O Ano Carlos Gomes no Pará - 30 anos
ed. A.A.Bispo
Revista
BRASIL-EUROPA 161
Correspondência Euro-Brasileira©
O Ano Carlos Gomes no Pará - 30 anos
ed. A.A.Bispo
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BRASIL-EUROPA 161
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N° 161/13 (2016:3)
O Ano Carlos Gomes de 1986 no Pará
saídas e retornos
fatores étnicos e psicológico-culturais
imagens da floresta e processos civilizatórios
50 anos de homenagem a Carlos Gomes em São Paulo (1966)
40 anos do início do programa euro-brasileiro em Milão (1976)
30 anos do Ano Carlos Gomes (1986)
"
Fotografias de trabalhos em Belém da década de 1980
Decorridos 30 anos do "Ano Carlos Gomes" de 1986, assim oficialmente declarado devido à passagem do sesquicentenário de nascimento de Antonio Carlos Gomes e que coincidiu com aquela dos 90 anos de sua morte, torna-se oportuno recordar alguns dos trabalhos então realizados na Europa e no Brasil. Revê-los pode contribuir ao prosseguimento das reflexões e pesquisas, revendo interpretações e prevenindo repetições.
Os trabalhos de 1986 foram preparados e deram continuidade àqueles do ano anterior, o "Ano Europeu da Música" de 1985, quando fundou-se o Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS e.V.). (Veja)
A consecução desses estudos e iniciativas teve como objetivo salientar o "Ano Carlos Gomes" como precedente ao "Ano Villa--Lobos" de 1987, quando realizou-se, em São Paulo, o Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia juntamente com a reunião regional para a América Latina e o Caribe do projeto "Música na Vida do Homem" do IMC/UNESCO. Neste congresso estiveram representados participantes dos trabalhos anteriores, salientando-se o Prof. Dr. José de Almeida Penalva (1924-2002), assim como pesquisadores de Campinas e de Belém.
O "Ano Carlos Gomes", caindo entre o "Ano Europeu da Música" e aquele que comemorou o compositor mais destacado da música conotada como nacional brasileira, foi marcado por reflexões preominantemente voltadas ao europeu na cultura e nas artes, ao nacional e ao nacionalismo, tanto na Europa como no Brasil. Tratou-se, assim, de uma problemática de alto significado em época marcada por esforços de integração européia, e fundamental para os estudos brasileiros, em particular para aqueles referentes à música, uma vez que a historiografia nacionalista marcou de forma singularmente duradoura visões e interpretações de decorrências.
Carlos Gomes surge como personalidade de alta relevância para o tratamento dessas questões, uma vez que a sua pessoa e sua obra foram repetidamente alvo de apreciações ambivalentes, decantadas por um lado patrioticamente como manifestações da brasilidade, por outro como por demais internacionais, europeizadas ou italianizadas, não tendo características nacionais na sua linguagem.
Constantemente levantou-se a questão se Carlos Gomes deva ser considerado comoi compositor brasileiro, italiano, ou ítalo-brasileiro. Como em poucos outros casos, Carlos Gomes possibilita que se reconheça a problemática dessas atribuições. Não as tentativas de detectar a vida e da obra do compositor o europeu ou o brasileiro, o nacional ou o não-nacional, mas sim as próprias categorizações de musicógrafos e publicistas em geral oferecem-se como principal objeto de análises de processos culturais.
Os debates desenvolvidos pelo Ano Carlos Gomes partiram do presente, da situação então atual das opiniões publicadas. Uma especial atenção foi dada ao Pará, uma vez que o fato de Carlos Gomes ter falecido em Belém determina situações, posições e pontos de vista onde orgulho regional, patriotismo e interpretações da nacionalidade ou brasilidade de sua obra interagem de modo particularmente acentuado e que encontram equivalências apenas em Campinas, a terra de nascimento do compositor.
Se em Campinas trata-se da cidade natal e da primeira formação do compositor, o Pará, porém, foi a sua terra de escolha terminal, do seu retorno e de sua morte. Carlos Gomes chegou a identificar-se explicitamente como paraense, não escondendo amarguras relativamente a São Paulo. Mesmo assim, os seus restos mortais foram entregues à sua terra natal e que, nas décadas que se seguiram, salientou-se no cultivo de sua memória.
É o retorno de Carlos Gomes ao Pará que surge, assim, como de especial interesse para questões relativas a sentimentos nacionais, patrióticos, de afeto, amarguras e idealizações de regiões.
A vinda de Carlos Gomes a Belém sob perspectivas psicológico-culturais
Vários são os indícios de que o retorno de Carlos Gomes ao Brasil, já gravemente cometido de doença letal, não foi apenas um ato premido pelas necessidades, mas expressão de ímpetos interiores ou de auto-consciência cultural em resolução última de uma situação marcada por duplos ou ambivalentes elos culturais e por ideais fundamentados em visões do mundo e do homem
Plenamente integrado na Itália, que designara poucos anos antes como a sua segunda pátria e que brindara com vivas em recepções na sua Villa Brasilia às margens do lago de Como (Veja), para a qual compusera hinos e marchas militares, o compositor nunca tinha deixado de salientar o seu patriotismo pela terra natal, colocando a sua vida e as suas atividades sob o lema "Pro Brasilia".
Como repetidamente salientado na literatura, Carlos Gomes esperara receber do Brasil um reconhecimento à altura da projeção que dera ao país no Exterior em cargo de direção da principal instituição musical do país - o Conservatório de Música - sendo porém preterido por personalidades mais jovens, de muito menor experiência e projeção internacional, porém mais afins ao regime instaurado pelo golpe republicano de 1889.
Fatos e indícios documentados na sua correspondência e lembrados na literatura de forma romanceada mereceriam ser assim analisados mais pormenorizadamente pela sua relevância para atuais preocupações por questões relativas a processos culturais vivenciados por brasileiros no Exterior. Eles falam de integração e diferenciação auto-afirmativa, de idealização de imagens da terra de origem e consequentes decepções ou perda de ilusões.
O Pará à época do apogeu da borracha e a imagem da selva em Carlos Gomes
As desilusões e amarguras do compositor relativamente a São Paulo e ao Rio de Janeiro contrastam com a sua idealização do Pará. Esta teve tal intensidade que o levou a abandonar a Itália para poder cumprir o seu acalentado ideal de ser convidado a assumir a direção de uma instituição em reconhecimento aos méritos que alcançara no Exterior a serviço da projeção do Brasil.
Para além de esperados apoios de personalidades amigas no Govêrno e na vida musical paraense, fatores subjetivos necessitam ser considerados nessa decisão de Carlos Gomes, uma vez que não deixa de ser surpreendente e ter mesmo marcas de ímpetos interiorizados.
A idealização de Belém por parte de Carlos Gomes não parece poder ser compreendida apenas como um aspecto de uma generalizada síndrome de valorização da terra natal por brasileiros no Exterior, mas sim também como resultado do significado do Pará e da Amazônia em geral na Europa à época do apogeu econômico da borracha.
A vinda do compositor brasileiro foi, neste sentido, um dos mais significativos indicadores da imagem que gozou o Pará pelas suas riquezas e desenvolvimento despertador de grandes expectativas em fins do século XIX e que teve a sua repercussão, na Itália, na determinante presença paraense em mostras internacionais de comércio, indústria e trabalho.
As aproximações à compreensão dos sentidos mais amplos e profundos da selva podem encontrar a sua fundamentação no estudo do parque de sua Villa Brasilia em Lecco, que com características de sombria e intrincada mata virgem relacionava-se com a floresta onde se encontrava Dante na Divina Commedia e, consequentemente, com questões do humano, do desenvolvimento ou aperfeiçoamento interior do homem e, assim com visões de processos civilizatórios e culturais compreendidos no símbolo da lira. (Veja)
A idealização do Grão-Pará que se revela em palavras e no ato de vinda de A. Carlos Gomes seria assim uma expressão última, existencial, de interiorização de um edifício de imagens de antiga proveniência na sua contextualização italiana.
Neste sentido, ainda que aparentemente paradoxal, a vinda de Carlos Gomes ao Pará para dirigir o Conservatório seria manifestação última das profundas interações da natureza do Brasil com o edifício de imagens transmitido pela principal obra da literatura italiana e, assim, não só de brasilidade, como também de italianidade.
Neste sentido, ainda que ali poucos meses tenha sobrevivido e pouco atuado, o retorno terminal de Carlos Gomes ao Brasil tem um significado transcendente para a história de processos culturais do Pará e mesmo da Amazônia em geral nas suas relações com a Europa.
Compreende-se, assim, que uma das preocupações dos estudos euro-brasileiros em 1986 foi a de considerar com particular atenção os eventos que em Belém, por ocasião do ano comemorativo, revelavam modos de ver e avaliar a vinda do maior compositor brasileiro para a cidade e as sua presença no presente.
Carlos Gomes e a questão da saída e do retorno de artistas
Essa entidade, fundada dois anos antes, teve a sua sessão inaugural marcada por conferência de Vicentes Salles, o mais renomado pesquisador da cultura e da música do Pará. O pêso da sessão de 1986 foi dado a execuções musicais, sendo a mesma realizada na sala Ettore Bosio do Conservatório Carlos Gomes, então dirigido por Glória Caputo. (Lenora Menezes de Brito, "Uma noite de arte", O Liberal, 08 de junho de 1986, 1° Caderno, pag. 18 )
Embora incluindo obras de outros compositores, a noite de música da APM foi marcada sobretudo pela música de Carlos Gomes. O compositor esteve primeiramente representado no programa com a peça Murmúrio, interpretada pelo violinista Nildo Bahia, acompanhado por Leonora Menezes de Brito em substituição à pianista Nazaré Pinheiro, impedida por motivos de doença.
A solenidade foi encerrada com a Protofonia do Il Guarany, na redução de Nicolò Celeg, executada a oito mãos pelas pianistas Ana Maria Santos, Lúcia Arantes de Oliveira, Eliana Kotschoubey e Lenora Menezes de Brito. A ela seguiu-se o hino nacional cantado pela assistência, acompanhado ao piano por Hélio Gaspar.
O fato de Nildo Bahia estar de saída de Belém para dar prosseguimento a seus estudos, foi motivo de reflexões que marcaram a sessão quanto aos problemas representado pelo êxodo de talentos pela falta de uma escola superior de música no Pará.
Essa preocupação - e chamada de atenção às autoridades - manifestou-se sobretudo em considerações relativas ao ensino de canto que se seguiram à interpretação de obras vocais de Carlos Gomes.
Estas constaram da modinha Quem sabe?, interpretada por Márcia Aliverti, acompanhada ao piano por Eliana Kotschoubey e, de Sinto uma força indômita, dueto final do primeiro ato de Il Guarany, cantado por Adelermo Matos, tenor paraense que não se apresentava em público já há mais de vinte anos.
O retorno de Adelermo Matos ao palco, que tinha realizado estudos na Itália e cantado junto a intérpretes de renome internacional, surgia como um promissor sinal para uma nova fase de desenvolvimento da arte lírica no Pará no ano comemorativo de Carlos Gomes.
A temática do êxodo de talentos e do retorno daqueles que estudavam no Exterior ou em outras cidades do Brasil impunha-se no ano comemorativo de um compositor que estudou e viveu na Itália, mas que retornou ao Brasil, ainda que para morrer.
Compreende-se, assim, que a ocasião tenha sido aproveitada para a manifestações de desejos e de apelos a que estudantes que se encontravam fora retornassem ao Pará após o término de seus estudos. Mencionandos explicitamente a cantora Marina Monarcha, que terminava o seu mestrado em canto no Rio de Janeiro, pediu-se que retornasse a Belém após os seus exames finais, lembrando-lhe que ali havia muitas possibilidades para a sua atuação. A muitos promissores participantes em corais que possuiam qualidades vocais e aptidões artísticas fazia falta um um ensino sistemático que poderia ser tarefa da cantora.
A exposição pelo "Ano Carlos Gomes" em Belém e a vinda da orquestra de Campinas
A maior parte das comemorações do Ano Carlos Gomes em Belém tiveram lugar nos meses de setembro e outubro de 1986.
A programação contou com várias conferências, concursos para estudantes e audições de obras de Carlos Gomes. Ponto alto das programações foi a vinda, em outubro, de cantores e músicos de Campinas que, sob a regência de Benito Juarez, realizaram o Il Guarany no Teatro da Paz.
O mês de julho, sendo época de férias escolares, não poderia reunir professores e alunos de música para um recital com obras do compositor.
A data do nascimento de Carlos Gomes foi lembrada com a abertura de uma exposição sobre a sua vida em Belém e suas obras, que inaugurou as comemorações do sesquicentenário.
A exposição foi preparada pela Fundação Cultural Tancredo Neves através da Biblioteca Pública Arthur Vianna. Contou com o apoio da Academia Paraense de Música, do Conservatório Carlos Gomes, do Teatro da Paz, do Instituto Histórico e Geográfico Paraense, da Imperial Sociedade Artística Paraense e do Conselho Estadual de Cultura.
A mostra, que teve lugar no edifício da Centur, apresentou, entre os objetos expostos, máscara mortuária de Carlos Gomes, de autoria dos escultores De Angelus e Capranese, um medalhão com a sua imagem pertencente ao Teatro da Paz e que se encontrava na Praça da República,, uma peça de cristal de 1896 de autor chileno não identificado, fotografias originais do funeral, a última fotografia tirada em vida e uma miniatura da partitura de Il Guarany editada em 1896.
Questões etno-culturais e psicológicas - o "selvagem" em Carlos Gomes
Não se podendo, porém, deixar passar a data do seu nascimento sem comentários, a autora tratou do seu caminho integrativo, de sua aceitação e de seus sucessos na Europa no artigo publicado em O Liberal (A ascensão do músico na Europa", 11 de julho de 1986, loc.cit.).
Citando Gaspare Nello Vetro nos seus estudos de dados da Gazetta Musicale de Milão, a autora lembra que o brasileiro teria sido visto como "um selvagem transportado para Milão", ou seja, sem civilidade e cultivo social, uma vez que por todo lado pressentia perigos e traições, perseguições, vendo inimigos por toda parte.
Apesar dessas aparências e atitudes pouco civilizadas ou de distinção social, não teria sido, porém, um misantropo, tendo um íntimo nobre e generoso, pleno de afeto para com os amigos.
Também o seu entusiasmo nas relações humanas e pela arte teria tido algo de incontido, de pouco controlado, de impulsivo, e assim pouco civilizado ou selvagem. Como exemplo, lembra do comportamento do compositor ao vivenciar o sucesso do Il Guarany, primeiramente fugindo para os bastidores e, por fim, subindo ao palco para receber aplausos de forma convulsionada, por assim dizer selvagem.
Esse incultivo do compositor brasileiro teria correspondido à sua indisciplinação nos estudos, a sua pouca academicidade. A sua formação dera-se antes de modo informal através da frequência assídua ao teatro em Milão e do estudo auto-didata de partituras, entusiasmando-se pela grande ópera.
Com essas observações, Lenora Menezes de Britto ofereceu importantes impulsos às reflexões do "Ano Carlos Gomes", uma vez que, no exemplo de Carlos Gomes, também abriu perspectivas para a análise e discussão de processos integrativos de brasileiros na Europa.
De questões de civilização e cultura do brasileiro a traços nacionais na criação musical
É a partir das considerações relativas à própria incivilidade ou pouco cultivo social do compositor vindo do interior provinciano que a autora passa a refletir sobre a questão do sentimento nativo e dos traços nacionais em Il Guarany.
Citando Marcello Conati, renomado estudioso de G. Verdi (1813-1901), e co-autor do livro sobre Carlos Gomes que tambem conta com a presença de Gaspare Nello Vetro, seria o forte sentimento nativo de Carlos Gomes que explicava a "luz ensolarada e brasílica" de certos momentos de sua obra, como o trecho nostálgico, quase de modinha, da ária de Ilára que decanta o céu de Paraíba. Outro exemplo encontrar-se-ia no prelúdio orquestral do quarto ato de Lo Schiavo que, segundo Marcello Conati, seria até mesmo um modêlo antecipador do Hino ao Sol em Iris, de P. Mascagni (1863-1945). Também em outras obras sentir-se-iam traços brasileiros de difícil definição, lembrando a autora a serenata Piccirella de Salvator Rosa.
A conotação brasileira seria para a autora mais evidente nas danças, sendo que aqui não se trataria apenas de qualidades dificilmente definíveis percebidas por brasileiros. Citando João Itiberê da Cunha, Lenora Menezes de Brito lembra a dança dos tamoios, por incluir elementos exóticos, rítmicos e melódicos, assim como o instrumento que o autor mandou construir para dar cor local. Também aqui, porém, a autora supõe procedimentos pouco sistemáticos, sendo os elementos utilizados baseados em dados encontrados em publicações antigas sobre indígenas.
Citando Monteiro Lobato, Carlos Gomes teria sido o primeiro que teria "sinfonizado" a grandeza rude das florestas virgens.
Essas elos da música de Carlos Gomes com a pujança da mata e à rudeza bravia da natureza, que foram de relevância no discurso da historiografia nacionalista posterior a Carlos Gomes, lembrando-se aqui do texto introdutório "Sinfonia da terra" da História da Música Brasileira de Renato Almeida (Rio de Janeiro: 1942, 2a. ed.aum., XXIX), explicavam-se segundo a argumentação da autora como resultados de impulsos espontâneos, derivados das próprias condições psíquico-culturais de um brasileiro vindo da província e que tinha muito de incivilizado, selvagem ou pouco cultivado na sua configuração psíquico-cultural e comportamento.
Como discutido nos encontros euro-brasileiros, porém, a floresta pertencia ao edificio cultural transmitido pela Divina Commedia, obra fundamental da literatura italiana, que era lida e estudada no círculo de pensadores e artistas a que pertenceu Carlos Gomes e que teve a sua mais evidente expressão no parque de sua villa em Maggianico di Lecco. Era, assim, uma imagem refletida e consciente na visão do mundo e do homem, de remotas origens, uma constatação que implica na revisão das interpretações. O incivilizado ou o selvagem visto pelos italianos em Carlos Gomes ao chegar na Itália deu lugar no seu próprio processo integrativo, e em complexas interações, a uma imagem da natureza incultura como metáfora do mundo terreno e do homem de alta erudição e fundamental para concepções de processos culturais transformadores e civilizatórios da sua época.
Projeto de obra sobre a história de Carlos Gomes no Pará
Pelos jornais de Belém, tomou-se conhecimento, em 1985, dos trabalhos que visavam a publicação de uma obra de grandes dimensões sobre a história de Carlos Gomes no Pará.
Por motivo da Semana Cultural que se realizou pela passagem dos 90 anos do falecimento do compositor, Ney Conceição Rodrigues Dantas de Feitosa, advogada e bacharel em Comunicação Social, apresentou alguns resultados das pesquisas em desenvolvimento. ("Carlos Gomes e `A Província do Pará´, A Província do Pará, 7, Caderno 2, 21 de setembro de.´1986)
No arquivo histórico do Itamaraty, a autora encontrara um despacho em resposta a telegrama passado de Lisboa pelo Ministro do Exterior por ordem do Presidente Prudente de Moraes (1841-1902) e que demonstrava que tudo que fora necessária teria sido feito para a viagem de Carlos Gomes até Belém.
Para a autora, seria de conhecimento geral que o governador Lauro Sodré (1858-1944) apoiou a vinda do compositor para dirigir a Academia de Música recém-criada pela Associação Paranese Propagadora das Belas Artes, mas pouco conhecimento se tinha da atuação do Senador Antonio José de Lemos (1843-1913), diretor de A Província do Pará, no apoio logístico ao compositor na sua aclimatação e integração em Belém. A ele colocou à disposição o major da Guarda Nacional Licínio Silva, que também era jornalista de A Província do Pará. Juntamente com o enfermeiro Raul Franco, foi esse jornalista que acompanhou Carlos Gomes nos últimos dias de sua vida.
A autora menciona carta a Paulino Brito (1841-1913) de Licínio Silva, no qual este menciona que o senador Antonio José de Lemos declarara que relativamente a auxílios econômicos, ia recorrer ao governador de S. Paulo, Campos Sales (1841-1913. Este havia assegurado que Carlos Gomes receberia não só os recursos que necessitasse do Tesouro do Estado como também de seu bolso particular. Carlos Gomes, porém, afirmara que jamais faria uso de qualquer importância que viesse de São Paulo: pertencia ao Pará e só aceitaria ajuda do Pará.
Somente pesquisas mais aprofundadas poderiam esclarecer os motivos da mágoa que Gomes nutria para com São Paulo. Foram, assim o senador Lemos e o jornal "A Província do Pará" os grandes protetores de Carlos Gomes.
A autora lembra, no seu texto, que logo após a morte de Carlos Gomes, o seu nome passou a designar a Academia de Música do Pará, que teve a sua denominação mudada para Instituto Carlos Gomes. Essa iniciativa deveu-se ao deputado Hygino Amanajás, fundador da Imprensa Oficial do Estado, autor do respectivo projeto de lei de 08 de abril de 1897.
Esse deputado salientou-se por iniciativas relativas a outras questões de natureza emblemática, salientando-se o seu projeto de lei que devia oficializar o estandarte do Club Republicano Paraense como bandeira do Estado. Em sessão de 8 de junho de 1898, considerando que o estandarte tinha sido levado para São Paulo cobrindo o caixão com o corpo de Carlos Gomes, e no ano seguinte, para Canudos com o Regimento da Brigada Militar do Pará, o mesmo deputado apresentou projeto de lei oficializando como bandeira do Estado aquele estandarte, que o intendente Arthur Indio do Brazil (1856-1933) havia oficializado como bandeira do município de Belém a 10 e abril de 1890.
Sob o Govêrno de Jader Barbalho e iniciativa, entre outras de Maria da Glória Boulhose Caputo, instituiu-se a Fundação Carlos Gomes, que contou no início e suas atividades com o apoio cultural da Paratur, presidida por Carlos Rocque, um jornalista que defendia a opinião de que também a cultura podeia contribuir para o desenvolvimento sócio-econômico do Estado.
Conservatórios e bandas Carlos Gomes e patriotismo no cultivo de sua memória
"Em São Paulo, no Rio, no Pará, em quase todo o Brasil, nasceram escolas de música que tiveram como germe o sucesso do nosso maior musicista: Carlos Gomes. Um dos traços que mais caracterizaram a personalidade do grande maestro Carlos Gomes era o seu imenso amor à terra em que nasceu: o Brasil.
Fazia mesmo questo de frisar a sua nacionalidade, e no seu testamento assinou: Antonio Carlos Gomes, brasileiro e patriota. Faleceu a 16 de setembro de 1896, aos 60 anos, em Belém do Pará, onde era diretor do Conservatorio. (...) Com a sua morte, a direção do Conservatório foi reestruturada e este recebeu nova denominação: Instituto Carlos Gomes."
Significado foi o fato do jornal recordar as bandas de regiões do interior que trazem o nome do compositor e que atuam sob o signo do patriotismo por êle representado. Entre elas, mencionou-se a Banda Carlos Gomes de Cachoeira, na Ilha de Marajó, fundada em 1908. Essa banda foi dirigida por uma personalidade que muito se empenhou na difusão de obras de Carlos Gomes: José Affer de Miranda.
Um desideratum: mostra do acervo documental sobre Carlos Gomes em Belém
Essa exposição devia representar um grande evento ao lado da transformação do Conservatório em Fundação e da apresentação do Il Guarany no Teatro da Paz. Esses três eventos representariam os momentos principais da participação do Pará nos festejos nacionais de Carlos Gomes.
O autor considera esses três momentos nas suas estreitas relações. A transformação do antigo Conservatório de Música em Fundação com o nome de Carlos Gomes, medida apropriada por força da legislação civil e que prometia a ampliação das atividades da instituição, justificava-se pela história do Conservatório nos seus elos com o compositor. Tinha sido no salão do antigo Conservatório - posteriormente sede da Sociedade Artística Internacional e que desde 1975 abrigava a Academia Paraense de Letras - que teve lugar o velório de Carlos Gomes.
A apresentação do Il Guarany pela Sinfônica de Campinas no Teatro da Paz, sob a regência de Benito Juarez, trazia à memória que os elos de Carlos Gomes com Belém eram muito mais remotos àqueles de sua vinda definitiva no fim de sua vida. O próprio compositor tinha dirigido o Il Guarany em 1882 na casa de espetáculos do antigo Largo da Pólvora e a lembrança dos antigos sucessos fora um fator de sua decisão de transferir-se para Belém.
A questão de sempre: Carlos Gomes e o nacionalismo brasileiro
A preocupação pelas questões relativas ao nacional em Carlos Gomes, que marcou as reflexões de 1985 (Veja), voltou a ser tratada no ano comemorativo através dos jornais de Belém, agora sob o signo da declaração oficial de ser Carlos Gomes o "patrono da música no Brasil".
Abelardo Santos, em artigo de título "Carlos Gomes e o nacionalismo brasileiro" (O Liberal 7, caderno 1, 26.10.1986), salientava que a única objeção colocada por alguns musicólogos à obra de Carlos Gomes seria aquela que se fundamentava na sua excessiva obediência aos cânones da ópera italiana, faltando-lhe assim o traço nacional encontrado em outros compositores brasileiros ou abrasileirados que o sucederam, dos quais avultava o nome de H. Villa-Lobos (1887-1959).
Para tratar dessa questão, o autor baseia-se em no livro "Uma nova História da Música" de Otto Maria Carpeaux (1900-1978). Carlos Gomes, que foi durante certo tempo "unânimamente idolatrado" e considerado oficialmente como compositor nacional, o que continuava a repetir-se no presente, não fora poupado pelo Modernismo. A Semana de Arte Moderna de 22, alertando os artistas contra o academicismo obsoleto, deu ensejo a uma série de julgamentos extremados de alguns dos mais legítimos valores do passado, e um dele fora imerecidamente Carlos Gomes.
Neste contexto, Abelardo Santos lembra pronunciamento de Oswald de Andrade (1890-1954) publicado no Correio Paulistano, apaixonado e desmedido: "Carlos Gomes é horrível. Todos nós o sentimos desde pequeninos. Mas como se trata de uma glória da família, engolimos a cantarolice toda do Guarani e do Schiavo, inexpressiva, postiça, nefanda. E quando nos falam no absorvente gênio de Campinas, temos um sorriso de alçapão, como quem diz: É verdade! Antes não tivesse escrito nada..."
O autor lembra, porém, que também Villa-Lobos, que concentrou as atenções modernistas como figura exponencial, também não ficou imune a influências estrangeiras. Ainda que desde criança tivesse sido fascinado pelos chorões cariocas, somente depois de haver percorrido alguns Estados do Brasil em busca de conhecimentos sobre o folclore é que produzira a sua primeira obra típica, os Cantos Sertanejos para pequena orquestra, onde produrou reproduzir o ambiente musical brasileiro. Fora assim apenas após duas décadas do desaparecimento do autor de Il Guarany que teriam surgirdo os primeiros trabalhos contrariando os cânones musicais da época. Como se poderia esperar, portanto, que um compositor da segunda metade do século XIX tivesse podido expressar o seu nacionalismo satisfatoriamente através de fórmulas sonoras brasileiras?
Baseando-se na História da Música no Brasil de Vasco Mariz, e retomando colocações de Lenora Menezes de Brito do ano anterior (Veja), Abelardo Santos considera o desenvolvimento histórico das escolas nacionais no século XIX, pressuposto para a consideração do nacionalismo musical, "direto ou indireto, folclórico ou depurado". Lembra, assim, que compositores russos, espanhóis, poloneses, checos, húngaros e de outras nacionalidades passaram a emprestar um colorido diferente à sua música, agregando-lhe um toque patriótico pelo aproveitamento de rítmos ou melodias populares. Essa tendência não teria sido prontamente absorvida pelos brasileiros, longamente afeiçoados às tradições artísticas européias.
Para Abelardo Santos, se na atualidade prevaleceria uma supervalorização do que provém do povo, no fim do século XIX teria existido uma subvalorização da contribuição cultural das camadas mais baixas da sociedade.
Nesse sentido, Carlos Gomes não teria desejado ou não podia ter sido um autêntico renovador, mas nem por isso seria lícito negar-lhe o espírito nacional, que ele frequentemente manifestou à sua feição e na conformidade de seu tempo, tanto na sua vida quanto na sua obra.A escolha do tema de Il Guarany, a sua primeira ópera de porte univeral, baseado em romance indiansta, colocara na década de 70 do século XIX, no Teatro Alla Scala de Milão, homens e mulheres da colonia e selvagens aimorés do limiar de uma floresta, o que já por si representara "uma boa dose de brasilidade".
Abelardo Santos tece considerações - ainda que pouco diferenciadas - a respeito de um ambiente intransigente e preconceituoso que teria predominado à época e na sociedade em que viveu e atuou Carlos Gomes na Itália e que teria condicionado a sua obra. Lembrou (injustamente) que Carlos Gomes esteve "farto de bugres" e que, muitos anos depois, ao iniciar a ópera Lo Schiavo, escolhendo como herói um negro cativo, confrontou-se com preconceitos. A idéia de colocar um negro como protagonista teria levado a um litígio com o editor e o libretista.
Como muitos outros autores, Abelardo Santos via os sentimentos patrióticos de Carlos Gomes antes evidenciados nas suas modinhas. Baseando-se em Otávio Bevilacqua, entendia que estas seriam muito mais brasileiras quanto ao caráter do que a grande maioria da produção operística de Carlos Gomes. Tomando a si a opinião de Bruno Kiefer, o autor dizia que eram nas peças curtas de Carlos Gomes que se encontravam as maiores evidências do espírito nacional.
O espírito nacional em Carlos Gomes teria tido para Abelardo Santos antes uma conotação nostálgica, uma nostalgia que marcara a sua vida particular. Um exemplo desse estado de espírito seria a sua residência em Maggianico, onde, no depoimento de sua filha, sempre permanecia içada a bandeira do Brasil, onde viveiros de pássaros e animais ornavam o parque, onde estátuas do Cacique e de Peri recebiam aqueles que entravam, e cujas paredes ostentavam adornos de índios, dando-lhe "feição museal verde-amarelista".
Por essa razão, para Abelardo Santos seria correta a visão de Mário de Andrade (1893-1945): ainda que Carlos Gomes nada tivesse de musicalmente brasileiro, êle teria o lugar de verdadeiro iniciador da música brasileira, uma vez que, na sua época, a obra popular ainda não dera a "cantiga racial". Seria ridículo considerar como brasileiros os cantos negros, portugueses e ameríndios, as modinhas, habaneras e tangos do século XIX e repudiar um gênio verdadeiro, cuja preocupação nacionalsita fora intensa.
Justamente essa colocação de Mário de Andrade recordada por Abelardo Santos foi, porém, motivo de refllexões críticas nas discussões de 1986 na Europa. Considerou-se que ela correspondia a visões elas próprias históricas, de uma determinada fase do pensamento nas suas inserções em processos político-culturais e antes representativas de posicionamentos de fundamentação ideológica de cunho nacionalista do que científicas. Traziam, assim, à consciência a necessidade de distinções entre o estudo do complexo relativo ao nacional - brasileiro e italiano - na vida e na obra de Carlos Gomes em contextos e processualidades de sua época e o de interpretações póstumas, inseridas em outros contextos político-culturais, ou seja, da questão nacional e do nacionalismo nas suas diferentes acepções.
De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo
Atenção: este texto deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Veja o índice da edição
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.)“ O Ano Carlos Gomes de 1986 no Pará:saídas e retornos
fatores étnicos e psicológico-culturais; imagens da floresta e processos civilizatórios“.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 161/13 (2016:03). http://revista.brasil-europa.eu/161/Ano_Carlos_Gomes_no-Para.html
Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Academia Brasil-Europa
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Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha
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