São Paulo melodramático

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 162

Correspondência Euro-Brasileira©

 

N° 162/3 (2016:4)




São Paulo melodramático:

a retórica encenatória do monumento a Carlos Gomes (1836-1896)

de Luigi Brizzolara (1868-1937)

nas suas inscrições em processos político-culturais ítalo-brasileiros

 
Monumento a Carlos Gomes. Foto A. A. Bispo 2016. Copyright

Não há cidade do mundo que seja na sua fisionomia urbana mais marcada pela ópera do que São Paulo. Mesmo que teatros de ópera de renome constituam principais referências arquitetônico-culturais de várias cidades - como Nápoles ou Milão - mesmo que monumentos a compositores com personagens de suas óperas determinem e emprestem sentidos a praças e seus arredores, como o de V. Bellini (1801-1835) com I Puritani e Norma em Catania, não se conhece exemplo  que possa ser comparado com São Paulo.


Monumento a Carlos Gomes. Foto A. A. Bispo 2006. Copyright
Em extraordinária encenação que abrange as encostas do vale do Anhangabaú, o Teatro Municipal, em situação nobre na sua elevação em esplanada, integra-se na configuração paisagística de vale através de complexo escultórico de amplas dimensões dedicado ao principal compositor de óperas do Brasil, Antonio Carlos Gomes (1836-1896).


Um cotejo com o monumento a Bellini em Catanea


Uma comparação com o monumento a Bellini em Catanea aguça a percepção para a leitura da monumental obra que relaciona plástica, paisagismo, arquitetura, teatro, música e poesia.


Catanea. Foto A.A.Bispo 2013. Copyright

Catanea. Foto A. A. Bispo 2013. Copyright
Se em ambos os casos o compositor é representado em assento que se eleva no alto de um pedestal, na cidade siciliana os personagens das óperas do compositor, apesar de toda a dinâmica de gestos e movimentos, se aderem ao corpo do monumento, constituindo um todo escultórico, por assim dizer obra fechada, apesar de seus apelos eloquentes ao envolvimento daqueles que o contemplam.


No caso do monumento a Carlos Gomes, os personagens das suas óperas se distribuem pelo espaço, integram a natureza no monumento, permitem que o espectador entre êles caminhe. Plástica e cenografia se interrelacionam; teatro, música e poesia agem no espaço externo e este se teatraliza, musicaliza-se e adquire sentidos poéticos; cultura e natureza interagem em relações de múltiplos sentidos.


Catanea. Foto A. A. Bispo 2013. Copyright
Assim como no monumento a Bellini em Catania trechos de partituras no corpo do monumento procuram despertar naquele que contempla lembrança da melodias, também no monumento a Carlos Gomes são aqueles que sentem soar no íntimo a música de obras representadas pelos personagens os que mais estão aptos a sentir e participar de um processo metamorfoseador da realidade a que serve o monumento.


Todo o conjunto monumental surge assim como interpretável a partir do símbolo da lira na sua carga simbólica e de sentidos de antiga proveniência. (Veja) Neste sentido, o Vale do Anhangabaú é transformado em imensa caixa de ressonância.


Desenvolvimento dos estudos do complexo monumental a Carlos Gomes


Devido a essas relações entre as diferentes artes - arquitetura, música, escultura - na concepção poético-melodramática dessa parte do centro de São Paulo, foi o complexo monumental dedicado a Carlos Gomes objeto de visitas de estudos e de reflexões no âmbito de cursos de História da Arquitetura no Brasil da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo em fins da década de 60.  Em 1973 e 1974, voltou a ser alvo de aulas in loco no âmbito do curso "Música e Evolução Urbana de São Paulo" dos cursos de Licenciatura em Educação Musical e Artística do Instituto Musical de São Paulo.


Anhangabau. Foto A.A.Bispo 1981. Copyright
Com o início do programa euro-brasileiro na Europa, em 1974, os eventos que trouxeram universitários e representantes de diversas áreas de conhecimentos a São Paulo incluiram uma visita guiada ao monumento de Carlos Gomes, considerando-o sob a perspectiva temática dos respectivos encontros.


Um dos mais significativos desses eventos foi o colóquio internacional de estudos interculturais organizado pelo ISMPS e pelas universidades de Bonn e Colonia, com a participação da Universidade de Coimbra, pelos 450 anos de São Paulo, em 2004.


Academia Brasil-Europa. Foto A.A.Bispo 2002. Copyright
Precedido por sessão solene no Teatro Municipal dedicado ao tema "Lírica da Metrópole", a visita ao monumento a Carlos Gomes foi ponto de partida de uma análise da configuração urbana do centro da cidade sob o prisma de concepções melodramáticas que sugere.


As reflexões então encetadas tiveram continuidade em seminários dedicados às relações entre Música, Arquitetura e Urbanismo levados a efeito em universidades alemãs. Entre êles, destacou-se o
Coloquio ABE 2004. Foto H. Huelskath. Copyright
seminário "Imigração e Estética", levado a efeito na Academia Brasil-Europa em cooperação com o Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia, em 2006.


Transcorridos dez anos deste seminário, pareceu oportuno voltar a considerar in loco o conjunto monumental que marca melodramaticamente a capital paulista, agora à luz do recrudescimento do nacional, do nacionalismo e do identitarismo que se observa na Europa.


Teatro Municipal SP. Foto A.A.Bispo 2004. Copyright
Complexo plástico monumental a Carlos Gomes e seus precedentes


O complexo escultórico ao lado do Teatro Municipal representa a realização em máxima compleição de um desideratum já de anos de levantar-se uma estátua em homenagem a Carlos Gomes.


Desde a sua morte, sentia-se a necessidade de corrigir-se uma deficiência quanto ao reconhecimento do grande compositor paulista, uma vez que segundo êle apenas se designara uma pequena rua sem maior significado na capital do Estado.


A extraordinária intensificação do papel desempenhado por italianos na vida musical de São Paulo, em particular no âmbito do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, (Veja) deu novos impulsos a esses intentos anteriores à Primeira Guerra Mundial. Sobretudo o professor de piano Luigi Chiafarelli (1856-1923), nascido em Isernia e portador de sólida formação obtida na Itália e na Alemanha, que desde 1883 desenvolvia uma intensa atividade de ensino em São Paulo, empenhou-se particularmente pelo projeto de uma homenagem ao compositor tão renomado na Itália, sendo nisso incentivado e apoiado por um brasileiro de Campinas, o publicista Gelásio Pimenta.


Ítalo-brasilianismo na música e jornalismo da terra natal do compositor surgiram assim como os principais motores do projeto nos anos que antecederam à Guerra. Esta e o seu desfecho favorável à Itália e ao Brasil, modificando profundamente o contexto político-cultural, explicam as dimensões de sentidos que tomaram os planos.


A aproximação do Centenário da Independência do Brasil, em 1922, justificou a monumentalização do projeto, colocando a idealizada estátua a Carlos Gomes a serviço de uma glorificação da emancipação do país.


Essa nova referenciação de sentidos significou não só uma modificação dos planos iniciais, mas sim também uma reinterpretação idealizadora do compositor, que agora surgia como um ícone. Celebrado, passava a ser agora veículo da celebração do país na sua independência e São Paulo, local onde esta fora proclamada.


Criou-se, assim, uma complexa relação de sentidos de acontecimentos e personalidades de diferentes épocas. Para a realização de um grandioso projeto, criou-se uma comissão executiva para angariar os necessários fundos, da qual participaram empresários de posses da comunidade italiana de São Paulo, entre êles Francisco Matarazzo (1854-1937) e Alessandro Siciliano (1860-1923). A colonia italiana esteve assim em condições de contribuir com a metade dos meios necessários para cobrir os custos da obra, sendo a outra metade coberta pelo Estado e pelo Município.


Em 1920, contratou-se o artista plástico Luigi Brizzollara para a construção do monumento e a firma Camiani e Guastini em Bronzo, Pistóia, para a sua fundição. Escolheu-se para a sua construção a esplanada do Teatro Municipal, nos altos das encostas que desciam ao Vale do Anhangabaú. O projeto, aprovado pela Lei Municipal 2516 de 7 de agosto de 1922, tendo a Prefeitura autorizado orçamento de Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928) para a preparação do terreno. 


Intensificando ainda mais a complexidade da interação de múltiplos sentidos do projeto e da data, o monumento foi inaugurado no dia 12 de outubro de 1922. Não o foi, assim, nem na data de nascimento do compositor - o 11 de julho - nem o da Independência do Brasil - o 7 de setembro - mas sim o dia do Descobrimento da América, o dia de Cristóvão Colombo (1451-1506).


Com isso, a colonia italiana comemorava o feito do genovês, cujos 400 anos tinham sido comemorados há algumas décaas atrás. Não só Carlos Gomes tinha escrito o Colombo, como Colombo era designação do principal teatro da colonia italiana em São Paulo, o Teatro Colombo, no bairro do Brás. A Independência do Brasil, cujo centenário se celebrava, surgia apenas como uma data em amplo processo histórico, em cujo início os italianos viam no feito do Descobrimento da América por Colombo.


Luigi Brizzolara e a plástica monumental em cidades da América do Sul


Luigi Brizzolara foi um dos mais prestigiados artistas da Itália e das comunidades italianas da América Latina. Considerá-lo com maior atenção é de relevância na história da arquitetura e do urbanismo nas suas relações com processos político-culturais, pois monumentos projetados e em parte realizados de Brizzolara, de características expressivamente encenatórias, marcaram espaços públicos de cidades como Buenos Aires e São Paulo.


A apreciação adequada de suas plásticas celebrativas exige a consideração do contexto paisagístico em que se inscreveram, e, no caso do monumento ao lado do Teatro Municipal de São Paulo, todo o cenário constituído pela arquitetura circundante e pelo tratamento paisagístico do jardim, marcado com representações plásticas de personagens de óperas de Carlos Gomes. Levantando-se, do outro lado do vale, aos fundos, a estátua de G. Verdi, emprestava-se a Carlos Gomes uma importância ainda maior na representação melodramática do espaço urbano.


Brizzolara, nascido em Chiavari, Ligúria, província de Gênova, foi, pela sua formação com Giovanni Scanzi (1840-1915) na Accademia Ligustica di Belle Arti, e atuação, estreitamente ligado a esta cidade-porto. Gênova, por sua vez, era marcada pela história das navegações e dos Descobrimentos através de Colombo.


Significativamente, foi na Mostra colombiana realizada em Gênova por motivo dos 400 anos do Descobrimento da América que Brizzolara alcançou renome com uma obra premiada com medalha de prata.


Assim como o seu professor Scanzi, distinguiu-se por obras mortuárias para túmulos monumentais em cemitérios, o que também se daria em São Paulo. Paralelamente, dedicou-se a escultura de santos e à representação plástica de personalidades; para além de bustos, criou o monumento a Vittorio Emanuelle II (1820-1878) em Chiavari.


Marco da presença da arte de Brizzolara na América do Sul foi o fato de ter participado, com o arquiteto G. Morelli, em concurso para a edificação de um monumento em Buenos Aires por ocasião das comemorações do centenário da independência da Argentina, em 1910. O projeto, vencedor, foi marcado pelo ímpeto grandiloquente e encenatório de sua linguagem estética conduzida por programa altamente elaborado de concepções e associações, incluindo espaços para um Museu da Independência.


A vinda de Brizzolara a São Paulo deu-se em 1920, quando participou de concurso para a edificação de um monumento da independência do Brasil e no qual alcançou o segundo lugar, o que levou a que o seu projeto não fosse realizado.


A sua atuação em São Paulo foi porém profícua, deixando sobretudo marcas em mausoléus e esculturas fúnebres, salientando-se o monumental mausoléu da família Matarazzo no cemitério da Consolação. Digno de atenção é o fato de Brizzolara relacionar a sua linguagem celebrativa e de rememoração histórica à retórica historicista bandeirantista de São Paulo. Criou, para o Museu do Ipiranga, as grandes estátuas dos bandeirantes Antonio Tavares e Fernão Dias Pais. Uma outra estátua deste bandeirante foi levantada no jardim do Trianon na Avenida Paulista (Parque Siqueira Campos).


O monumento da Praça Ramos de Azevedo não se resume à estátua de Carlos Gomes meditante, mas sim a um complexo conjunto escultórico-paisagístico e no qual se incluem representações alegóricas da música e da poesia em mármore e, em bronze, de personagens das óperas do compositor. Junto ao término inferior do parapeito da escadaria que leva ao monumento, encontram-se as estátuas de Condor e de Fosca. No plano intermediário, as de Lo Schiavo e Maria Tudor. Nos degraus, em frente à fonte, os de Salvator Rosa e de Il Guarany.


Digno de menção é o fato de surgir, abaixo da estátua de Carlos Gomes, a representação da República, singular perante a convicção antes monárquica e sobretudo contrária ao positivismo do compositor e que indica a reinterpretação de sua memória no contexto político da época. No ano seguinte, Brizzolara participou de um concurso para a edificação de um monumento à República a ser realizado no Rio de Janeiro, tendo obtido o segundo lugar.


Na Itália, projetou e realizou várias obras, entre as quais monumento aos caídos na Primeira Guerra Mundial em Chiavari, em 1928.


Leitura do conjunto escultórico de Brizzolara - aproximações


O monumento a A. Carlos Gomes com as personagens de suas óperas ao lado do Teatro Municipal e sobre as quedas d‘água não pode ser  visto apenas como capricho fantasioso de projetistas, em arroubos de estética questionável, mas sim como expressão de uma concepção ampla, refletida, que merece contínuas e mais aprofundadas análises devido a seus sentidos menos evidentes e que merecem ser analisados com atenção.


Em primeiro lugar, deve-se considerar o fato do monumento não poder ser lido superficialmente, mas exigir uma leitura de sentidos inerentes, uma vez que é marcado por um complexo uso de linguagem metafórica, de alegorias, de símbolos, de emblemas e de figuras retóricas corporificadas na plástica.


Ao alto, emoldurando a estátua de bronze do compositor, encontram-se as alegorias da Música e da Poesia em mármore de Carrara. As duas artes, que também se encontram na representação de teatros de ópera - como no Municipal do Rio de Janeiro - trazem à lembrança o papel fundamental da poesia e da música nas concepções estéticas de compositores que, como Carlos Gomes, dedicaram-se sobretudo à arte lírica, à ópera e ao canto, à música vocal que exige a co-participação da palavra e da musica, a cooperação entre o literato, o poeta e o músico.


Entra-se assim num dos principais complexos de preocupações estéticas da época do compositor e que disse respeito por fim aos fundamentos do processo criador, à ação geradora da palavra no corpo do fluir temporal. Imagem do Criador, o artista é aquele compenetrado que cogita, medita e cria, por assim dizer fala no alto da esplanada. É a inspiração do gênio que se encontrava no centro das preocupações estéticas do meio italiano em que se inscreveu Carlos Gomes, da latinidade, crítico à supremacia do intelecto e de correspondentes anelos construtivos vistos como característicos nórdicos, em particular da Alemanha.


É da palavra do criador que surge a luz que esclarece os profundo vale, as escuras descidas do Anhangabaú, uma luz que não é apenas a dos candelabros que iluminam o monumento, mas, em sentido extenso, aquela que se manifesta no complexo encenatório de separação de luz e trevas e do levantamento das águas do conjunto plástico designado como "Gloria" a seus pés.


Tem-se, neste grupo, em princípio, uma retomada de linguagem simbólica de remotas origens, conhecida sobretudo da mitologia greco-romana e que foi continuamente atualizada no decorrer dos séculos, em particular em fontes monumentais, como aquelas de Roma, seja no da praça Navona, seja, sobretudo, na Fontana di Trevi.


A similaridade com esta última, percebida por todos os passantes por ser do conhecimento geral como um dos principais emblemas de Roma, levou até mesmo a que se translocasse a São Paulo o costume popular de nela atirar-se moedas como óbulos para a realização de desejos (Fonte dos Desejos). Se este costume representa um transplantação daquele de Roma, o monumento oferece um exemplo de surgimento de "folclore" como expressão espontânea na mão da figura do Condor que, segundo o uso, é de bom augúrio se tocada por aqueles que passam.


É nessa evidência referencial que se fundamenta a "italianidade" do complexo escultórico monumental, uma vez que traz Roma à São Paulo e metamorfoseia todo o espaço e edifícios circundantes, sobretudo o Teatro Municipal. Consequentemente, a Itália e o Brasil encontram-se representados de forma a emoldurar a cena no seu primeiro plano.


Tanto a Itália e o Brasil são representados por figuras femininas: a Itália por uma mulher de joelhos, com uma espada à mão, como nação por excelências das artes, apoiada pela figura masculina do gênio das Belas Artes. O Brasil, por uma mulher portando a bandeira, idolatrada pelos homens da nação que se ajoelham de forma personificada em figura masculina a seus pés.


Monumento a Carlos Gomes. Foto A. A. Bispo 2016. Copyright

Assim como na Fontana di Trevi, com as suas figuras aquáticas e tritões, também em São Paulo o artista ali aumentou e monumentalizou a bacia de anterior fonte, e como naquela, também aqui se elevam cavalos alados em ímpeto ascensional como que imbuídos de vento fogoso, de espírito que revolve nas profundezas aquáticas e é motor de um movimento às alturas.


A referência mais explícita à antiga mitologia da Fontana di Trevi não se reproduz em São Paulo. Na obra magna de Nicolò Salvi (1697-1751), é o Oceano (Oceanus/Okeanos) o titão que surge no alto das rochas e no centro do nicho central de arco triunfal como o dominador dos mares, das fontes e dos rios. Em São Paulo, falta essa evidente referência àquela divindade das águas, filho de Gaia e Uranos e que era situado no extremo Ocidente. Na obra de Brizzolara, a grande figura que surge transportada pelos cavalos marinhos que se elevam é uma figura feminina. Na lógica do complexo mitológico, poder-se-ia aqui supor Tethys, a "mulher" ou syzygia do Oceano. Essa representação feminina traz à lembrança a deusa das águas, mãe dos rios e das fontes de água doce - as suas filhas, mãe das mães d'água, a grande avó na sua aparência majestosa de mulher madura, tornada fértil pelo espírito e que é representado muitas vezes por pequenas asas à sua cabeça.


A complexidade da concepção de Brizzolara para São Paulo - o seu ponto crucial e no qual reside a principal dificuldade da leitura - é o fato de que essa figura titânica feminina - Tethys - fsurge interpretada como alegoria da República. O conteúdo materno da mitologia teria sido aqui transposto àquele de mãe-patria, e os traços fisionômicos, a atitude resoluta e triunfante lembra Marienne como ícone francês da Revolução, internacionalizado como ícome de seus valores e, sobretudo, da liberdade.


É essa liberdade que se encontra sobre a grande esfera celeste que se encontra a seus pés como grande veículo. As dificuldades da leitura de sentidos do monumento aqui se manifestam com toda a evidência, pois as palavras Ordem e Progresso, inscritas na esfera, surgem em contradição com a visão do mundo e as convicções de Carlos Gomes.


Se o compositor foi o grande cantor da Liberdade, não o foi da República como forma de govêrno e muito menos das circunstâncias sob a qual foi implantada. Foi, na sua visão do mundo, manifestadamente contrário ao Positivismo. O emprêgo feito dos conceitos de liberdade e de democracia por um golpe militar que justamente suprimia uma situação por eles orientada permitira já à época da sua morte o uso indevido e paradoxal de emblemas da República no seu féretro e no transporte de seus restos mortais do Pará à sua cidade natal.


O monumento às margens das profundezas do Anhangabaú seria, neste sentido, a maior evidência de uma ocupação e instrumentalização do compositor a serviço de interesses políticos em eclatante oposição à própria convicção e visão do mundo do compositor. Essa negativa interpretação, porém, pode ser relativada justamente devido às ambivalências de sentidos intrínsecos à obra de Brizzolara e que colocam obstáculos a determinações e exatidões.


Carlos Gomes não é aquele que se encontra sobre o carro cósmico marcado por Ordem e Progresso, mas é aquele sentado no seu trono em plano muito mais alto, sobranceiro a tudo o que se desenrola a seus pés. A sua posição o coloca como aquele que "inventa" as metamorfoses que se manifestam nas figuras que vibram convulsionadas, que faz com que o vale se transforme em grande caixa de ressonância.


Na linguagem mitológica, êle não é Apolo, o musageta que conduz a dança das artes e disciplinas do espírito, mas antes Orfeu e sobretudo Hermes/Mercúrio, aquele inventou a lira do casco de uma tartaruga. É sintomático, assim, que Carlos Gomes tenha sido sempre decantado como "Orfeu", o "Orfeu campineiro". Mas é sobretudo a simbologia mercúrica ou hermética que merece particular atenção, uma vez que é ela que se revela no emblema de sua Villa Brasilia em Maggianico/Lecco. (Veja).


É a referência simbólica a essa divindade  das viagens, dos caminhos e sobretudo do comércio que torna compreensível também o significado do compositor para a Itália em época de celebração entusiástica do comércio e da indústria, assim como da colonia italiana na imigração paulista que, enriquecida pelas atividades mercantís, foi o motor e principal financiador do monumento.



O projeto e suas transformações


Uma das preocupações na análise de sentidos do projeto paisagístico tem sido a de considerar modificações que teriam ocorrido entre um programa inicialmente concebido por Brizzolara e aquele que foi por fim realizado.


Como já ocorrido em eventos anteriores, partiu-se de um desenho da Praça Ramos de Azevedo conservado no Arquivo Histórico Municipal de São Paulo (São Paulo: onde está sua história, São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand 1981, doc. n° 351).


Nesse desenho, constatam-se diferenças relativamente à configuração original e a atual da praça.


Um aspecto fundamental dessas diferenças diz respeito ao tratamento do jôgo das águas. As águas que jorram das aberturas na bacia do chafariz com os cavalos que dela se levantam teriam, segundo o plano original, prosseguimento em plano mais inferior abaixo de ampla escadaria. As águas seriam conduzidas subterraneamente, rojando com nova força em nível mais inferior.



Todo o conjunto era assim muito mais fortemente marcado pela queda de águas, revelando-se esse elemento como fundamental para a compreensão de sentidos e de intenções daqueles que o concrberam . É desse movimento descendente que se opõe àquele ascendente dos cavalos que se levantam jorrando água.


Tratar-se-ia assim de uma potente tensão entre o que cai e o que sobe em enérgica acentuação da força ascendente dirigida ao porvir.


A atenção é dirigida no plano original de forma muito mais vigorosa à água e a seu movimento descendente, aos rios que rojam às profundezas e esse fato traz à memória o extraordinário papel dos rios e da água para São Paulo. Essa importância da água para São Paulo, nos vales que contornavam a colina do Triângulo, foi lamentavelmente obscurecido com os aterramentos, canalizações e projetos urbanos que transformaram os seus vales em vias de tráfego ou, no caso do atual Anhangabaú, em amplo espaço aberto, porém sêco.


Eram porém o Anhangabaú, o Tamanduateí, o Tietê, o Itororó e muitos outros rios e fontes que emprestaram sentidos à paisagem segundo associações em edifício imagológico de antiga proveniência e que possibilitaram a configuração melodramática do seu centro através do complexo escultórico-paisagístico de Brizzolara.


De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Atenção: este texto deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Veja o índice da edição


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“São Paulo melodramático: a retórica encenatória do monumento a Carlos Gomes (1836-1896) de Luigi Brizzolara (1868-1937) nas suas inscrições em processos político-culturais ítalo-brasileiros “
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 162/3 (2016:04). http://revista.brasil-europa.eu/162/Luigi_Brizzolara.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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