Viva o Brasile, Italia! Viva Trieste e Trento

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 162

Correspondência Euro-Brasileira©

 

N° 162/2 (2016:4)




Viva o Brasile, Italia!

Viva Trieste e Trento Che ghiamm'a liberá!


O irredentismo italiano no Brasil
no exemplo da Canzonetta "A Partenza dé Riserviste dó Brasile"
de Savino de Benedictis (1883-1971)




Estudos euro-brasileiros em Trento, 2016

 

Com uma estadia de estudos em Trento e sua região, em maio de 2016, deu-se continuidade aos trabalhos euro-brasileiros promovidos em diferentes contextos europeus por motivo da passagem dos cem anos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). (Veja)


Monumento a Dante, Trento. Foto A. A. Bispo 2016. Copyright
A primeira Guerra representou uma cesura na história do Ocidente, o fim da antiga ordem européia, a culminação de tensões que tinham marcado as décadas anteriores e determinou desenvolvimentos das décadas seguintes, condicionando processos que culminaram com a Segunda Guerra Mundial.


Com as suas profundas consequências para as ciências, a cultura e as artes, para as instituições e correntes de pensamento, a Primeira Guerra Mundial não pode deixar de ser considerada com particular atenção nos estudos de processos culturais em relações internacionais.


Nela também o Brasil participou, como única nação latino-americana, ao lado da Entente contra as potências centro-européias, encontrando-se por fim do lado dos vitoriosos. Essa vitória foi também de profundas consequências para a vida intelectual, científica, cultural e artística do Brasil, intensificando determinadas referenciações internacionais e condicionando desenvolvimentos de entre-guerras que marcaram por décadas - em parte até o presente - posições, perspectivas históricas, prospecções e visões.


O conflito europeu teve repercussões particularmente graves em regiões e cidades com grande parcela populacional de imigrantes europeus. Colonos imigrados e seus descendentes de diferentes origens e que até então tinham convivido e atuado de forma pacífica, também e sobretudo na área cultural e artística, viram-se em posições antagônicas.


Em cidades e regiões com forte presença de imigrantes de língua e cultura alemãs, ocorreram atos de animosidade e de violência contra jornais, sociedades culturais, de música, de esportes e de cultivo de tradições. É compreensível, assim, que as repercussões e as consequências da Guerra tenham sido até hoje consideradas no âmbito dos estudos euro-brasileiros sobretudo sob a perspectiva da história da imigração de língua e cultura alemã no Brasil. (Veja)


Atualidade sob o signo de tendências nacionais e nacionalistas do presente


O atual recrudescimento de tendências nacionais, nacionalistas e identitárias na Europa traz à consciência a necessidade de dar-se maior atenção aos movimentos nacionais que desempenharam fundamental papel nas tensões internas do império "de muitos povos" da Áustria-Hungria, na deflagração da guerra e na reordenação nacional européia que a ela se seguiu.


Sob a perspectiva do Brasil, devido aos estreitos elos culturais com a Itália e a grande população italiana da imigração, mais do que movimentos nacionais internos ao Império Áustro-Húngaro, assume maior significado o ímpeto de cunho nacional provindo de fora, em particular aquele que se processou nas regiões fronteiriças das montanhas do Friaul, Tirol o Sul, do Trentino e da região do porto adriático de Trieste.


O processo de unificação italiana tinha sido há décadas marcado pelo intuito de recuperação de cidades e regiões que se encontravam sob a égide austríaca. Esses intentos, que sob a perspectiva italiana representavam uma luta de libertação do jugo estrangeiro, já tinham integrado no território nacional do Reino da Itália regiões do norte da península, da Lombardia e de Vêneto, compreendiam-se porém como ainda incompletos, uma vez que ainda permaneciam cidades e regiões com forte parcela populacional de língua e cultura italianas sob a Áustria.


Sobretudo em Trieste havia uma maioria populacional de língua e identidade italiana, ali havendo um movimento acentuado a favor de uma integração na Itália. Na perspectiva nacional italiana, esses habitantes ainda não tinham sido libertados do jugo estrangeiro, não tinham sido "redentos", ou seja, eram ainda irredentos.


O intento de libertação de nacionais pelo sangue, língua e cultura como "redenção"


O conceito de "redenção", tão marcado pelo seu uso religioso, dava ao movimento o sentido de libertação de uma escravidão, de uma liberdade que representaria a superação de todos os males. As relações entre o conceito da redenção e aquele da libertação de escravatura no sentido extenso do termo merecem particular atenção em estudos relacionados com o Brasil.


Elas podem até mesmo oferecer novas perspectivas para a análise cultural de desenvolvimentos precedentes e de uma obra como Lo Schiavo de Antonio Carlos Gomes (1836-1896). Considerando-se os anelos italianos, toma-se consciência que esta obra não só deve ser analisada culturalmente sob a perspectiva do movimento de abolição da escravidão no Brasil, mas sim também à luz de tendências e ideais italianos de libertação daqueles que, pela língua, origem e cultura eram vistos como que "em escravidão" sob o jugo estrangeiro.


No caso da Itália, tratava-se de uma questão também espacial ou de unidade territorial geo-cultural, ou seja, o de integrar em área definida geográficamente do reino nacional aqueles que, sendo co-nacionais pelo sangue, língua e cultura, encontravam-se sob o domínio estrangeiro. Isso implicava em combatê-lo e expulsá-lo para fora dos limites do território a ser "redento" e/ou italianizá-los.


Na região do Trentino, a situação era mais complexa do que em Trieste, uma vez que ali havia uma importante parcela populacional de língua, cultura e identidade alemã-austríaca e que procurava defendê-las salientando antigos fatos e direitos históricos.


Monumento a Dante, Trento. Foto A. A. Bispo 2016. Copyright
Também ali, porém, havia um ativo movimento "Pro Pátria" de italianos, o que levava a uma situação de tensões. Esta teve a sua expressão na linguagem simbólica de monumentos levantados em fins do século XIX: se em Bozen/Bolzano levantou-se um monumento ao mestre-cantor Walter von der Vogelweide, o principal representante da lírica língua alemã da Idade Média, em Trento erigiu-se um monumento a Dante.


Essa situação de tensões e crescente diferenciação cultural atingiu o seu ponto crítico com a Guerra, fazendo com que essa região fronteiriça se tornasse palco das mais violentas batalhas.


Na situação populacional, étnica e cultural do Trentino, não se tratava apenas de "redenção" ou libertação do jugo estrangeiro, mas sim sobretudo de italianização.


Em encontro euro-brasileiro levado a efeito em 2014 em Villach, na Caríntina, considerou-se, sob diversos aspectos com históricos da sociedade de estudos de Klagenfurt, a vinda para a Áustria de populações de língua alemã expulsas do Adriático e do norte da Itália com o desfecho da Guerra. Nesse encontro, salientou-se a necessidade de consideração desse desenvolvimento marcado por tantas tragédias humanas a partir da perspectiva italiana.


A entrada da Itália na Guerra ao lado da Entente contra as potências centro-européias


Ao iniciar a guerra, em 1914, a Itália encontrava-se em aliança trina com a Áustria-Hungria e o Império Alemão. Negou-se, porém, a entrar na guerra sob o argumento de que o pacto era exclusivamente de defesa.


A entrada da Itália na Guerra do lado da Entente no dia 23 de maio de 1915, apesar de tratados existentes, o que surgia aos olhos da Áustria como ato indigno, tem como uma de suas explicações o interesse da Itália nos territórios com parcelas populacionais italianas até então sob a égide do império dos Habsburgs.


Passando para o lado dos inimigos do império áustro-húngaro, a Itália esperava alcançar uma há muito desejada integração no território nacional de áreas do Trentino no Norte e de Triste, no Nordeste do país.


Se no porto de Trieste havia uma maioria populacional de língua e cultura italianas, assim como um movimento acentuado a favor de uma integração na Itália, no Trentino havia uma importante parcela populacional de língua, cultura e identidade alemã-austríaca, ainda que já ali houvesse há muito um movimento de italianização da região. Também no Friaul e no Tirol do Sul viviam minorias italianas em diferentes contingentes. A Áustria argumentava que também em outros países, sobretudo na ça e na Suíça, viviam populações italianas.


Na perspectiva italiana, tratava-se assim, de recuperação ou de libertação de territórios que estariam subjugados sob potência estrangeira, "irredentos". Preparados por décadas de anelos de libertação da Áustria no decorrer do processo unificador da Itália, tanto na Itália como na colonia italiana no Brasil acentuou-se cada vez mais a propaganda daqueles que desejavam a intervenção italiana na Guerra ao lado da Inglaterra e da França.


A propaganda cultural intervencionista na preparação dos italianos à Guerra


Essa propaganda atingiu o seu objetivo com a entrada da Itália na Guerra em 23  de maio de 1915. Com a declaração de guerra italiana, a Alemanha enviou ao Tirol do Sul um "Corpo Alemão dos Alpes" (Deutsches Alpenkorps) para apoiar a Áustria-Hungria na defesa de suas fronteiras.


A partir de agosto de 1916, a Alemanha encontrava-se já formalmente em situação de guerra com a Itália. No dias 23 de junho, a Itália conduz a primeira batalha de Isonzo sob o comando de Luigi Cadorna (1850-1928), com o objetivo de conquistar o Trieste e entrar na Hungria, dando início, assim, à "guerra da montanha". Entretanto, também na segunda e na terceira batalha de Isonzo, a Italia não conseguiu passar a linha áustro-húngara; com grande perda de vidas, desenrolaram-se oito batalhas de Isonzo nos anos seguintes de 1916 e 1917.


Para a motivação do povo italiano para a guerra - em particular no sul do país - a propaganda exerceu um papel relevante e, com ela, a ação de artistas e intelectuais.


Na criação de um estado de espírito anti-austríaco e de fomento de ideais de libertação de compatriotas que estariam em "escravidão" sob o jugo estrangeiro, colaboraram escritores e artistas, entre êles Gabriele d'Annunzio (1863-1938), intelectual de grande influência em meios artísticos, em particular musicais.


A propaganda precisava preparar os ânimos para a guerra, sobretudo no sul da Itália. Aqui, mais distnte da região contestada, via no problema antes uma questão entre Roma e o Norte. Para a influênciação de mentes e espíritos de camadas mais simples a população, a canção popular desempenhou um papel significativo, uma vez que contribuia à intensificação de sentimentos de amor à terra, à família e à comunidade nacional.


Memória da participação de italianos do Brasil na Guerra: Savino de Benedictis


A consideração da participação do Brasil na Primeira Guerra Mundial tem-se concentrado, em geral, à participação oficial brasileira após a entrada do país na Guerra. Sob o ponto de vista dos estudos culturais, porém, merece particular atenção a participação de imigrantes que, tendo a nacionalidade dos países envolvidos, foram alvo de mobilizações, devendo partir para a Europa.  


A consciência do significado da participação de italianos residentes no Brasil na Guerra foi despertada já nos anos de 1960, determinando os estudos que, posteriormente, tiveram continuidade no programa euro-brasileiro iniciado na Europa.


As recordações da Guerra mantiveram-se vivas na memória de professores de música italianos ou formados com italianos no Brasil. Essas lembranças puderam ser registradas em personalidades como Palmyra Ribeiro, aluna de Agostino Cantù (1878-1943), assim como Fausta Sermarini e João Sepe (1889-1961), este aluno tanto de Cantù e como de Savino de Benedictis. Ambos possuiam estreitos elos com a vida musical do norte da Itália, com Milão e Turim.


Savino de Benedictis, embora nascido em Bari, estudara no Conservatório de Turim com Gaetano Foschini (1836-1908), tendo obtido sucessos em Milão pela passagem do século. Transferindo-se para São Paulo, passou a fazer parte do corpo docente do Conservatório Dramático e Musical e São Paulo, distinguindo-se como professor de matérias teóricas e composição, além de dar aulas de música em colégios. Tornou-se personalidade de liderança no meio italiano de São Paulo, em particular através de sua atuação no Centro Musical de São Paulo.


Em encontro realizado com Fausta Sermarine e João Sepe no antigo Conservatório Musical Osvaldo Cruz, poucos meses antes da morte deste último, em agosto de 1961, lembrou-se da participação de italianos residentes no Brasil nas guerras, em particular na Primeira Guerra Mundial, assim como das consequências da Segunda Guerra para as instituições estrangeiras no Brasil. Entre elas, encontrava-se sobretudo a Società Beneficiente Benedetto Marcello, em cuja direção atuara Savino de Benedictis e que teve o seu nome modificado para Conservatório Musical Carlos Gomes. Foi a seguir no âmbito deste último conservatório que as reflexões tornaram-se mais aprofundadas, levando, no ano da homenagem a Carlos Gomes de 1966, à definição mais clara de problemas e de caminhos para uma revisão e reorientação de perspectivas de desenvolvimentos culturais. (Veja)


A personalidade de Savino de Benedictis esteve sempre presente no movimento iniciado naqueles anos, uma vez que também era professor em várias instituições de ensino. Também vários músicos e compositores que com êle se formaram estiveram próximos da sociedade dedicada a estudos de processos culturais então fundada (Nova Difusão), salientando-se José Geraldo de Souza, pesquisador e compositor que se manteve vinculado por décadas ao movimento, participando ativamente na organização de eventos na Europa e no Brasil. (Veja)


A partida de reservistas italianos de São Paulo em 1915 sob o signo da euforia


Em 1915, com a mobilização italiana, deu-se a partida de reservistas italianos que se encontravam no Brasil. Em São Paulo, grande número de jovens de nacionalidade italiana partiram para a Guerra a bordo da nave Princesa Mafalda e, a seguir, da nave Regina Helena.


A partida dos reservistas italianos foi de grande repercussão pública, não só na comunidade italiana. Os jovens que partiam foram acompanhados por grande multidão tanto nas suas partidas da Estação da Luz de São Paulo como em momentos de embarcação no porto de Santos.


Assim como na entrada dos alemães na Guerrra, também a dos italianos deu-se em atmosfera de entusiasmo idealístico e de euforia patriótica em exacerbação nacional. Esses momentos de partida ficaram assim na memória ítalo-brasileira como pontos altos de manifestação de sentimentos nacionais e de lealdade para com a Pátria. Diferentemente da situação européia, marcada mais de perto pelas atrocidades e perdas de vida, esse espírito imbuído de anelos nacionais pode-se manter à distância de forma menos manchada por amarguras e mais idealizada no Brasil.


O irredentismo na Canzonetta "A Partenza dé Riserviste dó Brasile"


O mais significativo exemplo do irredentismo em imigrantes italianos no Brasil é a Canzonetta "A Partenza dé Riserviste dó Brasile" de Savino de Benedictis (São Paulo, A. di Franco, 485).



Ainda que designada como cançoneta, trata-se de uma peça de cunho marcial, simples e ingênua, adequada ao canto de jovens, transpirando otimismo e mesmo euforia. Publicou-se uma versão para canto e piano que revela ter sido realizada a partir de uma versão instrumental para banda.


O texto, de Giuseppe Ruffa, revela um autor que, ativo na colonia italiana em São Paulo utiliza-se de um italiano com forte acento dialetal e influência do português. Foi colaborador do periódico Il Pasquine Coloniale, publicação que dá testemunho da tradição caricaturística italiana no meio da imigração italiana em São Paulo. Dirigia-se, com esse texto em linguagem coloquial popular, escrita segundo modos de falar aos jovens imigrantes que, na sua maioria, possuiam pouca formação escolar e já falavam uma mistura de italiano e português, em particular aqueles provenientes do sul da Itália. Neste sentido, explica-se o cunho popular do texto nas suas referências à vida familiar do quotidiano.


No texto, o autor canta a despedida do reservista que parte do Brasil pelo chamado da pátria e do seu povo, uma vez que era o próprio sangue italiano que estava sendo derramado e que também corria nas veias dos italianos no Brasil. Já essa afirmação inicial indica a concepção dirigida aos elos de sangue que fundamentava os anelos nacionais e justificava a ação de libertação de compatriotas. A pátria, no caso, ainda não era a brasileira, mas a Itália.



Na estrofe, Giuseppe Ruffa faz com que os reservistas cantem que era a Itália que dava vivas ao Brasil, o país em que viviam tantos de seus súditos que eram agora eram chamados. Estes, por sua vez, davam viva ao Trieste e Trento, para cuja libertação partiam.


Viva o Brasile, Italia! Che a annuie mann'á chiammá; Viva Trieste e Trento Che ghiamm'a liberá!



A libertação da "escravidão", a redenção sob o signo da Marselhesa e a juventude


Essa menção à libertação dos territórios ainda então sob a égide da Áustria é acentuada no verso que se segue. A idéia condutora é o da liberdade e o da libertação. Passando a lutar ao lado da Entente, e assim da França, lembrava-se indiretamente os ideais da Revolução Francesa, mencionando-se tanto o Inno italiano, a Marcia Reale, como a Marselhesa. Essa menção era também significativa pelo fato de ser a partida dos reservistas em Santos apoiada pelo consulado da França nesta cidade.


Na estrofe, os reservistas dão vivas à Itália e ao Rei, e gritam um "abaixo" à Áustria que manteria os italianos em escravidão. O viva a Trento e Trieste é acompanhado por um viva à juventude. O hino posto em música por Savino de Benedictis celebrava assim já à época a Giovenezza, a juventude italiana na imigração, um conceito que seria posteriormente tão decantado na música do Partido Fascista Italiano e que tambem se propagou no Brasil.


No terceiro verso, os que partem sabem que vão enfrentar a morte, mas o fazem sabendo ser glorioso morrer pela liberdade. Despedem-se, assim, do Brasil, onde levam recordações da juventude, partindo para a guerra..


O texto exprime assim a disposição da morte heróica pelo ideal da liberdade, ou seja da "redenção" de co-nacionais, em espírito de entusiasmo idealístico que fora resultado da propaganda intervencionista entre os italianos no Brasil e do qual a composição de Savino de Benedictis é principal exemplo.



Cançonetas a serviço da intensificação de sentimentos pátrios de italianos

O texto exprime assim a disposição da morte heróica pelo ideal da liberdade, ou seja da "reden

A Canzonetta "A Partenza dé Riserviste dó Brasile" foi publicada em edições do estabelecimento musical A. di Franco que traziam o retrado do cantor e artista napolitano Gennaro Pasquariello (1869-1958), um dos intérpretes mais celebrados da canção napolitana na Itália e no Brasil.


Tendo formado uma companhia em 1898, e após realizar viagens por diversos países, fixou-se em 1902 em Milão, época em que Savino de Benedictis ali estudara e atuara.


Pasquariello gozava de popularidade nos meios da imigração italiana em São Paulo pelas suas qualidades vocais e pelas suas canções, e estas serviam à propaganda nacional e intervencionista, uma vez que alimentavam sentimentos de nostalgia pela terra natal e de comunidade unida por laços de sangue, de língua e de cultura.


A Itália vitoriosa e posse de Trento no Brasil


A vitória italiana e da posse de Trento foi divulgada por jornais e revistas no Brasil, salientando-se, entre outras, materia publicada na revista Eu sei tudo, em 1919 ("A Italia victoriosa: A posse de Trento", Eu sei tudo, 22 de março de 1919, 113).


Terminada e vencida a guerra, o artigo lembrava a força de um grande ideal na felicidade humana. Era essa a felicidade que a Itália iria encontrar como recompensa à energia, à certeza nos seus intentos e a persistência com que procurara realizar os seus ideais nacionais de libertação de suas populações até então sob a égide da Áustria.


"Ter um grande ideal e vel-o realisado é -dizem os philosophos - a mais completa felicidade que pode caber aos humanos. Foi essa a parte que o Destino reservou ao povo italiano, como justa recompensa de sua pertinacia, de sua fé inextinguivel, da lucidez de seus estadistas, do heroísmo de seus soldados e da dedicação de seu rei."


O texto refere-se explicitamente a Trieste e Trento como sento terras prometidas, cidades que tinham conservado os elos com a pátria mãe, e que, vivendo longo tempo sob o jugo austro-húngaro, tinham constituído para todos os italianos de coração motivos de mágoa e de anelos de sua restituição à comunhão nacional.


"Trento e Trieste, as terras promettidas, as cidades sagradas pelo sangue de tantos bravos, pela palavra de tantos poetas; as cidades que arrancadas á patria mater conservaram intangivel e fiel o amor filial, essas cidades de gloria e legenda, que durante tantos annos viveram sob o dominio do inimigo e constituiram para todo italiano de coração a magua secreta e o sonho magnifico, estão de novo restituidas á communhão nacional."


O artigo ganha especial interesse documental pelas fotografias de Trento que contém e que apresentam a cidade logo após a sua ocupação pelos italianos.


Os horrores das batalhas e da perda de tantas vidas humanas não são mencionados, mas podem ser vistos nas fotografias da estrada Salic-Pordenone após a retirada dos austríacos.


Que a população italiana recebera bem os vencedores, disso dava testemunho uma fotografia de camponês trentino servindo de guia às guardas avançadas italianas.


De interesse histórico-militar são as fotografias da chegada dos plenipotenciários italianos à Villa del Giusti em Padova, assim como a de Vittorio Italico Zuppelli (1859-1945) à praça principal de Trento.


A mais significativa das fotos é aquela que mostram os voluntários italianos reunidos junto ao monumento de Dante.


O estado de espírito italiano no Centenário da Independência do Brasil em 1922


O ideal de libertação de compatriotas que se encontravam sob jugo estrangeiro do movimento nacional italiano e da propaganda intervencionista que desempenhou papel tão significativo na colonia italiana de São Paulo antes e durante a Guerra, teve dimensões mais amplas que se fizeram sentir após a vitória no Brasil.


De forma complexa devido à ambivalência de sentimentos identitários na situação da imigração, ideais generalizados e abstraídos de cunho nacional, de intensificação emocional de elos de terra e sangue, de libertação de jugo estrangeiro, passaram tambem a ser aplicados ao Brasil.


Significativo foi o fato de que o mesmo compositor de "A Partenza dé Riserviste dó Brasile" ter composto a principal obra criada para as comemorações do centenário da Independência do Brasil, em 1922: o poema sinfônico Centenário da Independencia do Brasil. Sendo vencedor de concurso governamental, essa obra solenizou musicalmente a inauguração do Monumento do Ipiranga, no 7 de setembro de 1922.


Savino de Benedictis, tratando musicalmente o fato histórico da independência de Brasil, não podia tê-lo feito a não ser no espírito de celebração da liberdade e da libertação marcado pela perspectiva nacional italiana, ou seja, no sentido de uma "redenção".


Assim, por complexos caminhos, o espírito irrendentista italiano marcou a interpretação histórica da independência do Brasil no poema sinfônico, transferindo geograficamente um contexto italiano ao passado brasileiro e projetando de forma anacrônica uma situação que culminou com a Primeira Guerra ao remoto passado de 1822 no Brasil. Nesse complexo de visões e sentimentos, o Brasil toma o lugar do Trentino e de Trieste, Portugal aquele da Áustria-Húngria.


Essa problemática foi alvo de reflexões em encontros euro-brasileiros realizados junto ao Monumento do Ipiranga por ocasião do encerramento do triênio pelos 500 anos do Brasil, em 2002, assim como durante o colóquio internacional de estudos interculturais pelos 450 anos de São Paulo, em 2004.


De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Atenção: este texto deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Veja o índice da edição

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.). “O irredentismo italiano no Brasil no exemplo da Canzonetta 'A Partenza dé Riserviste dó Brasile' de Savino de Benedictis (1883-1971) “
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 162/2 (2016:04). http://revista.brasil-europa.eu/162/Italianos_do_Brasil_na_Guerra.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
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Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Trento, 2016
No texto: Trento, Bolzano 2016 e S. Paulo 2002
Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

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