomado Teatro Dal Verme de Milão, contando com a presença da família imperial brasileira. O sucesso dessa ópera parece ter sido devido sobretudo às qualidades de sua instrumentação, que seria explicitamente admirada em comentários posteriores. Essa excelência do tratamento instrumental da obra de João Gomes de Araújo mereceria estudos mais atentos à luz da tradição de Lucca que se refletiria na orquestração das óperas de G. Puccini.

O sucesso alcançado por essa obra assegurou o renome do compositor brasileiro em Milão e  garantiu um futuro promissor para as suas atividades no Brasil. Um esperado patrocínio da Princesa Iabel para a representação da obra no Rio de Janeiro ainda em 1888 não foi possível devido à situação política conturbada do Brasil, realizando-se apenas em São Paulo após a sua transferência para essa cidade.

Apoio para a realização de sua obra recebeu de José da Gama Malcher (1853-1921), músico paraense que também estudara em Milão e que possibilitou que uma companhia lírica que vinha a Belém incluisse a sua ópera e a apresentasse em São Paulo. Preparada pelo regente Antonio Leal Junior, a Carmosina foi realizada no teatro São José de São Paulo, em 1891, sob a direção de Levy Edgardo. À apresentação, à qual estiveram presentes o Presidente do Estado e outras autoridades do govêrno, tornando-se um dos mais significativos e celebrados eventos da capital sob o o novo govêrno, assegurou ao compositor o papel influente que a partir de então passou a desempenhar em contexto político-cultural estabelecido pelo implantado regime republicano.

A "Carmosina" no Rio de Janeiro e o falecimento de Michele Puccini Jr.

O sucesso da ópera em São Paulo levou a que a companhia que a representou fosse convidada para apresentá-la ao Rio. Esse sucesso levou também que Michele Puccini Jr., que estava ligado por elos de amizade com o compositor desde a sua estadia em Milão, viesse ao Rio de Janeiro para assistí-la. É possível que pretendesse procurar campo de atividades mais amplo em São Paulo do que aquele que encontrara em Buenos Aires. No Rio de Janeiro, porém, faleceu vitimado de febre amarela.


Súmula de trabalhos da A.B.E.e do I.S.M.P.S. sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo, Universidade de Colonia




Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“Lucchesi no mundo e Estudos Puccinianos. Michele Puccini Jr. (1864-1891) e brasileiros na
Scapigliatura milanesa“. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 160/6 (2016:02). http://revista.brasil-europa.eu/160/Michele_Puccini_Jr.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Lucca. Fotos A.A.Bispo  2014 ©Arquivo A.B.E.