A Villa Kyrial e a Trialogia da Noite

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 160

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 160/11 (2016:2)




A Villa Kyrial e a Trialogia da Noite
Simbolismo nas relações do Brasil com a Europa
da elite republicana paulista

no exemplo de elaboração para côro de vozes femininas
do poema lírico de José de Freitas Valle (1870-1958)


Aproximações ao edifício de imagens condutoras do canto coral feminino
a partir de obras de João Gomes de Araújo (1846-1943) (II)

Pelos 150 anos de nascimento do Dr. Pedro Augusto Gomes Cardim (1865-1932)


Arquivo ABE
 

A Europa como modêlo em círculos de liderança política, econômica e de influência nas culturas e nas artes no Brasil foi particularmente intensa nas primeiras décadas do regime republicano.

Este fato nem sempre encontra-se suficientemente presente nos estudos histórico-culturais, predominando antes a visão de um mais acentuado europeísmo no tempo do Império.

Entre as razões que explicam essa orientação segundo modêlos e tendências externas encontram-se certamente aquelas de natureza sócio-econômica. Famílias enriquecidas com a agricultura e o comércio do café, em anseios de nobilitação através da cultura e de modos de vida elitários, procuravam seguir as mais recentes tendências do pensamento e das artes na Europa.

Diferentemente das antigas famílias tradicionais, teriam sido sobretudo os enriquecidos aqueles que mais procuravam legitimação cultural na absorção e imitação de desenvolvimentos recentes nos grandes centros europeus. É significativo que muitas das personalidades que se distinguiram em instituições de promoção de cultura e das artes estivessem filiadas ao Partido Republicano Paulista - PRP.

Na história das artes e da música, considera-se frequentemente o papel relevante desempenhado por Dom Pedro II no auxílio e na promoção de brasileiros na Europa. Esse patrocínio possibilitou a carreira e a obra de artistas e compositores que marcam a história cultural do país no século XIX. Menos considerado é, porém, o singular incremento do envio de brasileiros a centros europeus sob a República. Prêmios de viagem à Europa foram os principais meios de incentivo de jovens artistas e músicos nas instituições de ensino republicanas, sobretudo no período anterior à Primeira Guerra.

Fatores sócio-político-econômicos no europeísmo de círculos republicanos

A atenção a esse fato revela que ainda mais do que a forma de govêrno, sobretudo fatores sócio-políticos e econômicos que levaram á aclamação o novo regime devem ser particularmente considerados nesse empenho do envio de brasileiros a centros europeus.

Abolida a antiga forma monárquica no golpe militar de 1889, intensificou-se ainda mais o auxílio a jovens de talento no sentido de que realizassem estudos no Exterior. De retorno, seriam gratos àqueles que os promoveram e atuariam como multiplicadores, nobilitando culturalmente os meios sociais que os apoiaram e nos quais se inseriram.

Compreensivelmente, o Partido Republicano Paulista - com os seus influentes representantes da economia cafeeira do Estado - surge como agregação de personalidades que mais se destacaram no apoio a instituições culturais de acentuada internacionalidade.

Inúmeros são os aspectos que podem ser analisados quanto ao significado da cultura européia para os republicanos que, para além do seu poderio econômico, passaram a ocupar cargos de liderança política. Um deles seria o da nobilitação que uma cultura de cariz europeu proporcionava àqueles que já não podiam contar com títulos nobiliárquicos.

O próprio regime sentiu-se premido para fins de prestígio e representação a serviço do comércio estar presente no Exterior e cuidar da sua imagem de país e forma de govêrno civilizada e voltada ao progresso.

Não só o Positivismo deve ser considerado na recepção de correntes européias

A consideração da orientação do pensamento republicano segundo modêlos europeus reduz-se em geral à constatação do papel exercido pelo Positivismo francês nos pensadores e ativistas republicanos.

Essa redução, porém, não permite considerar adequadamente o complexo de tendências do pensamento, da cultura e das artes recebidas no Brasil no período que vai da implantação do regime em 1889 até a eclosão da Primeira Guerra.

Basta lembrar que na Exposição Universal de Paris daquele ano a comunidade internacional tomava conhecimento de um movimento nas artes que remontava ao Manifesto Simbolista do poeta Jean Moréas (1856-1910), de 1886.

Diferentemente do pêso dado ao racional no Positivismo, e diferentemente do Naturalismo e do Impressionismo nas artes, o Simbolismo evitava a fixação conceitual ou a expressão direta de idéias, procurando uma maior profundidade interior, de alma ou psique.

Essas características tornam porém mais difícil de ler sentidos e significados nas múltiplas associações e ambiguidades da linguagem visual.

As dificuldades se acentuam devido às complexas interações no processo de recepção cultural, onde concepções e visões simbolistas se relacionam com tendências do Art Nouveau e com atitudes da assim-chamada Décadence.

José de Freitas Vale (1870-1958) - Jacqus d'Avray - europeísmo e mecenato

O mais influente mecenas da vida cultural paulista da passagem do século foi José de Freitas Vale.

De família originária do litoral paulista, mas nascido no Rio Grande do Sul, para onde o seu pai se transferira em 1838, Freitas Vale pode ser considerado como representante de enriquecidos sulinos com alto grau de auto-consciência de sua situação social, energia e anelos de nobilitação através da cultura e modos de vida cultivados e de distinção.

Esses anelos levaram-no ao cultivo da língua e da literatura francesa, o que se manifestou até mesmo no uso do francês em suas obras e no seu pseudônimo Jacques d'Avray.

Esse pseudônimo permite aproximações à auto-imagem de Freitas Vale. Nele utilizou o sobrenome de sua mãe - Jacques, sugerindo assim um elo com a França. Avray, cidade próxima de Paris, situada no Département Hauts-de-Seine, na região Île-de-France, era conhecida no Brasil sobretudo como terra do diplomata Arthur de Gobineau (1816-1882), pensador conhecido pela sua obra sobre a inegualdade das raças humanas, fundamento da consciência de uma supremacia branca.

Freitas Vale foi uma das várias personalidades influentes de São Paulo que teve a sua formação superior na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde se formou em 1886.

Com o seu casamento com filha de tradicional família de cafeiculturos da região de Campinas, introduziu-se nos meios mais influentes da economia e da política do Estado. Compreensivelmente, tornou-se um dos mais convictos republicanos e representantes do PRP.

A partir de 1895, tornou-se subprocurador do Estado de São Paulo, e, concomitantemente, professor de Francês e Literatura Francesa no Ginásio do Estado.

Foi eleito deputado em 1903. Posteriormente, em 1922, seria eleito ao Senado Estadual.

Uma rêde de elite republicana e instituições paulistas

A convicção republicana e o papel de José de Freitas Vale no Partido Republicano Paulista elucidam em grande parte a rêde de contatos do intelectual e mecenas nas diferentes áreas da política e das artes. Colaborando com outros republicanos e colegas da Faculdade de Direito, tomou parte direta ou indiretamente de iniciativas várias e de criação de instituições, entre elas da Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 1906.

Uma de suas principais iniciativas foi aquela do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo. A partir de 1911, quando participouda comissão da Primeira Exposição Brasileira de Belas Artes, também passou a tomar parte de bancas de seleção do Pensionato Artístico juntamente com Ramos de Azevedo (1851-1928) e Sampaio Viana (1835-1912). Em 1912, foi um dos sócios fundadores da Sociedade de Cultura Artística.

Embora também no Rio de Janeiro existissem prêmios de viagem à Europa em instituições como a Escola Nacional de Belas Artes e o Instituto Nacional de Música, o Pensionato Artístico do Estado de São Paulo merece ser considerado diferenciadamente devido à sua inserção em determinado contexto político-cultural e que era sobretudo aquele do PRP.

Os bolsistas selecionados, jovens que demonstravam aptidões especiais para as artes plásticas, música instrumental e canto, poderiam permanecer até cinco anos na Europa.

Muitos foram os nomes da história cultural de São Paulo que gozaram dessas bolsas e cujos nomes demonstram o papel determinante que o Pensionato desempenhou no desenvolvimento artístico e cultural brasileiros nas suas relações com a Europa. A consideração de seus nomes, dos pressupostos e das circunstâncias de suas idas, assim como das consequências para as ciências, artes e sobretudo para a música do Brasil impõe-se como importante objeto de estudos de processos culturais em relações internacionais.

Entre aqueles que estudaram na Europa com esse apoio, encontram-se João de Souza Lima, Francisco Mignone, Victor Brecheret, Anita Malfatti, Guiomar Novaes, Lúcia Branco, Mário Camerini, Raul Larangeira, Bráulio Martins, Pureza MArcondes, Alonso Anibal da Fonseca, Ernesto De MarcoJosé Wasth Rodrigues, Tulio Mugnaini, Paulo do Valle Júnior, Diógenes de Campos Aires, Mario Barbosa, Romeu e Artur Pereira, Paulo Vergueiro Lopes de Leão, e outros.

A Villa Kyrial de José de Freitas Vale em processos culturais paulistas

Freitas Vale entrou na história cultural de São Paulo sobretudo através de suas atividades como mecenas. Centro de suas atuações foi a mansão com chácara que adquiriu na Vila Mariana, em 1904. Designada como Villa Kyrial, essa casa deveria tornar-e um centro de cultivo cultural segundo modêlos europeus da Belle époque.

Em significativa fotografia da época, vê-se como nas suas varandas que davam a um pátio interno ajardinado, reuniam-se intelectuais e artistas em grande númeor em tardes ensolaradas.

Essa imagem, porém, pouco transmite do espírito que predominava nessas reuniões.

Orientando-se segundo tendências do pensamento em voga na Europa e próximos de simbolistas brasileiros, os convidados aos encontros da Villa Kyrial imergiam numa atmosfera de supra-refinamento, marcada pelas ambiguidades simbolistas entre o culto do puro e da pureza - como nas pinturas religiosas da época - e o pensamento dirigido ao pecado, ao passional, à morte.

Entre as obras de Freitas Vale, salientam-se a primeira e a segunda série dos Tragipoèmes, publicadas em 1916 e 1917. Entre as suas obras mais citadas encontra-se a peça teatral L'Etincelle e L'Elu.

Talvez o título da mansão - Villa Kyrial - possa ser interpretado como chave à compreensão do estado de espírito que nela reinava. O termo é conhecido do Kyrial, o livro que contém o Ordinarium da missa católica. Desperta sobretudo imediatamente associações com o Kyrie eleison - o "Senhor tende piedade de nós" - e, assim, com o homem na sua fraqueza e pecaminosidade.

A Villa Kyrial e a estetização da vida em recordações de J. de Souza Lima

O mais significativo registro da Vila Kyrial encontra-se no capítulo a ela dedicado das memórias de João e Souza Lima (1898-1982).(J. de Souza Lima, Moto Perpetuop: a visão poética da vida através da música, autobiografia do maestro Souza Lima, São Paulo: IBRASA 1982, 43 ss.)

Em longo e pormenorizado capítulo, Souza Lima salienta ter sido na Villa Kyrial que recebeu o impulso definitivo que determinou a sua carreira e vida futura. O seu proprietário, José de Freitas Valle, é lembrado como personalidade de formação cultural extraordinária, dedicado ao cultivo da literatura, das artes e de um modo de viver e de ver o mundo no qual a arte não representava uma esfera distinta da vida quotidiana.

A descrição de Souza Lima de José de Freitas Valle como artista integral revela paralelos entre o mundo que criou e no qual viveu na sua residência na Vila Mariana com aquele conhecido da época do Art Nouveau ou Jugendstil nas suas diversas formas de expressão na Europa. A arte não mais se limitiva a uma esfera superior das artes nobres da pintura, escultura ou arquitetura, mas também às até então vistas como menores do mobiliário, das vetimentas, de objetos de uso, da culinária e da apreciação de bebidas.

É significativo, assim, que José de Freitas Valle também se tenha distinguido como perfumista, uma vez que o perfume, em particular o de flores, tão grande significado adquiria na linguagem visual marcada pela orientação à natureza, em particular ao vegetal.

"Vou me referir agora a outro ambiente, onde fui recebido muito simpaticamente e onde a minha carreira artística teve o impulso definitivo que me levou à situação que desfruto agora. (...) Esse local foi a famosa Vila Kyrial, mansão de propriedade do Dr. José de Freitas Valle, advogado, político, que ocupou altíssimos cargos no nosso governo. Este homem, de uma cultura excepcional, além de desempenhar com grande brilho e competência as atividades na vida pública de nossa cidade, era um autêntico artista: poeta, escritor, músico, perfumista, conhecedor perfeito de vinhos (possuidor de uma riquíssima adega) e organizador de lindíssimas recepções quando da visita de importantes personalidades a São Paulo. Sua Vila Kyrial se tornou célebre e única por ter sido o centro mais famoso de artistas. (....)" (loc.cit.)

A Villa Kyrial não foi apenas um simples salão de reunião de artistas e intelectuais de diferentes tendências, mas sim, pela atmosfera de estetização da vida que ali reinava, centro que marcava desenvolvimentos e superava esferas convencionais e profissionais inserindo-os numa compreensão integral da arte e da vida. O próprio vivenciar do decorrer tempo na Villa Kyrial era impregnado e conduzido pelas artes.

Todos os dias da semana, José de Freitas Valle reunia representantes de diferentes áreas artísticas para o jantar, começando à segundas feiras pelos pintores, seguindo-se artistas plásticos à terças, músicos às quartas, poetas às quintas, escritores às sextas e políticos e amigos em geral aos sábados. Essa divisão da semana testemunhada por Souza Lima parece indicar relações com a simbologia dos dias da semana, destacando-se assim em antiga tradição a quinta-feira, principal dia ao lado do domingo, como dia da poesia.

Não parece ser arbitrário o fato de escolher-se o meio da semana, a quarta, dia de Mercúrio, para o encontro de músicos. Significativo também é o fato da política e outras esferas de atividades estarem representadas nessa configuração da semana impregnada pelas artes, representando até mesmo o seu fêcho no sábado, após o encontro com os escritores na sexta-feira. 

As reflexões encetadas durante a semana a partir das preocupações e experiências de determinadas esferas artísticas e da política como arte interagiam por fim em grandes almoços de domingo, quando então se reuniam todos aqueles que haviam participado dos jantares durante a semana. Nesses encontros de domingos, as relações entre cultura, artes e a natureza determinavam as horas de convívio.

Como Souza Lima testemunha, os convidados passeavam após o almoço pelo parque da Villa Kyrial, apreciando os seus jardins e a paisagem da região então ainda idílica da Vila Mariana. Se os encontros durante a semana se davam à noite, os de domingo tinham o seu ponto alto às horas de crepúsculo. Os convidados reuniam-se então no salão da Villa Kyrial, dedicando-se à apreciação e à celebração das obras de arte das coleções de José de Freitas Valle, não só de pintura e escultura, como também de objetos decorativos e de uso.

Para fazer-se uma idéia do quanto nosso anfitrião prezava os artistas e cultivava o seu convívio, basta dizer que em todos os dias da semana, sem exceção, reunia um grupo para jantar ao seu lado. Assim, nas segundas-feiras recebia pintores, nas terças-feiras escultores, nas quartas-feiras músicos (aos quais chamava: 'o Pessoal da Lira. Nesse grupo estavam João Gomes Junior, Carlos Pagliuchi, Osório César, eu, os cantores Ernesto de Marco e Santino Giannattasio), nas quintas-feiras poetas, nas sextas-feiras escritores, aos sábados políticos e amigos e aos domingos, em almoços magistrais, realizados no grande terraço de sua bela vivenda, todos os que estiveram durante a semana, (...) Depois do lauto almoço, passeávamos no parque que rodeava a casa, (...) até a tarde, quando então, já à noitinha, éramos reunidos na Galeria, grande salão onde se apreciava a imensa coleção de valiosíssimos quadros (para os quais havia iluminação própria e adequada), esculturas e objetos de arte. (....)"

O simbolismo que impregnava a concepção integral da vida na Villa Kyrial revela-se da forma mais evidente - e ao mesmo tempo singular - no fato de constituir quase que uma ordem mística ou espiritual inspirada em ordens de cavalaria medieval, hierarquicamente constituída. Para além de Freitas Valle como chefe supremo, secundado pelo seu heraldo, o músico e compositor Felix de Otero (1868-1946), formado na Alemanha. Os participantes dos almoços dominicais eram classificados segundo graus quase que iniciáticos, distinguindo-se entre cavaleiros e aspirantes, o que se reconhecia através de insígnias.

A Vila Kyrial (...) era uma espécie de Ordem Cavaleiresca, e todos os comensais dos domingos tinham um título, uns sendo Cavaleiros, outros, menos graduados, Aspirantes. Todos ostentavam na lapela o distintivo de seus graus. O Chefe Supremo, Freitas Valle, tinha como seu heraldo, o professor Félix Otero; a língua oficial nas reuniões era o espanhol (...)

O problema da falta de cultura de músicos - o "pessoal da Lyra"

Do depoimento de Souza Lima, depreende-se que uma das preocupações de José de Freitas Valle era o de tentar elevar o nível cultural dos músicos que participavam das reuniões. Parece ser revelador, neste sentido, que designasse o grupo dos músicos como "pessoal da Lira", o que parece poder ser entendido como expressão jocosa de sentidos depreciativos quanto ao nível intelectual de instrumentistas.

Significativo também é o fato de pedir aos músicos que chegassem uma hora antes do jantar, para que pudessem instruir-se na biblioteca da Villa Kyrial. Sobre um hino com texto e música do próprio Freitas Valle, cada músico do círculo mais estreito era levado a criar uma paráfrase sobre a sua composição. Surgiram assim, elaborações do hino para piano, também de músicos de renome e professores como A. Cantú.

"(....) o Pessoal da Lira era o grupo que mais gozava a camaradagem do nosso chefe e amigo. Nos dias do nosso jantar em sua companhia, fazia questão que chegássemos em sua residência com uma hora de antecedência, para permanecermos em sua maravilhosa biblioteca, lendo e aproveitando para nos instruir. Por aí se vê o interesse que nos dispensava, desejando nos tornar mais cultos.

(...) Freitas Valle dotou sua Vila de um hino de sua lavra, não só na música como na letra e sempre com aquela intenção de estimular os seus amigos músicos, fez questão que os compositores escrevessem uma paráfrase sobre o hino. Assim, de pois de pouco tempo, aparecram trabalhos do professor Cantú, de Mignone, de João Gomes Jr., todos para piano. Apenas o meu foi escrito para piano a quatro mãos."

Ao "pessoal da Lira" pertenciam, segundo o depoimento de Souza Lima, músicos mais jovens como o pianista João Gomes Júnior - o filho de João Gomes de Araújo - o violinista Osório César e o flautista Carlos Pagliuchi. Com a colaboração de um clarinetista - um funcionário bancário amador - e o Dr. Carlos de Campos no contrabaixo, formavam um conjunto instrumental que se apresentava nas reuniões.

Ao grupo pertenciam também cantores, uma vez que era dado ao canto particular atenção, entre êles Santino Giannattasio e Ernesto de Marco. Como Souza Lima salienta, várias composições para canto e piano surgiram na Villa Kyrial, destacando-se aquelas escritas em francês pelo Chefe Supremo sob o pseudônimo Jacques D'Avray.

Muitas composições de valor surgiram naquela Vila de Arte, principalmente em obras para canto e piano, que eram escritas sobre versos, em francês, de Jacques D'Avray, pseudônimo de Freitas Valle (professor e profundo conhecedor da língua)." (...)

Freitas Vale e o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo

A menção do nome do Dr. Carlos de Campos como participante dos encontros da Villa Kyrial revela os elos entre o círculo liderado por Freitas Valles e o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Carlos de Campos pertenceu ao grupo diretivo do conservatório e manteve-se até o fim de sua vida estreitamente ligado à instituição, em particular a João Gomes de Araújo (1846-1943).

Assim como o Dr. Pedro Augusto Gomes Cardim (1865-1932), a quem coube a iniciativa de fundação do estabelecimento, outros professores se destacaram pela proximidade ao Partido Republicano Paulista.

Ainda que tendo sido apoiado por Dom Pedro II nos últimos dias do Império, João Gomes de Araújo provinha de família relacionada com o comércio de café, tendo atuado na firma paterna após os seus estudos no Rio de Janeiro. Compreende-se, assim, que mesmo não se dedicando mais intensamente à política, João Gomes de Araújo tivesse uma proximidade social e cultural com círculos influentes do Govêrno. Esse fato demonstrou-se na sua estreita amizade com o Dr. Gomes Cardim e o Dr. Carlos de Campos, assim como com Freitas Valle.

A Trialogia da Noite, texto de Jacques d'Avray e música de J. Gomes de Araújo


João Gomes de Araújo colocou em música o poema lírico "A Triologia da noite" de Jacques D'Avray. Escrita para coro (sopranos, tenores e baixos) com acompanhamento de orquestra, foi executada em sessão solene no Conservatório. A sua filha Estephania Gomes de Araújo, sua estreita colaboradora, salienta essa obra como uma das mais significativas de sua produção:

"Trabalho bastante sugestivo, em que o compositor descreve com delicadeza a poesia da noite, desde as primeiras horas, passando depois para os momentos em que a escuridão é mais profunda e voltando novamente ao encanto das últimas horas, que é quase o amanhecer..." (João Gomes de Araújo: sua vida e suas obras, São Paulo 1946, pág. 111)

Essa sua descrição porém, não parece corresponder adequadamente aos sentidos mais profundos do poema e do seu tratamento musical por Gomes de Araújo. A divisão em três partes sugerida - a das primeiras horas da noite, a da noite alta e a do alvorecer - sugere um intuito de descrição naturalística ou mesmo impressionística que não atenta aos sentidos simbolistas do poema e de seu tratamento musical - sobretudo harmônico.

O próprio termo Trialogia não pode ser entendido simplesmente como indicativo de três partes da noite. Não se trata de Trilogia, mas sim de Trialogia. Neste sentido, o termo sugere dimensões psicológicas do poema, o de interlóquios a três, de três pessoas ou grupos.

Ó noite! Ó noite! Extrema unção do sol que anoitece para a vida accordar no silencio que dorme...Noite! Extasi do dia! Encantação da prece. Que de anceios povoa a immensidão enorme. Naus de gloria e de amor de lucto e desconforto ainda és tu que nos dás o derradeiro porto (3x).


"Extrema unção do sol que anoitece"

A morte é sugerida logo de início do poema lírico de Jacques d'Avray. Após evocar a noite, esta é designada como extrema unção do sol. Com essa menção ao último ato sacramental católico, associado à morte por ser recebido por moribundos, o autor revela que pensa no sentido mais profundo e próprio da unção como sinal efetivo de cura, de alma e corpo. A temática, neste sentido, é antes a da doença - de alma e corpo -, e a sua cura.

É o sol aquele que é ungido, este é o que anoiteceu, ou seja, caiu no estado de torpor de um adormecimento. A cura proporcionada pela unção nesse estado equivale a um despertar da vida no oculto interior daquele que dorme em sono reparador.

Essa linguagem do poeta indica o seu conhecimento de antigas práticas curativas e que teria na narrativa bíblica de Lázaro a sua expressão cristã. Sugere assim uma ressurreição, um reviver.

"Extase do dia"

A noite é designada a seguir de êxtase do dia. Também aqui manifesta-se o simbolismo de Jacques d'Avray e a coerência do seu jogo de imagens. A extrema unção é a noite como êxtase do dia, e que não deve ser confundido com o sol. É o dia que cai na êxtase que, como unção, possibilitará a cura interior.

A êxtase sugere aqui o sair fora de si pela entregar-se em alucinação à paixão e ao passional. Na comparação com o sacramento da extrema unção, a êxtase surge como meio de cura de doenças de corpo e alma que levam à morte.

Jacques d'Avray decanta assim o extasiar-se e o cair em êxtase como meio de ressurreição íntima na realidade mais profunda do homem. Ao mesmo tempo que sugere a doença e a decadência daquele que adoeceu de morte, designa a êxtase - e assim as suas implicações sensuais - como meio de revivescência. Decadência e sensualidade relacionam-se nas suas expressões.

"Encantação da prece"

A noite, extrema unção, é relacionada com o ato encantatório daquele que ora, comparando de modo não explícito o sacerdote católico com o encantador. O encantar, relacionando palavras e música, revela as dimensões musicais da imagem da noite no poema. Essa prece cantada ou o canto orante formula e desperta anseios que preenchem todo o espaço incomensurável do homem.


"Naus de gloria e de amor de luto"

Os anseios despertados pelo ato de encantamento da unção daquele que se encontra desfalecido ou que falece são designados como naves de gloria e de amor de luto. O autor atinge aqui o significado da extrema unção como sacramento último, como sacramento da morte, de entrega em amor ao luto e ao desconforto.

Essa nau da noite é que levará ao último porto da vida do homem em viagem neste mundo. Nessas últimas expressões revela-se a imagem condutora de um navegar à procura de portos, sendo a morte o último porto. Antigas imagens relacionam-se assim na obra poética simbolista de Jacques d'Avray,


Súmula de trabalhos da A.B.E.e do I.S.M.P.S. sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo, Universidade de Colonia



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“ A Villa Kyrial e a Trialogia da Noite. Simbolismo nas relações do Brasil com a Europa
da elite republicana paulista no exemplo de elaboração para côro de vozes femininas
do poema lírico de José de Freitas Valle (1870-1958)“
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 160/11 (2016:02). http://revista.brasil-europa.eu/160/Trialogia_da_Noite.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
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Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.