Carlos Gomes e a Scapigliatura lombarda

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 161

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 161/04 (2016:3)




Antonio Carlos Gomes (1836-1896) e a Scapigliatura lombarda
Descabelamento, caricatura, tolerância e liberdade

Extensões da mocidade acadêmica paulista na Itália?

50 anos de homenagem a Carlos Gomes em São Paulo (1966)

40 anos do início do programa euro-brasileiro em Milão (1976)

30 anos do Ano Carlos Gomes (1986)



 

O atentado ao jornal Charlie Hebdo em 2015, com o assassinato de membros de sua redação, trouxe à consciência geral o significado da caricatura na defesa do espírito e de modos de vida marcados por tolêrancia e liberdade, e sobretudo de valores alcançados pelo processo esclarecedor. Ao livre exercício do desenho de crítica social humorística corresponde a uma necessária abertura de espírito e humor dos caricaturados.


Essa  atualidade do debate relativo à caricatura na imprensa trouxe à lembrança, nos estudos euro-brasileiros, o significado que coube a ilustrações caricatas no século XIX, tanto na Europa como no Brasil. Entre os brasileiros que mais foram alvo de ilustrações sério-jocosas da imprensa européia encontra-se o compositor Antonio Carlos Gomes. Surgiu, assim, como oportuno considerar os aspectos de sua aparência e atitudes que levaram a essas ilustrações após 30 anos  do "Ano Carlos Gomes" de 1986.


A cabeleira de Carlos Gomes no estudo de suas relações com os scapigliati


Não há retrato, pintura, ilustração ou representação plástica do compositor Antonio Carlos Gomes que não saliente a sua grande cabeleira despenteada e revoltosa. Também na literatura encontra-se frequentemente a menção à sua "juba de leão". Essa característica de sua imagem não é sem significância, não deve ser entendida simplesmente como capricho pessoal, como expressão pouco relevante de moda de épocas passadas ou de um costume generalizado de maestros.


Ela deve ser vista como um sinal importante dos elos de Carlos Gomes com um movimento intelectual e artístico, assim como de uma atitude de vida e de visão do mundo, do homem e da sociedade que entrou na história das idéias e da cultura da Itália sob o signo explícito do descabelamento: a Scapigliatura.


As caricaturas do compositor brasileiro da época de sua chegada a Milão e de seus primeiros sucessos transmitem da melhor forma o significado da sua cabelereira despenteada e revoltosa. Representações posteriores, em particular aquelas já do seculo XX, deixam, por vezes, perceber um intuito de dar um cunho mais disciplinado à fisionomia do compositor, apresentando-o com cabelos contidos e mesmo penteados. Assim procedendo, os retratistas colocam obstáculos à percepção de um importante aspecto da personalidade de Carlos Gomes na sua inscrição em processos culturais de sua época e que deve ser considerado em aproximações musicológicas e orientação cultural à sua obra.


Entre os scapigliati contam-se vultos de renomados homens de letras, de escritores e poetas, de publicistas, redatores, críticos, libretistas, artistas e músicos, ativistas políticos e sociais, mas nenhum deles teve a sua imagem tão correspondente à designação desse movimento ou fenômeno da história sócio-cultural italiana do que Carlos Gomes com os seus voluminosos cabelos rebeldes.


ABE Teatro Municipal SP 2004. Foto A.A.Bispo Copyright
Os elos do compositor brasileiro com os scapigliati de Milão foi um dos aspectos particularmente salientados na exposição do "Ano Carlos Gomes" de 1986 realizada naquela cidade, assim como no âmbito dos trabalhos do Centro Culturale Italo-Brasiliano di Milano.


Em quadro então preparado, tratou-se da Scapigliatura como um movimento de artistas surgido em Milão após 1860 , próximos entre si pelo fato de contestarem o conformismo da socieade e da cultura oficial na cidade que crescia. Nesse ambiente marcado pelo crescimento, sentia-se a exigência por novidade mais do que pelo novo e pela renovação no sentido mais próprio dos termos.


O teórico do movimento teria sidoi o escritor e jornalista Giuseppe Rovani (1818-1874), o popular autor do romance histórico Cento Anni, escrita entre 1859 e 1865)que, como salientou-se na exposição, se destacou na crítica estética relativamente às afinidades entre as artes e artistas. A sua própria vida, movida por ideais e amargurada pelo uso excessivo da bebida e da miséria, surge como um exemplo de existência inconformista


O musicista mais "scapigliato" teria sido - ainda que não na aparência - Arrigo Boito (1842-1918) (pseudônimo Tobia Gorrio), escritor, libretista e compositor, autor de Mefistofele, no qual inseriu-se em tradição do pensamento alemão através do Faust, de W. Goethe (749-1832).


O cartaz preparado para a exposição de 1986 lembrou um aspecto importante para aproximações voltadas à compreensão do espírito que imbuia o movimento dos scapigliati: o visual. Os scapigliati teriam preferido mais a caricatura do que o retrato. Se na polêmica contestavam o espírito burguês, na vida real eram aficcionados da ópera, sendo assíduos frequentadores do Teatro alla Scala de Milão. A questão da aparência adquiria nesse ambiente formal e marcado por convenções um particular significado, sendo que sobretudo os cabelos crescidos e despenteados falavam do espírito inconformista de intelectuais e artistas que desafiavam normas.


Como as caricaturas da época e as ilustrações da figura do compositor brasileiro dão testemunho, poucos foram aqueles artistas da época mais descabelados e com a cabeleira mais arisca do que Carlos Gomes. É mais compreensível, assim, que o compositor brasileiro seja designado em quadro informativo com texto de Giacomo De Santis no parque da sua Villa Gomes em Maggianico/Lecco como vulto emblemático da Scapigliatura.


Já o fato de pertencerem a esse movimento personalidades de diferentes esferas da intelectualidade e da criação artística indica que uma aproximação adequada ao fenômeno da Scapigliatura não pode proceder exclusivamente da perspectiva de uma determinada esfera dos conhecimentos, da literatura e das artes, mas exige a consideração de um estado de espírito abrangente, de visões e percepções afins da realidade, de proximidades e simpatias quanto a modos de vida e atitudes, de sintonias que possibilitaram sinergias.


O fenômeno da Scapigliatura surge assim como objeto por excelência de estudos de processos culturais que procuram superar orientações segundo esferas e áreas categorizadas da cultura, considerando prioritariamente transpassagens, relacionamentos e interações.


Se o emblema da Villa Gomes coloca a lira no centro das idéias, aspirações e atuações dos scapigliati que a frequentavam, (Veja) o seu significado não se limita à música no sentido convencional do termo, mas sim a um processo abrangedor, a uma dinâmica no interior do homem que tinha o seu simbolismo fundamentado na linguagem visual de remotas origens, o da transformação do corpo em caixa de ressonância, de nervos em cordas do homem como instrumento do espírito.


Carlos Gomes como o mais representativo dos scapigliati, não pode ser considerado adequadamente sob uma perspectiva exclusivamente voltada à música no seu sentido mais superficial ou convencional. A sua personalidade, a sua vida e a sua obra exige uma preocupação de análise e compreensão voltada em grande abrangência aos processos culturais em que se inseriu e nos quais co-atuou.


Carlos Gomes na Musicologia de orientação segundo processos culturais


Carlos Gomes e sua obra apenas podem ser estudos apropriadamente no contexto de estudos culturais de condução musicológica ou de uma musicologia orientada segundo processos culturais.


Essa foi a aproximação que marcou a consideração de A. Carlos Gomes em cursos de Música no Encontro de Culturas nas universidades de Colonia e Bonn, na sessão de título Lírica Paulista no Teatro Municipal de São Paulo por ocasião dos 450 anos de fundação da cidade, quando a Scapigliatura foi tratada pela assistente do editor desta revista junto à Universidade de Bonn, e em sessão exclusivamente dedicada ao compositor no âmbito das preleções sobre o Clássico e o Romântico no auditório da mesma universidade, em 2005.


A integração de A. Carlos Gomes no
movimento intelectual e artístico italiano que passou a ser conhecido como o da Scapigliatura e a posição excepcional que nele alcançou não pode deixar de considerar os pressupostos culturais do ainda jovem compositor brasileiro transferido para Milão.


Já à época de sua chegada surgia A. Carlos Gomes como descabelado, tinha a cabelereira revolta como um dos traços que caracterizavam a sua personalidade e modo de ser.


Compreensívelmente, tornou-se objeto de caricaturas em jornais, tendo sido a sua própria aparência com os cabelos rebeldes um fator que chamou a atenção do público italiano ao estudante brasileiro, tendo contribuído, assim, à divulgação de seu nome e a seus sucessos.


Os seus cabelos despenteados foram vistos em correspondência a seus gestos e atitudes inconvencionais, que denotavam pouca disciplina e controle, denotadores de um espírito convulsionado por energias e aspirações que não permitiam que se submetesse a estudos tolhedores de seus ímpetos criadores, como os do contraponto e fuga.


A olhos italianos, a sua aparência e atitudes ambivalentes de retraimento e pouca distinção social surgiam como indicadoras de falta de civilidade, educação e cultivo, compreensíveis em músico vindo de país de índios, de "selvagens", o que, por outro lado, contribuia a um interesse e à simpatia pelo exótico de sua personalidade. Nesse sentido, assim como as caricaturas da época também evidenciam, imagens do índio e mesmo do aborígene na Itália de sua época relacionaram-se estreitamente com aquelas do artista descabelado. As complexas interações entre visões de povos indígenas em geral e do Brasil em particular com a Scapigliatura faz com que Carlos Gomes adquira especial relevância para aproximações musicológicas interdisciplinares, histórico-musicais e etnomusicológicas.


Pressupostos culturais do descabelamento de Carlos Gomes


As características pessoais de Carlos Gomes marcadas por ímpetos indômitos e forças revoltosas que se manifestavam na sua aparência já eram conhecidas no Brasil. Historiadores da música registraram comportamentos e atitudes do jovem compositor no Rio de Janeiro que não evitava tomar resoluções bruscas e incontidas, em atos e em palavras, como foi o caso de conflitos levados à imprensa quando da execução da ópera Joana de Flandres.


O próprio fato de Francisco Manuel da Silva (1795-1865) tê-lo confiado a Lauro Rossi (1812-1885), professor de Milão conhecido pela sua severidade na formação teórica de estudantes indica o intento educativo de disciplinação das energias do músico paulista.


Os ímpetos indômitos de sua força de vontade e a sua prontidão a atitudes rebeldes e resolutas já tinham-se manifestado nas circunstâncias de sua própria ida ao Rio de Janeiro, contrariando o pai e partindo às escondidas, ocorrência sempre lembrada na literatura.


Esse ato decisivo na sua vida foi tomado após a sua vivência no meio acadêmico de São Paulo. Foi o sucesso entre os estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e os incentivos que recebeu que deram-lhe confiança nas próprias potencialidades que o levaram à resolução de libertar-se e desafiar obstáculos no caminho ascensional.


Importantes subsídios que possibilitam aproximações a um estado de espírito reinante na juventude acadêmica de São Paulo e que se evidenciavam também na aparência de estudantes oferecem jornais então impressos e que se distinguem pelas suas caricaturas, em particular o periódico O Cabrião, surgido em 1866.


Como considerado em pormenorizado estudo de Délio Freire dos Santos em introdução à edição fac-similada do periódico, as primeiras caricaturas da imprensa de São Paulo foram registradas em o Diabo Coxo, folha voltada não só à caricatura, mas "ao gracejo digno e comedido", como mencionado em anúncio do Correio Paulistano de 1864.


Principal desenhista e ilustrador lembrado foi, no Rio de Janeiro, o artista alemão Henrique Fleiuss (1823-1882) com a sua Semana Ilustrada, tendo como colaboradores, entre outros, o artista italiano Ângelo Agostini, o fundador de A Vida Fluminense, jornal de caricatura e crítica.


Em São Paulo, Ângelo Agostini destacou-se através de suas caricaturas em O Cabrião, um termo que chegou a dar origem à palavra cabrionar, associado com espírito crítico-jocoso, satírico, caçoador, detrator dos ridículos e grotescos do tempo. No estudo mencionado, procura-se explicar os sentidos do termo e suas origens, realçou-se o uso de personificação do termo Cabrion ou Cabrião, no caso, o próprio Angelo Agostini.  (Délio Freire dos Santos, "Primórdios da Imprensa Caricata Paulistan: O Cabrião", Cabrião: Semanário humorístico editado por Angelo Agostini, Américo de Campos e Antônio Manoel dos Reis 1866-1867, edição fac-similar, São Paulo: Convênio IMESP/DAESP, 1842, 9ss.)



Esse significado da caricatura tanto no ambiente acadêmico de São Paulo vivenciado por Carlos Gomes como em Milão, e que correspondia a uma atitude dos próprios caricaturados em ver o seu tratamento caricato com riso tolerante, adquirem uma dimensão política, como claramente expresso pelo autor do estudo sobre o Cabrião:


"A tolerância de D. Pedro II, assim como seu liberalismo e democracia, atingiam o extremo.

No Império havia ilimitada liberdade de manifestação do pensamento pela imprensa periódica ou em livros e panfletos; liberade de caricatura; liberade de reuniões e de comícios nas praças públicas, de préstitos carnavalescos pelas ruas (quando saiam, muitas vezes, carros de crítica com figuras caricatas do Imperador, e a polícia tinha ordem de não os proibir); liberdade de doutrinas políticas e sociais e de propaganda das mesmas.

E tudo isso, principalmente, por anuência do soberano, que não permitia restrições ao pleno uso dos direitos dos cidadãos, nem mesmo quando êle próprio, apesar de ser a sua pessoa declarada, pela Constituição - 'inviolável e sagrada' (Art. 99), era alvo de ataques por quaisquer dos aludidos meios." (op.cit. pág. 15)


De ciclo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo



Atenção: este texto deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Veja o índice da edição



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“ Antonio Carlos Gomes (1836-1896) e a Scapigliatura lombarda. Descabelamento, caricatura, tolerância e liberdade. Extensões da mocidade acadêmica paulista na Itália? “
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 161/04 (2016:03). http://revista.brasil-europa.eu/161/Carlos_Gomes_e_Scapigliatura.html


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