Carlos Gomes e Nicolò Celega (1844-1906)

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 162

Correspondência Euro-Brasileira©

 

N° 162/7 (2016:4)



Verona: processos de difusão cultural no presente e no passado
Da ópera à música para banda, canto e piano no século XIX
Reduções e transcrições no comércio, na criação e na vida musical
Carlos Gomes (1836-1896) e Nicolò Celega (1844-1906)




Reflexões euro-brasileiras em Verona, 2016

 

Os estudos culturais em relações Itália-Brasil, e nos quais o vulto do compositor Antonio Carlos Gomes (1836-1896) ocupa compreensivelmente uma posição de central significado, defrontam-se com a tarefa de reconhecimento de rêdes sociais para a reconstrução de contextos, análise de influências recíprocas e tendências, assim como de suas inscrições em processos históricos.


Apesar dos laços estreitos entre ambos os países, muitos dos nomes de escritores e artistas envolvidos caíram no esquecimento. Assim, como no Brasil, também na Itália foi a segunda metade do século XIX - talvez pela sua própria relativa proximidade temporal - durante décadas pouco considerada, sendo a produção literária e musical da época sob muitos aspectos desvalorizada, desconhecida e de difícil levantamento.


Apenas gradativamente modifica-se a situação, mas estudos que revelam pormenores de vidas e obras trazem á tona dados que pouco significam do outro lado do Atlântico. Conhecê-los, porém, imergindo em meio cultural submerso de cidades que, como Milão, foram centros urbanos de um país em transformação, de desenvolvimento comercial e industrial, mas sempre convulsionado por problemas econômicos e sociais, representa uma exigência, pois foi o universo de muitos emigrantes que anbandonaram o país e daqueles brasileiros e ítalo-brasileiros que o procuraram com intuitos e aperfeiçoamento e sucesso.


Um desses nomes que necessitam ser relembrados é o de Nicolò Celega, poeta, pianista, cantor e compositor dez anos mais jovem do que Carlos Gomes e que com êle colaborou. Praticamente esquecido na atualidade, obras suas podem ser encontradas em bibliotecas, tais como a do Istituto musicale Donizetti e na Biblioteca civica de Bergamo, do Istituto musicale e Biblioteca comunale de Crema, no Liceo musicale de Genova, do Museu do Teatro alla Scala, do Conservatorio G. Verdi e da Biblioteca Ambrosiana em Milão, no arquivo capitular da catedral de Pistoia, no Conservatorio di Santa Cecilia de Roma. na Biblioteca reale de Turim e na Biblioteca comunale de Verona. Obras que trazem o seu nome foram compulsadas durante encontro euro-brasileiro realizado na Villa Gomes em Maggianico/Lecco (Veja) e, a seguir, em Verona.


Verona. Foto A. A. Bispo 2016. Copyright

Nesta cidade, questões tratadas anteriormente na Villa Gomes em Maggianico/Lecco puderam ser recapituladas à de alguns problemas que se levantam no confronto com o cultivo da opera e sua popularidade e internacionalidade na antiga arena de Verona. Esses problemas dizem respeito sobretudo a processos difusivos que possibilitaram o conhecimento e a propagação, através de décadas, de determinadas obras e artistas.


Se hoje os meios de comunicação desempenham aqui papel primordial, a difusão de obras, compositores e artistas deveu-se no passado sobretudo ao empenho de casas editoriais, interessadas no sucesso comercial de suas publicações. Editores e comerciantes de música desempenharam papel decisivo na divulgação de óperas através de reduções para banda, para piano a duas ou quatro mãos ou para canto e piano.


Elaborações de óperas para piano: transcrições, reduções e fantasias


Embora nascido em Polesella, província Rovigo, na região do Vêneto, tendo provavelmente obtido a sua formação na região natal, foi em Milão que desenvolveu as suas atividades, em particular como colaborador da casa editora Ricordi.


Celega é conhecido de edições de obras de Carlos Gomes sobretudo como autor de reduções e elaborações para piano de várias de suas óperas: Il Guarany, Maria Tudor, Salvator Rosa e Fosca


As atividades de Celega assim registradas indicam as estreitas relações existentes entre o compositor brasileiro, os editores e Celega, que não estaria em condições de realizar tais trabalhos sem a participação de Carlos Gomes.


Com as reduções para piano, possibilitando o cultivo doméstico de suas óperas, reconhece-se que Celega desempenhou um papel relevante na sua difusão. Essa colaboração com Carlos Gomes explica-se pelas intensas atividades profissionais que Celega desempenhou no ramo editorial, em particular na casa Ricordi.


O grande número de óperas de outros compositores que tratou em reduções, edições facilitadas e fantasias dá testemunho do renome de Celega como um dos mais aptos para essse tipo de trabalho de sua época, e que pressupõe alta capacidade pianística e técnico-musical, conferindo-lhe amplo conhecimento do repertório e do meio musical. No Brasil, o seu nome tornou-se conhecido através de edições de obras por êle reelaboradas e divulgadas pora Artur Napoleão (1843-1925) e a casa de música com o seu nome.


O renome de Celega nessa área de atividade profissional fundamentava-se no fato de ter realizado transcrições e reduções das mais conhecidas óperas, entre elas de G. Donizetti (La favorita), V. Bellini (I puritani, La sonnabula),  E. Petrella (I promessi sposi, La contessa d'Amalfi, Giovanna di Napoli, Manfredo, Celinda), G. Meyeerbeer (L'Africana, Dinorah), G. Rossini (La carità, coro religioso), J.-F.-F.-E. Halévy (L'ebrea), G. Verdi (Aida, La Traviata, Il Trovatore, Don Carlo, La forza el destino, Un ballo in maschera, Rigoletto, I Vespri siciliani). Foi como autor de reduções que o seu nome atravessou as décadas nas muitas reedições de obras, sendo apenas aqui ainda hoje lembrado.


Pode-se supor que o estudo de partituras que Carlos Gomes desenvolveu durante e após os seus estudos e que foi de tanta importância para o seu desenvolvimento como compositor tenha sido feito sobretudo com base em reduções para piano.


Celega manteve contatos com o seu professor Lauro Rossi (1812-1885), tendo realizado uma elaboração para piano de sua principal ópera, La contessa di Mons. Celega trabalhou também para os mais destacados amigos e colegas de Carlos Gomes do círculo da Scapigliatura e de Maggianico/Lecco, sobretudo de A. Ponchielli (La Gioconda, Le due gemelle, I Lituani) (Veja) e de Arrigo Boito (Mefistofele). O conhecimento de novas obras e tendências estéticas na Itália e no Exterior por Carlos Gomes e aqueles com que convivia dava-se em grande parte através de reduções para piano, podendo-se aqui incluir obras de R. Wagner, também reelaboradas por Celega ((Lohengrin, Tannhäuser).


Como colaborador de Ricordi, Celega esteve próximo às muitas personalidades que atuaram na Gazetta musicale, entre êles de Antonio Ghislanzoni (1824-1893), escritor, libretista, poeta, e crítico amigo e colega de Carlos Gomes,autor de vários textos por este elaborados musicalmente para canto e piano. (Veja )


Contatos entre Carlos Gomes e Celega fora da área editorial


Sendo Celega uma acatada personalidade da vida musical de Milão como professor, arranjador e compositor, também os seus contatos com Carlos Gomes não se limitaram às relações profissionais referentes à redução e à edição de óperas. Aqui poder-se-ia incluir o meio da música para banda, militar e civil, assim como o do ensino colegial.


Estando envolvido com o comércio de música, e realizando reduções para piano também de música para banda, Celega mantinha relações com mestres e instrumentistas de corporações, entre êles aqueles do Corpo di Musica Municipale de Milão. O alto nível qualitativo dessa banda permitia que se apresentasse até mesmo no Teatro alla Scala, onde, em 1884, foi executada a Marcia baccanale op. 235 para banda de Celega. Os seus elos com o meio da música militar reflete-se no fato de ter composto marchas como Il Capo d'Anno op. 106 e Marcia funebre in memoria del colonnello Nullo, op. 10.


Essas relações com a esfera da música para banda também explicam uma proximidade ao Tenente de Infantaria Francesco Giganti, do Colégio Militar (Veja), tendo colocado em música um de seus textos (Canto e mistero, zampognata). Compreende-se, neste contexto, ter sido Celega o autor da versão para piano a quatro-mãos do hino-marcha que Carlos Gomes escreveu em homenagem ao Exército italiano e dedicou àquele colégio preparatório de soldados à época de sua reinstituição. (Veja)



As canções de câmara de Celega e de Carlos Gomes


Verona. Foto A. A. Bispo 2016. Copyright
Os elos entre Celega e Carlos Gomes devem ser considerados nas suas dimensões estéticas mais amplas e que superaram aquelas derivadas da proficiência técnico-musical, do domínio do piano e dos contatos de Celega com o meio musical através de suas atividades profissionais no campo editorial e comercial de música.


Tendo Celega gozado na sua época de renome como compositor de música vocal de câmara, é nesta área da criação musical que podem ser conduzidas analíses que revelem paralelos entre a sua obra e as canções de câmara de Carlos Gomes.


Se o estado das pesquisas não permite ainda estudos comparativos mais pormenorizados quanto a afinidades estilísticas, pode-se já reconhecer o mesmo ambiente sócio-cultural que possibilitou a recepção favorável das canções de câmara de Celega e de Carlos Gomes, abrindo horizontes para a compreensão de tendências estéticas, dos temas dos textos tratados e da linguagem musical.


Tanto as canções de câmara de Celega como as de Carlos Gomes teriam correspondido, no refinamento da elaboração musical, em particular harmônico, na elegância de formas e na sensibilidade expressiva a uma cultura de distinção de meios sociais em ascensão da burguesia de grandes centros urbanos imbuídos do espírito de progresso e cultivo, em particular de Milão.


Em ambos os casos, essa cultura de refinamento comedido, conservadora moderada, avessa a experimentações mais avançadas, corresponderia na sua nobre simplicidade a um interesse pelo melodismo popular, o que lhe conferia laivos de espontaneidade.


Manifestava-se aqui o espírito do romantismo do século no seu interesse pelas tradições populares, consideradas em textos, em particular nos romances de câmara. Sabe-se que canções de câmara de Celega ultrapassaram o ambiente milanês, sendo também cultivadas em meios marcados pela cultura italiana do Exterior, em particular em Paris ou em balneários internacionais frequentados por italianos de posses, como Aix-les-Bains.


A partir dessa prática reservada e intimista da música e dos salões de maior distinção encontraram essas canções, também para canto e orquestra, o caminho das salas de concertos ao serem incluidas em programas de renomados intérpretes, dos quais sempre se salienta a soprano torinesa Virginia Ferni Germano (1849-1934).


Já alguns títulos de obras de Celega para canto e piano, ou orquestra, indicam o papel que a êle cabe nos estudos do romantismo na Itália e que mereceria maior atenção. Entre êles destacam-se vários romances (e.o. Desio op. 179; Desolazione; A te, Maria!; Pei campi op. 231; A Rita; Amore!; Visione; Verrà), serenatas (Seren splendeva il cielo, op. 191), baladas (Amor di figlia, Ballata), melodias (Sogno e realtà op. 187; Un primo bacio op. 243; Le rondinelle, op. 246; Dormi, ben mio; La rosa; Sospiro d'amore; La regina dei fiori; Un sogno; Sospiro d'amore), peças em tempo de valsa (La farfalla; Tu splendi ancor). Vários dos autores de textos colocados em música por Celega foram também escolhidos por Carlos Gomes em obras vocais, tais como L. Capranica (Sogno e realtà; Ballata), R. Paravicini (La farfalla em Celega; Civettuola em Carlos Gomes), F. Fontana (Visione); C. Lisei (Dormi ben mio; La rosa; Sospiro d'Amore); C. D'Ormeville (Un sogno; Verrà). Uma barcarola encontra-se tanto em Celega (In mare) como em Carlos Gomes (La Regatta) (Veja), sendo ambos foram marcados pelo fascínio dos lagos pré-alpinos do Norte da Itália, no caso do brasileiro o Inno Alpino, no caso de Celega as cinco peças para piano Matinée aux Alpes.


Música para piano de Celega e o tratamento do piano em obras de Carlos Gomes



Ainda que insuficientemente estudadas, já o número dos títulos de composições para piano de Celega publicadas pela casa Ricordi indicam a ampla difusão de sua obra pianística na sua época.


Também aqui surge o compositor como significativo representante do romantismo italiano. Para além de peças menos ambiciosas de salão, compôs romances sem palavras (L'amor represso, op. 20; L'afflitta, op. 99; Romanza senza parole in fa diesis minore op. 119; seconda Romanza senza parole, op, 138; terza Romanza senza parole op. 140; quarta Romanza senza parole op. 147), cantos ou pensamentos afetuosos (Il perdono, op. 11; Il conforto, op. 50); melodias ou pensamentos melódicos (Fiducia op. 131; Mai più!; Preghiera della sera; Si vous n'avez rien à me dire) serenatas (La serenata op. 52; Al chiaro di luna, terza serenata op. 123; Per sempre, quarta serenata op. 125; Una serenata a Venezia op. 251; Serenata zingaresca); folhas d'albuns (Follia, op. 169); expressões, andantes, meditações (Un'ora d'estasi op. 13; Andante religioso, op. 116; Consolazione, op. 118; Meditazione, op. 172; Andante espressivo op. 176; Estasi d'amore, pensiero melancolico), barcarolas (Al Lido op.221).


Em peças características, Celega veio de encontro ao interesse por tradições populares da época (Danza valacca op. 197; Una festa al villagio op. 222; Sei scene descrittive a quattro mani op. 248) e ao exótico (La giapponese, polka-salon), chegando a compor uma Danza cubana (op.208). O exotismo manifestou-se também em obras para outros instrumentos, como o Profumo orientale, idillio per quintetto op. 249.


A obra pianística de Celega merece particular atenção como exemplo da recepção de F. Liszt (1811-1886) na Itália. Com isso, diferenciou-se de pianistas-compositores marcados pela da brilhante escola napolitana e que deixavam perceber mais a influência de Sigismund Thalberg (1812-1871), que ali se estabelecera.


Grandes aptidões técnicas virtuosísticas podem ser registradas em várias de suas obras  e.o. em valsas (Valzer brillante op. 177; secondo Valzer brillante a quattro mani, op. 201; Valse poétique, op. 245; Valse des sirènes). Paralelos com Liszt evidenciam-se em Consolazione, op. 118; Souvenir d'un carnaval, thème de Paganini, grand caprice-concert per due pianoforti, op. 209. São obras nas quais o teclado é usado em toda a sua amplitude, percorrido em escalas ou em saltos rápidos do baixo à região aguda, com oitavas arpejadas e rebatidas, em passagens de bravura e de efeito brilhante possibilitado pelo uso de staccatti.  Essas e outros procedimentos, em particulr de acordes arpejados, podem ser constatados em elaborações realizadas por Celega para Carlos Gomes, como no hino à Independência americana em 1876.




A menção de N. Paganini (1782-1840) na obra de Celega vem de encontro ao interesse pela temática fantástica e demoníaca que que constata em alguns de seus títulos, tais como Diavoletto, op. 72; a Danza satanica, op. 223, esta também em versão para orquestra. Esta última traz à lembrança a atualidade então de questões de satanismo e de espiritismo na Itália das últimas décadas do século XIX.


A vasta produção de Celega inclui peças sinfônicas de cunho descritivo (Danza originale per grande orchestra op. 170; Sorriso d'amore, bluette op. 215; Il cuore di Fingal, poema sinfonico; Les heures humaines, trittico sinfonico; L'incantesimo, sinfonia descritiva; Sinfonia in si b maggiore; Thémis, ouverture), de câmara, em particular para violino e piano (Serenata op. 178; Impromptu op. 200), e para conjunto de cordas (Pompadour, gavotta op. 237; Minuetto, op. 240).


Diferentemente de Carlos Gomes, Celega dá testemunho de um maior interesse pela música religiosa, o que parece poder-se explicar pela sua formação. Deixou assim música para órgão (Coeli enarrant gloriam Dei, meditazione; Postluio-Orazione), para coro com acompanhamento de harmônio e piano como intermezzo de dramas (Coro di angeli op. 241), assim como uma Mélodie para harmônio, piano e violoncelo.


De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Atenção: este texto deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Veja o índice da edição

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“ Verona: processos de difusão cultural no presente e no passado. Da ópera à música para banda, canto e piano no século XIX. Reduções e transcrições no comércio, na criação e na vida musical. Carlos Gomes (1836-1896) e Nicolò Celega (1844-1906) “
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 162/8 (2016:04). http://revista.brasil-europa.eu/162/Nicolo_Celega_e_Carlos_Gomes.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Verona 201
Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.









 

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