Vincenzo Cernicchiaro e Carlos Gomes

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 162

Correspondência Euro-Brasileira©

 

N° 162/9 (2016:4)





L'arte è perfetta quando realizza la delizia in grado culminante

Latinidade e Estética em Carlos Gomes (1836-1896) segundo Vincenzo Cernicchiaro (1858-1928)




1926-1976-2006: lembrando trabalhos pelos 50 anos da Storia della Musica nel Brasile em Milão, em 1976
após dez anos do seminário "Migração e Estética", Universidade de Colonia/A.B.E. 2006


 

A reintensificação de idéias e ímpetos nacionais, nacionalistas e identitários na Europa da atualidade justifica a retomata de atenções ao compositor brasileiro Antonio Carlos Gomes. (Veja)


O seu nome e a sua obra surgem na literatura através das décadas sempre relacionados com múltiplas questões relativas ao nacional e ao nacionalismo. A ocupação com o compositor brasileiro pode assim abrir perspectivas a uma maior diferenciação de concepções relativas ao nacional e ao nacionalismo no presente.


Nem sempre essas questões têm sido consideradas de forma adequada relativamente à época e aos contextos em que viveu na Itália e no Brasil, nem sempre foram elas diferenciadas daquelas que se levantam relativamente a visões e mesmo instrumentalizações posteriores de sua vida e obra em décadas marcadas por regimes autoritários nacionalistas.


Os multiplos problemas que se levantam foram já há muito reconhecidos como de relevância para as reflexões sobre História e a Estética no Brasil.


No ano da homenagem a Carlos Gomes no conservatório que trazia o nome do compositor, em São Paulo, em 1966, tomou-se consciência dos graves problemas historiográficos causados pela perspectivação de autores nacionalistas nos anos que se seguiram à Primeira Guerra e que levaram a uma desqualificação do passado musical no Brasil como ainda por demais preso a modêlos e desenvolvimentos europeus. (Veja)


Reconheceu-se que aqui se tratava de problemas resultantes de complexas interações recíprocas entre visões e apreciações de desenvolvimentos históricos e de reflexões estéticas. Também os intentos de superação dos problemas constatados deveriam considerar essas interações, ou seja, a propugnada mudança de orientação através de um direcionamento da atenção a processos deveria também valer para o tratamento de questões estéticas para que estas perdessem o questionável cunho apodítico que tinham tomado com afirmações peremptórias de autores representativos do pensamento nacionalista do passado.


Historiografia e Estética - os 50 anos da edição da Storia della Musica nel Brasile - 1976


Milao. Foto A.A.Bispo 1976. Copyright


Arquivo A.B.E.
Essa discussão teve o seu prosseguimento na primeira metade da década de 1970 na área de Estética da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e na de Estética e Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo.


Esse debate relativo a problemas de Historiografia e Estética tiveram continuidade com o início do programa euro-brasileiro na Europa em 1974. Intensificou-se no âmbito dos trabalhos internacionais do projeto "Culturas Musicais na América Latina do século XIX", levados a efeito na Universidade de Colonia. (Veja)


A viagem de estudos e os encontros em Milão, no início de 1976 (Veja) tevecomo um de seus principais fatores motivadores a passagem dos 50 anos da publicação em Milão de uma obra que surge como fundamental para a historiografia da música e mesmo para estudos estéticos relacionados com o nacional e o nacionalismo no Brasil: A Storia della Musica nel Brasile de Vincenzo Cernicchiaro (Stab. Tip. Edt. Fratelli Riccioni, 1926).


Coube a Francisco Curt Lange (1903-1997), no âmbito do projeto, salientar o valor dessa obra como fonte de informações e a necessidade de sua reconsideração através de uma crítica das críticas a ela feitas. Publicada em época de intensos ímpetos nacionalistas no pensamento voltado à música e à cultura em geral no Brasil, superior já pela quantidade dos dados nela registrados a qualquer obra escrita anteriormente, o livro de Cernicchiaro não poderia ter deixado de ser injustamente criticado e sobretudo desvalorizado nas apreciações e nas visões de desenvolvimentos nele contidas. Justamente por essa recepção ingrata e injusta, a Storia della Musica nel Brasile evidencia ressentimentos em época na qual o meio musical de grandes cidades brasileiras sentia uma poderosa presença italiana.


A necessária revisão de julgamentos das décadas passadas foi objeto de reflexões em encontros com Luís Heitor Correa de Azevedo, um daqueles que, no ambiente marcado pelo nacionalismo e na sua permanência posterior tecera críticas a Cernicchiaro que hoje surgem como questionáveis, fato o qual estava consciente.


"Sua obra é, sem dúvida alguma, muito útil; dificilmente poderá alguém escrever, hoje, sobre o passado musical brasileiro, sem consultá--la. Mas sua crítica tem um vício de origem. Italiano de nascimento e homem do século XIX, enfeitiçado pelo melodrama, Cernicchiaro tudo vê deformado pelo prisma da ópera... E isso o leva, muitas vezes a proferir jultamentos profundamente injustos. De resto êle se achara demasiadamente envolvido em meio século de vida musical brasileira para poder falar objetivamente de personalidades com as quais lidara, de fatos que presenceara e nos quais tivera um papel a desempenhar." (Luiz Heitor, 150 anos de Música no Brasil 1800-1950, Rio de Janeiro: José Olympio 1956, 379


A reconsideração de Cernicchiaro, porém, não se justifica apenas pelo fato de ser um repositório de dados não superado por qualquer outra obra anterior ou imediatamente posterior. Justamente pelo fato de ser resultado da vivência de um músico de idade avançada, pertencente a uma época passada nas suas observações e visões, ela surge como a mais adequada quanto ao tratamento de desenvolvimentos e personalidades da segunda metade do século XIX e início do XX nas suas próprias inscrições em contextos da época. Ela representa uma necessária correção à desvalorização de todo o passado musical do Brasil anterior em anos nos quais intelectuais e artistas partiram da convicção de que teria sido justamente na época em que viveram - a de entre-guerras - que ter-se-ia consubstanciado uma arte de características nacionais.


Essa obra representa a maior contribuição de um músico italiano imigrado para os estudos histórico-musicais referentes ao país em que viveu e atuou como músico, compositor e professor. Com essa obra, Cernicchiaro marcou de forma duradoura a presença italiana na musicologia histórica referente ao Brasil. É, no  um documento expressivo da extraordinária atenção dedicada por um estrangeiro aos desenvolvimentos da vida musical do país e, através de suas reflexões, testemunho de seu empenho em conhecê-lo, estudá-lo e interpretá-lo.


Neste sentido, a Storia della Musica nel Brasile é uma obra que não pode deixar de ser considerada em estudos da imigração, das relações ítalo-brasileiras e de processos sócio-culturais da época em que surgiu. Foi, assim, repetidamente considerada em colóquios e seminários, entre êles no seminário Imigração e Estética, levado a efeito na Universidade de Colonia em cooperação com a A.B.E. em 2006.


In altre parole, Carlos Gomes rimane latino


Em todo um capítulo, o compositor é tratado por um autor que esteve em contato com Carlos Gomes, seguiu a sua trajetório e melhor do que qualquer outro conhecia o meio em que se inscrevia na Itália.


"Noi lo conoscemmo nel pomeriggio della sua gloria, gli fummo seduti accanto assai volte nell'intimità la più propizia per raccogliere ogni cognizione del suo carattere, e de' suoi difetti, i quali non erano, in fondo, di quelli che si annegano nella fiumana del disordine morale, ma bensì nella dolcezza e nel conforto per quanti, negli eventi della carriera artistica, andavano a bussare alla sua porta, che si apriva caritatevole, rimpiangendo di non poter essere utile a tutti i fratelli d'arte, vissuti assieme a lui nella terra ove imparò ad amare e comporre." (op.cit. 383)


Vincenzo Cernicchiaro inicia o seu capítulo sobre Carlos Gomes com pormenorizadas reflexões de natureza cultural e estética. Pouco lidas por aqueles que procuram na obra apenas dados "objetivos", são justamente essas considerações de Cernicchiaro que assumem maior significado sob uma perspectiva musicológico-cultural. Elas revelam as principais concepções e visões filosófico-culturais e artísticas de desenvolvimentos histórico-musicais a partir de uma posição italiana e ítalo-brasileira.


O autor salienta, de início, que dentre todos os musicisitas que menciona na sua obra, cabia a Carlos Gomes o maior mérito, sendo que o seu nome entrara na História da Música como o maior compositor melodramático que o Brasil até então tivera. Êle era o único artista compositor que podia vangloriar-se de ter pertencido à plêiade magnífica de musicistas célebres do século XIX, cuja obra, nascida sob a influência do movimento romântico, brilharam com grande luz inspiradora em todas as cenas líricas do mundo. 


A seguir, Cernicchiaro trata da predisposição pessoal de Carlos Gomes, expondo concepções filósoficas do ato criador a partir de uma linguagem visual de antiga tradição. Carlos Gomes possuia o dom sagrado da inspirações musicais, filhas legítimas dos ideais que os espíritos modernos da arte dos sons estariam tentando em vão destruir. A estes faltaria o raio divino que fecunda na alma dos verdadeiros gênios a magnificência da natureza, a poesia com o ideal, o sentimento com a inspiração.


Carlos Gomes era filho de uma não-degenerada idealidade que se fundamentava na filosofia poética de um Montesquieu (1689-1755), à qual a perfeição da arte seria aquela de dar ao homem o maior prazer. Desenvolvendo o seu talento em meio de sanos elementos que constituia a arte musical na Itália, professou rigorosamente até a sua morte aquela nobre teoria. Era essa doutrina que tinha feito e faria no futuro a arte como escopo do que é dileto, não apenas como ciência. Com essa orientação teórica, Carlos Gomes não se teria nunca subordinado à instabilidade das fugitivas tendências intelectuais de moda. Se o seu nome não alcança as alturas de um Mozart, de um Gluck, de um Rossini ou de um Verdi, não se poderia negar que fora um dos mais respeitados e gloriosos do seu tempo.


Cernicchiaro retoma, com essas considerações críticas à instabilidade das fugitivas tendências de moda, um tema que fora de significado já nas primeiras obras de Carlos Gomes na Itália em ambiente marcado pelo conservadorismo moderado e que teve a sua expressão mais evidente na revista Nella Luna. (Veja)


Imagem da fecundação da alma pelo raio divino e o céu da Itália em Carlos Gomes


Milao. Foto A.A.Bispo 2003. Copyright
Voltando à imagem utlizada da fecundação da alma pelo raio divino, Cernicchiaro estabelece uma relação entre este e o céu da Itália, salientando como este tinha sido benéfico para a alma de Carlos Gomes. Disso resultara, evidentemente, que a sua arte revelasse a influência da escola italiana. Essa influência era natural, lógica, tratando-se de uma escola de paixão, de sentimento, de inspiração, enquadrada na técnica da qual conhecia todos os segredos mas cujos recursos para êle sempre permaneceram como um meio e não como um fim.


Utilizando outra imagem de antigas origens, Cernicchiaro diz que Carlos Gomes bebera de fonte de água límpida e sadia os princípios fundamentais da arte melódica. Fora dessa fonte que haviam sanado a sua sede os mais eminentes gênios musicais - Mozart, Gluck, Haendel, Meyerbeer, Reißiger (Carl Gottlieb 1798-1859) - e tantos outros que, procurando a clássica terra italiana, atravessaram os Alpes para enriquecer a mente no berço da poesia e música. Volveram-se à terra das produções geniais, cuja luz, de irradições melódicas, nunca cessou de expandir-se no mundo, criando verdadeiras gerações musicais.


Naquele ambiente, um solo abençoado no qual tiveram origem fundamentais desenvolvimentos da arte musical, Carlos Gomes completara os seus estudos. Fora naquela terra, berço de toda a beleza musical e de numerosas escolas antigas de composição, de Scarlatti, Pergolese, Cimarosa, Paisiello - orgulho e glória da escola napolitana que rivalizava com aquela de Veneza, de Lotti, Marcello, Caldara e Martini - , que o "cisne de Campinas" teria assimilado todos os recursos da arte da composição.


A fidelidade de Carlos Gomes a uma idealità artística italiana


O sentimento musical de Carlos Gomes permanecera fiel a esta idealità ou fé artística. Com essas considerações, Cernicchiaro referia-se à problemática wagneriana na Itália: à época de Carlos Gomes, a doutrina wagneriana começava a introduzir-se no espírito de um público especial e ainda reduzido, conduzindo promissores compositores a uma idealità contrária ao sentimento de raça e de nacionalidade.


Carlos Gomes teria permanecido incólume a essas tendências estéticas em direção às "névoas nórdicas". Permanecera no mundo dos crepúsculos róseos do céu sereno, onde a arte coloca rítmos nas vozes e não a orquestra. Cernicchiaro lembra aqui de  Francesco Pastonchi (1874-1953), escritor, jornalista e pensador italianista, crítico do Corriere della Sera, formado e posteriormente professor de literatura em Turim.


Carlos Gomes não teria contrariado segundo o musicógrafo o elemento que tinha o belo como conceito e que era essência principal e única, guia de todos os engenhos latinos criadores de tantas formas poéticas. Graças ao sentimento espontâneo e pessoal e ao elemento que o circundava, poético inspirador de toda a beleza melódica, Carlos Gomes pôde observar serenamente aquela filosofia de uma nova arte musical que surgia, sem deixar-se envolver nas tramas dos novos símbolos poético-musicais de "povos místicos" do norte. Ou seja, Carlos Gomes teria permanecido latino.


Esta convicção de Cernicchiaro volta a ser expressar no decorrer da história de vida que apresenta no seu capítulo sobre Carlos Gomes. Salienta neste sentido os estudos realizados sob a orientação e Lauro Rossi (1810-1885  ), autor da ópera Contessa di Mons, diretor do Conservatório de Milão, assim como os estudos auto-didatas de Carlos Gomes de formas e de partituras que o levaram à fixação de seu estilo em estética que não renegava a "verdade", uma verdade toda melódica, no sentimento da vida ideal latina: "Era su quella estetica che Carlos Gomes doveva fissare il suo stile per non rinnegare la verità, verità tutta melodica, nel sentimento della vita ideale latina." (op.cit. 355)


...in arte, la scienza è il corpo; l'ispirazione è l'anima (pág. 363)


Considerando o Il Guarany, Cernicchiaro oferece análises guiadas pelas suas concepções estéticas que surgem hoje como valiosas para as percepção de qualidades segundo critérios adequados à época e ao contexto.


Cernicchiaro vê uma contribuição inovativa do compositor brasileiro à tradição romântica da balada em "C'era una volta un principe....". Esta ballata seria toda feita de sensação poética, que tinha em si toda a beleza da época romântica dos bardos, destilada pela sentimentalidade do artista, o qual se afastara da forma romântica do passado para criar um tipo todo novo. Era a canzone musicale, que, pela espontaneidade melódica a a bela forma pictórica, divergia com grande vantagem daquela dos compositores mais antigos, limitadadas a um lirismo lânguido, sem procura de invenções rítmicas, baseadas apenas na transmissão popular. A inspiração de Carlos Gomes alcançara aqui um efeito duplo: o de dar uma visão suave do ambiente de um remoto passado colonial, reproduzindo com intensidade pictórica da expressão o fenômeno simbólico de uma época na qual a energia latina elevou ao ceu da natureza tropical a primeira melopéia, recordando de forma nostálgica a pátria.


Nessas análises, Cernicchiaro entra no problema da co-participação do intérprete no processo criador. Lembrando do pedido feito por cantor relativamente à Invocazione do terceiro ato, de que esta fosse um Arioso que pudesse colocar melhor em evidência as suas qualidades vocais, o autor lembra das constantes tentativas de executantes de intervenir junto a compositores que se vêem postos em situação embaraçosa, uma vez que desejam permanecer fiéis à sua obra e, concomitantemente, contentar intérpretes.


Para o autor, essas pretensões de cantores seriam quase sempre absurdas e ilógicas. Os tenores desejam um dueto de amor com a prima donna no qual não falte um belo si em acorde de dominante ou um estrrepitoso do agudo para que conquistem aplausos; o barítono exige um trecho heróico, fantástico, com uma cadência banal; o baixo, deficiente na bravura, quer o seu trecho mais amplo, expressivo, sentimental, muitas vezes contrariando o argumento. Essas exigências de intérpretes tinham como resultado um desastroso efeito para o drama, para a forma, para o desenvolvimento, para o equilíbrio da ópera. Assim, poder-se-ia imaginar a inquietação, o embaraço de compositores premidos a sacrificar conceitos musicais adequados à ação do drama para satisfazer as absurdas exigências de artistas que acreditariam que a beleza da arte do bel canto residiria apenas na potencialidade de suas vozes.


Carlos Gomes destacara-se neste sentido por ser um artista sério pela sua educação moral e artística, orientando-se segundo as exigências da situação dramática.


Carlos Gomes evitara os abusos dos gorgeios banais, os vocalizes desenfreados, que nem sempre combinam com a verdadeira expressão dramática. Em Il Guarany se encontraria apenas uma peça de virtuosidade acrobática, a Polacca sortita di Cecilia, do primeiro ato: Gentile di cuore. Esta, porém, justificava-se pela sua função dramática, uma vez que era o canto de uma jovem em alegre volubilidade.


Considerando críticas negativas quando à vulgaridade de alguns trechos, como a canção do aventureiro "Senza tetto, senza cuna", e o coro "L'oro è un ente si giocondo', o autor lembra que nas óperas latinas o estilo simples, até mesmo medíocre podia responder com boa lógica ao efeito da expressão. Cernicchiaro lembra aqui nada menos do que exemplos de G. Verdi (1813-1901), tal como a  "La donna è mobile" do Rigoletto. Assim, a canção "Senza tetto, senza cuna", embora vista como vulgar por intransigentes, tinha a sua razão lógica, uma vez que refletia o espírito vulgar de um personagem de alma endurecida. (op.cit. pág. 363)


Concluindo. Cernicchiaro salienta que Carlos Gomes possuiu a riqueza de meios, os processos técnicos, o conhecimento dos timbres variados da orquestra, das vozes, todos os recursos indispensáveis ao compositor destinado a escrever páginas de óperas e "a fare la delizia del pubblico"


O público reconhecera que o jovem brasileiro de alma ardente não tinha a preocupação de falsos ideais, tendo encontrado a virtude da medida, do equilíbrio, guiado pelo ideal de um espírito não propenso a trair a arte e o seu escopo, mascarando o pensamento, trucidando a expressão para passar por sábio. Foi um exemplo de que, na arte, a ciência é corpo, a inspiração é alma . A centelha divina, a chama fecunda a inspiração seriam duas forças superiores à ciência musical. (op.cit. 363)


Cartas de Carlos Gomes transcritas por Cernicchiaro


Do ponto de vista documental, deve-se considerar que o capítulo dedicado a Carlos Gomes de Cernicchiaro inclui duas cartas do compositor a êle enviadas.


Em carta de 16 de Março de 1893, Carlos Gomes dá testemunho dos estreitos elos de amizade e familiaridade com Vincenzo Cernicchiaro. Escrita em italiano, dirigia-se a este quando se encontrava na sua cidade natal de Torraca, na Província de Salerno, Campagna. Para além do seu interesse em revelar aspectos de tratos governamentais, surge como significativa por demonstrar o pêso dado a conceitos de família nas relações ítalo-brasileiras. Carlos Gomes lembra encontrar-se Cernicchiaro no seio da "famiglia antica", imaginando as saudades que teria da "famiglia nuova", ou seja, aquela que ficara no Brasil. "I cuori buoni come il tuo amano quanto c'è di meglio al mondo: la famiglia." (op.cit. 376)


Na segunda carta, de Milão, de 2 de maio de 1893, em português, Carlos Gomes responde a carta enviada por Cernicchiaro de Lisboa, a bordo do paquete que o levava de volta ao Rio de Janeiro. Embora encontrando-se em época plena de dificuldades materiais e às vésperas de partir para Chicago, procurara corresponder á constante amizade de Cernicchiaro, ocupando-se do que pedira, ou seja da criação de um desenho para um fronstespício de jornal de título "A Arte" e que o compositor sugere que seja "Bellas-Artes". Com essa mudança, Carlos Gomes revela a sua convicção de que é a arte em geral que deve ser salientada, sem exclusivismo deste ou d'aquelle ramo 'delle arti sorelle'. O pedido de Cernicchiaro teria sido feito durante um jantar conjunto em Milão e ao qual esteve presente o autor do desenho em aquarela que enviava, o "compadre Manduca Guimarães", o Malaguti.


Carlos Gomes sugere a Cernicchiaro também que todos os números do jornal incluissem uma máxima:


"Arte - Rainha dominante do Mundo, sem trono, sem pátria".


A última carta, enviada de Milão, a 25 de novembro de 1895,  em italiano, manifestava o seu contentamento pelo sucesso alcançado por Cernicchiaro em concerto realizado no Cassino Fluminense. Lembrava que este tinha sido sempre um amigo fiel, não deixando passar nenhuma ocasião de dar prova da sua estima. Mencionava a possibilidade que se abria no Pará, mas pedia pelo amor de Deus que não comentasse nada a respeito com jornalistas: "Tu sai che la stampa, con le sue notizie sbagliate, rovina, inventando,..."


De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Atenção: este texto deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Veja o índice da edição

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“Latinidade e Estética em Carlos Gomes (1836-1896) segundo Vincenzo Cernicchiaro (1858-1928).“
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 162/10 (2016:04). http://revista.brasil-europa.eu/162/Vincenzo_Cernicchiaro_e_Gomes.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Milão 2002
Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

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