Nápoles, Lucca e Brasil

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 160

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 160/1 (2016:2)



Tema em debate


Nápoles, Lucca e Brasil
Relações culturais euromediterrâneo-brasileiras sob a égide dos Bourbons,
suas consequências e transformações


Continuidade de estudos motivados
pelos 125 anos de falecimento de Dona Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias (1822-1889), Imperatriz do Brasil,
no ano da proclamação da República

 
Napoles. Foto A.A.Bispo 2014. Copyright ABE

Napoles. Foto A.A.Bispo 2014. Copyright ABE
A presente edição da Revista  Brasil-Europa publica textos condensados de trabalhos promovidos pela ABE e pelo ISMPS em Nápoles e em Lucca.


Se na edição anterior foram consideradas as relações entre o a Europa central de língua e cultura alemãs e regiões norte-italianas, em particular da Toscana (Veja), a atenção é aqui dirigida ao contexto mediterrâneo que uniu a península itálica à ibérica.


Napoles. Foto A.A.Bispo 2014. Copyright ABE
Particular consideração foi dedicada sobretudo ao Reino de Nápoles e Duas Sicílias entre a fase posterior à Restauração em 1816 e o seu fim, em 1860, com o surgimento do Reino da Itália.


A Toscana é novamente considerada nesta edição através do Ducado de Lucca, marcado que foi pela presença dos Bourbons na época da Restauração após o Congresso de Viena.


Trata-se, assim, de um outro posicionamento na consideração de processos político-culturais na história - uma visão determinada por olhares do sul, um contexto geo-cultural e político euromediterrâneo que diz respeito mais de perto ao mundo ibérico.


Napoles. Foto A.A.Bispo 2014. Copyright ABE
Neste sentido, retomam-se intentos de mudanças de perspectivas na consideração de desenvolvimentos europeus nas suas irradiações no Brasil em superação de focalizações por demais determinadas pela Europa Central, em particular aquela de língua alemã.


Essa perspectiva do sul é de fundamental significado para os estudos culturais referenciados segundo o Brasil, seja sob o aspecto das expressões tradicionais populares, seja sob o aspecto das artes, da música, da ópera e em particular também da música sacra, como já salientado em publicações e eventos por ocasião do "Ano Europeu da Música 1985", ocasião da fundação do ISMPS. (A.A.Bispo, "Kirchenmusik und die Klassik: einige Überlegungen aus der Sicht des Südens", Beiträge über die geistigen und künstlerischen Grundlagen der europäischen Musikkultur, Musices Aptatio 1984/75, II, Roma 1991, 103ss.)


No âmbito dos estudos de tradições populares - de Etnografia e Folclore - a necessidade de relativação de perspectivações centro-européias através de uma maior consideração de expressões culturais mediterrâneas já conta com uma longa história.


Um dos momentos históricos desses esforços em cooperação de pesquisadores de diferentes nações - também do Brasil - foi  o Congresso Internazionale di Musica Mediterranea e del Convegno dei Bibliotecari Musicali realizado em Palermo, em 1954. Esse evento, no qual o Brasil esteve presente na pessoa de Luís Heitor Correa de Azevedo (1905-1992), constituiu ponto de partida para o prosseguimento das reflexões e sua atualização das últimas décadas, levados a efeito em instituições da Sicília, da Sardinha e da península. Esses estudos foram desenvolvidos em particular com a cooperação de etnomusicólogos.


Uma visão mais ampla e dirigida a problemas atuais e a questões de natureza fundamental marcou trabalhos e cooperações na área dos estudos chamados de euromediterrâneos, conduzidos em institutos como aqueles visitados da Sardinha e da França mediterrânea. (Veja)


Napoles. Foto A.A.Bispo 2014. Copyright ABE

125 anos de falecimento de Dona Teresa Cristina


A motivação para revisitas e desenvolvimentos de estudos nessas cidades italianas foi o da passagem dos 125 anos de falecimento de Dona Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, Imperatriz do Brasil.


Qual é a nação do Novo Mundo que pode contar com a presença de tão alta personalidade de Nápoles em tão alta posição na sua história política como o Brasil? Qual é a napolitana que chegou a ser Imperatriz de tão grande nação? A tomada de consciência desse fato justificou desde meados dos anos 70 não apenas a condução de estudos mais diferenciados sobre a vida e a personalidade desse vulto feminino da história do Brasil, mas sobretudo aqueles de contextos relativos ao universo cultural de sua formação e de sua irradiação no Brasil.


A consideração mais atenta de artistas que vieram com a sua comitiva ou que se estabeleceram no país em anos tão marcados pela sua presença tem determinado a condução dos trabalhos desde a primeira visita e os primeiros estudos eurobrasileiros em Nápoles, em 1976.


São nomes, sobretudo de músicos, que possibilitam estudos mais aprofundados da extensão de processos culturais napolitanos ao Brasil ou mesmo de reciprocidades.


O papel predominante da música no estudo das relações napolitano-brasileiras e mediterrâneas ítalo-ibéricas em geral é compreensível: tanto Nápoles como o Brasil são possuem uma imagem marcada pelo amor à música de seus habitantes e vêem na música uma de suas principais expressões culturais.


A vinda de músicos napolitanos ao Brasil não é apenas de interesse para a história cultural brasileira, mas sim também para aquela de processos culturais itálicos. A condução relacionada de estudos surge, como de significado para ambos os países.


O Brasil e o Conservatorio di San Pietro a Majella


Personalidades das mais promissoras da vida musical napolitana, formados em instituições e com professores e compositores de renome, bem vistos em círculos liderantes da sociedade, transferiram-se para o Brasil, como no caso dos irmãos Arnaud. (Veja)


A consideração dessas personalidades que ficaram entre nações e culturas nem sempre tem sido justa de ambos os lados. Do lado brasileiro, não despertaram suficientemente interesse ou mesmo foram desvalorizados por parte da historiografia nacionalista do século XX.


Do lado italiano, distantes da terra natal, caíram no esquecimento, e a ausência de fontes dificultam reconhecimentos de obras e do alcance de suas atuações.


Somente uma modificação de perspectivas através de uma orientação dirigida a processos em relações internacionais pode fazer jus a essas personalidades, esclarecer desenvolvimentos transpassadores de fronteiras, o que se torna particularmente necessário em presente marcado pela globalização.


Não se trata, no caso do Brasil, de simples interesse ilustrativo de conhecimento da ação de estrangeiros na vida musical no tempo do Império, ou mesmo da história da recepção de obras e estilos. São os efeitos a longo prazo na formação de brasileiros exercidos por essas personalidades napolitanas e a dinâmica que desencadearam na formação de professores de professores, transmitindo técnicas, concepções e repertórios que se colocam no centro das atenções.


Várias personalidades itálicas que vieram ou que permaneceram no Brasil que tinha uma Imperatriz de origem napolitana desenvolveram intensas atividades de ensino, sendo a êles confiadas filhas de famílias de círculos influentes da sociedade - como A. Arnaud - ou que ocuparam cátedras no Conservatório Imperial de Música, como a de canto por Arcângelo Fiorito (1813-1887). (Veja)


Elos entre Lucca - cidade da música - e o Brasil


O principal vulto dessa plêiade de professores italianos na capital do Império - Gioacchino Giannini (1817-1860) - que assumiu a cátedra de maior responsabilidade teórica do Conservatório - a de Regras de Acompanhar, Órgão e Contraponto - nela formando compositores que marcaram a história da música no Brasil, dirige a atenção a um outro complexo de questões interno-italiano e à sua irradiação no Brasil. (Veja)


Trata-se daquele da ação de personalidades, que embora inseridoa em corrente de formação musical que leva a Nápoles, passaram a agir em outras regiões, em particular no pequeno ducado dos Bourbons criado à época da Restauração.


O movimento restaurativo teve dimensões muito mais amplas e profundas do que aquelas da mudança de instituições e de poder. Como sugere o fato de Giannini ter escrito uma composição para a ode a "5 maggio" de Alessandro Manzoni (1785-1873), essas dimensões se manifestaram nas preocupações filosóficas de fundamentação cristã despertadas pela morte de Napoleão e pela temporariedade das glórias deste mundo.


Essas preocupações, correspondendo à religiosidade católica tão acentuada da família Giannini e da cidade de Lucca, torna compreensível que o maestro, já no Brasil, se voltasse a essas dimensões transepocais do restaurar, o que se teria manifestado na sua composição dedicada à batalha de Guararapes, de tanto significado para o desenvolvimento histórico-musical de temática nacional no Brasil.


A extremada religiosidade de Lucca - que se evidencia nas solenidades da sua catedral e de suas igrejas, na prática musical do Seminário, na música para órgão e, sobretudo, nas tradições de Semana Santa com os seus motetos, não poderia ter deixado de marcar a ação de Giannini como professor de órgão, compositor - também de obras a cappella - e, por fim, mestre da Capela Imperial no Brasil.


O seu principal significado residiu sobretudo na transmissão a seus discípulos no Brasil de princípios teóricos e correspondentes concepções estéticas que recebera na sua formação em Lucca. Como aluno de Marco Santucci ((1762-1843), autor de um dos mais importantes tratados musicais da Itália do século XIX, também formado em Nápoles, Giannini foi intermediário na transmissão ao Brasil de tradição do pensamento teórico-musical na sua contextualização itálica.


Transmitiu a alunos brasileiros conceitos e praticas referentes às relações entre melodia, harmonia e contraponto em fase historica de concomitância ou transição entre práticas mais antigas de baixo cifrado e de acompanhamento improvisado, o que se evidencia na própria designação de "regras de acompanhar" da cátedra que ocupou no Rio. (Veja)


A consideração do contexto de formação de Giannini em Lucca chama a atenção à extraordinária intensidade e importância da música nessa cidade da Toscana. Lucca se apresenta hoje como "cidade da música", uma imagem que é justificada sobretudo pelo fato de nela ter nascido Giacomo Puccini (1858-1924).


Para além da presença contínua do grande operista em monumentos, exposições, concertos e em instituições de promoção e estudo de sua obra, constata-se também uma acentuada preocupação em salientar a importância da vida musical do passado mais remoto da cidade e da região dos séculos XVII, XVIII e início do XIX.


Lucca e Península Ibérica: Luigi Boccherini (1743-1805) e o fandango


A maior personalidade dessa história musical mais antiga de Lucca é Luigi Boccherini, celebrado em monumento e institutos que trazem o seu nome na cidade e na Espanha.


Boccherini traz à consciência desses elos mais remotos de Lucca com o mundo ibérico, tendo considerado o fandango na sua obra criadora, impõe-se como alvo indispensável de atenção em estudos de processos musicais da área do mediterrâneo nas suas repercussões na Europa Central. Tem sido, assim, repetidamente considerado nos estudos desenvolvidos em universidades europeias em cooperação com o ISMPS, uma vez que a consideração do fandango nas suas diferentes acepções no Brasil possibilitam e exigem perspectivas mais amplas no seu tratamento.


A atenção dirigida a Giannini, porém, que teve a mesma formação do pai de G. Puccini, traz à consciência a necessidade de estudos mais aprofundados do período de muitas décadas situado entre essa época mais antiga e aquela do compositor que representa hoje internacionalmente Lucca.


Trata-se de um período que traz sob diferentes aspectos a mácula de época de decadência, desvalorização proveniente de projeções anacrônicas ou resultante de anelos de recuperação de antigo esplendor compreensíveis em época iniciada sob o signo da Restauração.


A família Puccini e o Brasil: Michele Puccini (Junior) (1864-1891)


O estudo da vida musical de Lucca à época de Giannini, que revela o papel condutor dos membros da família Puccini, em particular de seu pai Michele Puccini, traz à memória que o seu filho, Michele Puccini (Junior), esteve e faleceu no Rio de Janeiro.

(Veja)


Se aqui se revela a continuidade dos estreitos elos que unem Lucca ao Brasil, não se pode esquecer que o irmão do grande compositor pertence a um contexto político-cultural profundamente modificado tanto na Itália, como no Brasil e nas relações ítalo-brasileiras.


Michele Puccini (Jr.), tendo emigrado para a América do Sul e atuado como professor de música e italiano em Buenos Aires, pertence a uma época já fundamentalmente marcada pela emigração italiana.


Outros critérios tornam-se necessários para o estudo dessa fase posterior àquela da vinda de músicos de renome sob a égide da Imperatriz de origem napolitana do Brasil.


Os estreitos elos de Michele Puccini (Jr.) com o Brasil explicam-se pela sua amizade com João Gomes de Araújo (1846-1943), seu colega de estudos no Conservatório de Milão e que acompanhou de perto a criação de sua ópera Carmosina. Foi justamente o intento de assistir à representação dessa obra no Rio que o levou à capital do Brasil, onde faleceu.


João Gomes de Araújo tinha sido um dos principais alunos de Giannini no conservatório do Rio de Janeiro, tornando-se talvez o maior representante dos princípios teóricos e da arte de acompanhar e improvisar ao órgão na tradição de M. Santucci no Brasil. (Veja) O compositor paulista possuia, assim, ainda que com outros pressupostos culturais derivados da tradição do Vale do Paraíba, similar formação àquela do pai de Michele Puccini (Jr.).


Falecimento de Dona Teresa Cristina no ano da proclamação da República


A fundamental mudança da constelação político-cultural não poderia ser mais significativamente marcada do que pelo fato de Dona Teresa Cristina ter falecido no mesmo ano em que se implantou a República no Brasil.


Ainda que João Gomes de Araújo tenha recebido o apoio imperial para os seus estudos na Itália, a sua vida, atividades e obras desenrolaram-se já sob a nova situação e em círculos sociais e políticos republicanos.


Como nascido em família de negócios de café do Vale do Paraíba, compreende-se a proximidade social com círculos de enriquecidos pela plantação e pela exportação de café do interior do Estado e que desempenharam papel decisivo no Partido Republicano Paulista, na política de São Paulo e da nação.


Inseriu-se, como muitos outros artistas e músicos de sua época, nos intentos políticos de representação do país no Exterior a serviço da economia e da recuperação da imagem do país, apresentando-o como nação civilizada e de progresso, o que se manifestou sobretudo na participação do país em exposições de indústria e trabalho em cidades italianas. (Veja)


Um drama lírico de assunto napolitano-russo em anos de conflitos internacionais


É significativo que, apoiado pelo govêrno do Estado, o compositor tenha-se dirigido mais uma vez à Itália a fim de criar uma obra magna que deveria projetá-lo internacionalmente e contribuir à representação do país como nação á altura dos desenvolvimentos internacionais.


Essa representação não significava que temas brasileiros deviam ser tratados, surgindo assuntos indígenas até mesmo inoportunos e prejudiciais à imagem do país em época de críticas de imigrantes retornados.


Manifestando a auto-consciência do Brasil em tratar de desenvolvimentos de atualidade internacional à altura e ao lado de outras nações, o compositor escolheu como assunto de sua obra magna uma narrativa histórica decorrida em Nápoles e em S. Petersburgo que vinha de encontro ao interesse pela Rússia em anos marcados pela Guerra Russo-Japonesa e que antecedeu, nas dimensões do conflito e do seu desfecho, a Guerra Mundial de 1914 que trouxe o sossobrar da antiga ordem européia: Maria Petrowna.


Tradições napolitanas em obra brasileira do Verismo


Não há obra de autor brasileiro que mais tematize Nápoles e que revele estudos mais aprofundados de sua história e tradições do que Maria Petrowna.


Com grande aparato, o compositor paulista abre a sua obra com tarantela de efeito no Golfo de Nápoles, dançada e assistida por grande número de protagonistas.


Essa celebração de Nápoles e das tradições napolitanas na ópera brasileira não pode ser apreciada e analisada sob os mesmos critérios de obras anteriores que evocaram o golfo sempre tão comparado com a Baía da Guanabara. Foi expressão de tratamento de um assunto histórico italiano à luz da atualidade de relações internacionais da Guerra Russo-Japonesa e nas quais o Brasil se apresentava à altura de considerar, representando-se politicamente sem se representar com suas características culturais, exóticas para os europeus. Colocando dançarinos de tarantela e cossacos no palco, a obra surge como singular expressão de inversões de exotismo. João Gomes de Araújo veio aqui sob muitos aspectos de encontro a tendências do pensamento e da criação artistica da época do Verismo.


O Republicanismo paulista e o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo


As dimensões mais amplas e os efeitos mais duradouros do republicanismo paulista da época em que se inseriu João Gomes de Araújo podem ser estudadas nos anos de implantação do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, que atingiu a fase culminante de sua vida em 1914, o ano que, com a eclosão da Guerra, abalou um meio marcado por europeus e por relações com a Europa.


O iniciador da instituição e os seus principais diretores foram personalidades influentes do Partido Republicano Paulista  - PRP - e o extraordinário desenvolvimento do conservatório não poderia ser explicado sem o apoio de instâncias e círculos influentes da política e da sociedade.


Uma particular atenção merece ser dada a processos sociais referentes a famílias enriquecidas pela plantação e pela exportação de café relativamente ao ensino e que foram de relevância para a criação e a vida do conservatório.


Se no passado as filhas de famílias tradicionais tinham sido educadas em casa e com professores particulares também em música para exercerem as suas funções de mães de família, as filhas de famílias enriquecidas pelo café, transferidas para a capital, influentes politicamente sob a República, ávidas de nobilitação através da cultura, passaram a ter a sua formação em colégios para meninas dirigidos por ordens femininas, e, na música, em conjunto com outras jovens da sua idade no conservatório.


Com a sua grande maioria de alunos constituída de jovens que se preparavam para, no futuro, exercerem o papel de esposas, donas de casa, professoras e formadores de homens imbuídos de valores civís segundo os ideais políticos da época, o ensino musical foi fundamentalmente dirigido à educação feminina, havendo a necessidade de criação de obras adequadas. A instituição, assim, desempenha um papel relevante nos estudos voltados à mulher no Brasil.


O papel do côro do Conservatório nos estudos da mulher no Brasil


Esse papel revela-se na análise do repertório para vozes femininas criado sobretudo por João Gomes de Araújo como professor de canto e de canto coral da instituição. O coral do conservatório, feminino, tinha uma função primordial na instituição, uma vez que possibilitava não apenas a socialização das alunas como também a representação do estabelecimento para o público, mostrando o sucesso dos trabalhos e a sua importância para a sociedade.


O coral demonstrava também o conceito básico condutor da instituição e que, como manifestado na sua própria denominação, relacionava o dramático ao musical. Essa fundamentação teórica era resultante da recepção de conhecimentos e do interesse então atual na Europa sobre as origens do drama na Antiguidade e o papel que nêle desempenhou o côro.


Compreende-se, assim, que obras criadas para o coral por João Gomes de Araújo revelem imagens e concepções de remotas origens colocadas a serviço da formação muso-cultural das jovens educandas e da representação da instituição para fora.


Sobre textos do fundador, de membros da diretoria do conservatório ou de personalidades destacadas do PRP na vida cultural e artística paulista, como José de Freitas Valle (1870-1958), a análise dessas composições abrem perspectivas para a compreensão do universo cultural dos anos anteriores à Primeira Guerra em São Paulo e que, através da ação multiplicadora das assim formadas professoras de música, prolongaram-se nas novas gerações.


A ninfa do mar napolitana como imagem condutora


Há uma imagem que surge como fundamental para a consideração do edifício de concepções culturais que tiveram a sua expressão em criações musicais para o côro feminino do conservatório: o da ninfa do mar.


Composta em italiano sobre texto anônimoda  tradição popular, a La Ninfa de João Gomes de Araújo remonta aos aprofundados estudos que desenvolveu sobre a cultura de Nápoles para a composição de sua Maria Petrowna. (Veja)


O compositor não poderia ter deixado de confrontar-se com essa imagem de antiga proveniência nos seus estudos, uma vez que é estreitamente relacionada com as origens mitológicas do golfo napolitano. Ela encontra-se mencionada em textos antigos, renascentistas e na tradição oral, despertando grande interesse no século XIX. (Veja)


Vários aspectos de divulgadas narrativas encontram-se expressos no texto utilizados e elaborados musicalmente pelo compositor. Entre esses aspectos, destaca-se aquele que diz respeito a relações Natureza/Cultura -  atuais na Belle Époque - , no caso entre a natureza inferior aquática e a bela parte superior da imagem, ou entre a foca e a ninfa.


Essa tensão ou metamorfose manifestada no soar agudo da foca e o cantar da ninfa dirigido ao "belo cavaleiro do ultramar" foi aplicada à condição da grande maioria das jovens participantes do coro. Estas, m idade casadoura, eram "ninfas" no sentido literal do termo, prestes a sair do seu casulo para a unirem-se ao amado, serem esposas e como mães, também criarem espiritualmente homens capazes de desempenhar heroicamente atividades cívicas segundo o ideário da época.


O cenário em que se desenvolve essa narrativa napolitana que também tinha a sua correspondência na tradição brasileira, revela que a imagem da ninfa relacionava-se não só com a água, as ondas, mas com a noite, a luz do luar,o prateado das ondas o verde da vegetação das costas para onde se retiravam.


A aurora rubra em tradição indígena na linguagem visual da noite e da lua


Esse cenário noturno e lunar pode ser encontrado em outros textos colocados em música para o uso do côro feminino do conservatório. Uma composição como "Coema Piranga", sobre texto de sacerdote também originário como o compositor do Vale do Paraíba, permite que se reconheça interações entre visões do mundo baseadas em concepções indígenas e aquelas européias. (Veja)


Baseando-se em dados registrados por José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898) relativos à divisão do dia na cultura indígena, a parte da aurora rubra ou purpúrea - Coema Piranga - pertencia à noite, não ao dia.


Se a referência do dia era o sol, a da noite era a lua e o cantar dos pássaros ao avermelhar da aurora anunciando o sol ainda não nascido. Também essa obra para as alunas do conservatório, portanto, criava uma atmosfera noturna e lunar.


A interação de concepções indígenas e européias relacionadas com o dia aqui demonstrada adquire uma particular relevância para os estudos culturais. Se a transposição do ano religioso com as suas festas do hemisfério norte ao hemisfério sul no decorrer da colonização e da expansão cristã levou a deslocamentos de sentidos, a um distanciamente para com o mundo vivenciado pelos sentidos e correspondentemente a um viver em esfera cultural ou virtual - como vem sendo frequentemente considerado nos estudos euro-brasileiros -, a percepção ou a vivência do dia e da noite não implica em similares deslocamentos.


Estabelece-se, assim uma complexa problemática quanto à coerência de imagens e concepções relativas à noite e ao dia no dia e no ano, assim como ao sol, a luz e as estrelas no dia e aquelas do ciclo anual, levantando questões que vem sendo tratadas sob diferentes aspectos nos estudos euro-brasileiros das últimas décadas.


A "Trialogia da noite" na recepção paulista do Simbolismo e o canto feminino


O significado que o noturno adquiriu nessa fase da história cultural paulista evidencia-se na obra Trialogia da Noite, sobre poema do acima mencionado intelectual, artista e mecenas Freitas Valle, proprietário da "Villa Kyrial", mansão que entrou na história paulista pelos encontros e jantares com escritores, músicos e artistas que nela se realizaram. (Veja)


A obra dessa influente personalidade do PRP, profundo conhecedor da cultura francesa, possibilita reconhecer a influência do Simbolismo em São Paulo e o que abre também perspectivas para a análise da música criada para o côro feminino do conservatório.


150 anos de nascimento do Dr. Pedro Augusto Gomes Cardim (1865-1932)


Esses estudos tornam-se atuais ela passagem dos 150 anos de nascimento de um dos principais iniciadores do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo: Dr. Pedro Augusto Gomes Cardim. Um de seus poemas, elaborados musicalmente para côro feminino por João Gomes de Araújo, permite considerar com mais atenção um dos aspectos da linguagem visual de um edifício de imagens que surge cada vez mais como determinante para a história das mentalidades da Belle Époque paulista: Às Aves. (Veja)


Essa poesia e seu tratamento musical dirigem a atenção à imagem da ave como figura do homem "que tem asas para voar contra o vento" e abrir horizontes. Apesar da predominância do noturno e de imagens de conotação feminina compreensíveis pela maioria feminina do corpo discente do conservatório revela-se aqui uma concepção que surge como fundamental no conjunto das imagens condutoras segundo as normas e os anelos da época: a do homem ufano que canta hinos.


Como o conceito da aurora rubra indica - "Coema Piranga" - esse é o caso da voz dos pássaros na aurora, que teriam servido como sinais que anunciavam o sol a porvir e que tinham a sua correspondência no feminino dos perfumes de flores.


Maria Petrowna em círculos ítalo-brasileiros no entre-guerras


O fato de que o drama lírico Maria Petrowna, localizado de início em Nápoles e tão marcado por tradições napolitanas não poder ter sido realizado à época de sua composição, impediu-o de vir de encontro ao momento de atualidade internacional do tema. A obra foi levada primeiramente em São Paulo apenas 25 anos após a sua criação, e, a seguir, em 1937, no Rio de Janeiro.


Essas encenações tardias de obra há muito esquecida merecem uma particular atenção sob o aspecto de processos culturais que as justificam. Elas não podem ser apenas consideradas apenas como expressão de homenagens a um já idoso professor de conservatório e sob o aspecto da alegria que a este proporcionou.


Essas execuções adquirem significado para o estudo de complexos processos de integração e identificação de italianos e seus descendentes na vida musical, em particular operística em décadas de entre-guerras marcadas pelo nacionalismo brasileiro e, nos anos trinta, pelo Estado autoritário.


Em ambos os casos representaram uma tentativa de círculos italianos e ítalo-brasileiros de conquistar a simpatia de autoridades, pensadores e do público brasileiro que criticavam o papel de italianos na vida musical, no ensino e, em particular, na ópera.


Escolhendo uma ópera de autor brasileiro, demonstravam o seu reconhecimento por compositores brasileiros, amor e identificação pelo Brasil. A obra de João Gomes de Araújo surgia assim como particularmente adequada, pois, ainda que escrita por brasileiro, era, pelo assunto e pela sua elaboração musical italiana, falando sobretudo com o seu canto de adeus à Itália de forma profunda aos sentimentos daqueles que já há anos viviam na imigração.


A obra surgia também como um modêlo contra os exageros do nacionalismo, trazendo à lembrança que muitos compositores - também italianos - trataram de assuntos que não diziam respeito diretamente à sua cultura, corroborando o lugar comum de que a linguagem da música não possui fronteiras.


A obra surgia assim singularmente como um modêlo da liberdade criativa contra ditames que procuravam determinar o trabalho de composição, restringindo ideologicamente a liberdade dos compositores.


É significativo, neste sentido, que Maria Petrowna tenha sido escolhida no âmbito de criação de teatro lírico brasileiro, em particular da sociedade criada pela cantora Gabriella Besanzoni (1890-1962), de renome internacional, importante personalidade nas relações artísticas entre a Argentina através de sua presença no Teatro Colon, o Brasil e a Itália, esposa do industrial Henrique Lage (1881-1941).



Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.“Nápoles, Lucca e Brasil. Relações culturais euromediterrâneo-brasileiras sob a égide dos Bourbons, suas consequências e transformações“
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 160/1 (2016:02). http://revista.brasil-europa.eu/160/Napoles-Lucca-Brasil.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Fotos Nápoles 2014. No texto oitava foto: Lucca. A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.