A "aldeia olímpica" nacionalsocialista

Revista

BRASIL-EUROPA 163

Correspondência Euro-Brasileira©

 

N° 163/13 (2016:5)





"Vila dos Atletas" e a concepção de "aldeia olímpica" nas suas dimensões político-culturais Lembrando a aldeia de Döberitz da Olímpia de 1936 na Alemanha nacionalsocialista


Reflexões euro-brasileiras no Olympiapark Berlin

 
Com os jogos olímpicos realizados no Rio de Janeiro, em 2016, o Brasil passou a estar mais intensamente no foco das atenções internacionais. Para além das competições, foram as construções e aspectos urbanos e sociais da cidade e do país o que mais foi considerado e discutido.


Já por ocasião da copa do mundo, a arquitetura dos estádios - também no seu sentido no contexto social e cultural das diferentes regiões - fora objeto de debates e de comparações com outros exemplos de estádios, áreas e edifícios levantados em diferentes países por ocasião de jogos ou de grandes exposições internacionais.


Esse debate também teve repercussão nos estudos euro-brasileiros, levando a considerações in loco em diferentes países, entre êles em Sotschi, no Mar Negro, além de pesquisas históricas, como em Turim. (Veja)


Nos debates relativos à arquitetura dos estádios da copa do mundo houve não só comentários positivos, havendo críticas quanto ao estilo, à função e a aspectos construtivos de várias edificações.


Similar discrepância quanto a apreciações pôde ser registrada quanto às construções e aos espaços criados para os jogos olímpicos de 2016, em particular quanto à "Vila dos Atletas".


Textos brasileiros salientaram a modernidade dos 31 altos edifícios localizados em ampla área de 475.000 metros quadrados da região privilegiada da Barra e que, divididos em 7 condomínios, ofereceram 3.604 apartamentos e 10.160 quartos com a capacidade de hospedagem a 18 mil pessoas. O problema sempre levantado da função posterior de construções foi aqui evitado, prevendo-se um futuro uso residencial.


Menor atenção parece ter sido dada a questões arquitetônicas e estéticas nas suas diferenças culturais, o que faz com que similares prédios e configurações espaciais e paisagísticas surjam em muitos países como convencionais, sem maior interesse e mesmo com conotações pouco positivas.


Entrevistas dadas por esportistas que retornaram foram predominantemente críticas, com a menção a aspectos negativos das instalações, sobretudo relativamente às acomodações na "Vila dos Atletas".


Essas críticas não deixaram de ser negativas para balanços dos jogos olímpicos no Rio de Janeiro e, sobretudo, para a imagem do Brasil.


Nas suas avaliações, os comentários na imprensa estrangeira contrastam com comentários brasileiros muitas vezes positivos e mesmo entusiastas. Esse fato indica diferenças não só quanto a qualidades de vida, expectativas quanto a acomodações, instalações sanitárias, higiene e alimentação, mas sim também quanto a concepções que se manifestam em construções.


O termo "vila" não desperta as mesmas associações e expectativas de vida comunitária do conceito de "aldeia" de outros idiomas, em particular do alemão ("Dorf"). No Brasil, o termo vila pode ser empregado indistintamente como denominação de bairro. O conceito de aldeia olímpica tem sentidos mais amplos do que o de simples "vila de atletas", uma vez que indica não apenas uma área de acomodação de esportistas, mas um cunho olímpico do próprio projeto urbanístico e arquitetônico.


Trata-se assim de um complexo de questões que merecem e mesmo exigem a atenção nos estudos culturais. Para tal pode contribuir uma consideração histórica de soluções encontradas em outros países, analisando-se origens e transformações de concepções e realizações nas suas inserções em processos político-culturais.


O atual recrudescimento de movimentos renacionalizadores na Europa, que revitalizam conceitos e visões que há muito pareciam estar superados, torna oportuno dirigir olhares à Olimpiada de 1936, realizada em Berlim em plena era nacional-socialista.


Nesses jogos, a "aldeia olímpica" recebeu particular atenção e desempenhou papel relevante na estrategia da preparação e realização das competições. A sua implantação foi atentamente planejada sob critérios político-culturais da visão do mundo e do homem do Nacional-Socialismo no sentido de fazer com que os esportistas levassem a melhor imagem possível do país, servindo, assim, à Propaganda.


A camaradagem entre atletas - de competidores a lutadores


Na consideração da aldeia olímpica de Berlim, de 1936, deve-se lembrar que a experiência dos participantes alemães na Olimpíada em Los Angeles, em 1932. Como crônica publicada na época documenta, os esportistas admiraram a aldeia olímpica de Los Angeles:


"O mundo passou por épocas difíceis e ainda o passa. Apesar disso, a Olympia foi um sucesso sob todos os aspectos. Mais de um milhão e meio de pessoas presenciaram os jogos e 10.000 estrangeiros vieram ao país. Durante semanas, na aldeia olímpica nos arredores, conviveram amigavelmente 1500 jovens de todos os continentes, raças e povos. Ninguém tinha outro teto sobre si, ninguém tinha outra coberta na sua cama, outra cadeira na sua câmara, todos eram camaradas. Ali houve uma fantástica liga de povos, ali se uniram 40 bandeiras em amizade exemplar, ali os competidores, cada um disposto a tornar tão difícil quanto possível a vitória do outro, estabeleceram laços de camaradagem sincera e que se espera ser duradoura." (Olympia 1932, Altona-Bahrenfeld 1932, 5)


Esse relato revela o significado da camaradagem entre aqueles que competem e que procuram "fazer tão amarga quanto possível a vitória dos outros", uma concepção que, passando dos EUA à Alemanha, adquiriu outros acentos quanto a sentidos: a de relações entre concorrentes e competidores na acepção americana a de "lutadores" ou "combatentes" ("Kämpfer") segundo conceitos e visões do mundo e do homem do regime nacionalsocialista implantado em 1933.


A Aldeia Olímpica de Döberitz segundo Durch alle Welt recebido no Brasil


Vendo como um desafio suplantar em excelência a Olímpiada de Los Angeles, as autoridades alemãs deram particular atenção à aldeia olímpica a ser criada, agora sob critérios nacionais e "povísticos" da Weltanschauung do partido. Concebeu-se a criação de uma unidade urbana, de uma "cidade", na qual, como nas cidades, também vigorassem normas quanto a direitos e deveres, lei e ordem. (Durch alle Welt 28, Julho 1936, Berlin-Schöneberg, 11)


Nessa fase do planejamento, levantou-se a questão do local onde deveria ser instalada a aldeia olímpica assim concebida. Este deveria ser localizado em região da qual se pudesse alcançar facilmente o campo de esportes, de todo modo em área a oeste de Berlim.


A escolha caiu em Döberitz, uma área de antigo uso para exercícios militares, característica da região na sua paisagem, hoje parque natural-ecológico pela sua vegetação (Döberitzer Heide.


Desde o século XVII tinha sido essa área utilizada para o treinamento militar e manobras. Sob o Imperador Guilherme II, o terreno passou a ser sistematicamente utilizado como área de exercício de tropas. Antes da Primeira Guerra, abriu-se a "rua do exército" ligando a área ao palácio de Berlim.


O fato de ser um terreno que passaria da guerra ao esporte assumiu sentidos simbólicos no planejamento: um chão arenoso, que havia sido pisado por soldados suando "sangue e água", ou seja em terra embebida de sangue, devia ocorrer uma transformação quase que mágica, quase que em conto de fadas. Ali devia criar-se uma sinfonia de floresta, água, prados e casinhas recôndidas, puras na sua mais extrema limpeza, caiadas de branco, cuja brancura de higiene e pureza resplandecia entre o verde-amarelado e pálido das bétulas com os seus troncos brancos (Birken).


A antiga aldeia já existente quase que não podia mais ser reconhecida após os melhoramentos e as construções.



O plano, considerado como genial, cuja realização exigiu o trabalho árduo de trabalhadores, levou a um resultado decantado na revista Durch alle Welt como obra maravilhosa, que chamava o interesse de todo o mundo. (op.cit.)


A aldeia tornou-se foco de atenção internacional, pois ali moraram atletas de 54 nações. Embora de início apenas tinha sido anunciada a vinda de 2300 participantes, a aldeia pôde, por fim, hospedar os 4700 esportistas que formaram a "comunidade olímpica".


Ministério da Guerra e o papel de companhias de navegação


O aumento de número de participantes a serem abrigados despertou receios quanto à boa realização dos intentos. A solução dos problemas foi possibilitada pelo fato do Ministério de Guerra do Reich assumir a direção geral e as companhias de navegação do Lloyd norte-alemão colocar à disposição o pessoal dos navios Europa e Bremen que, com a sua grande experiência no trato de passageiros de todas as nações, tomou a si serviços e a assistência dos atletas.


A aldeia olímpica teve assim na sua organização, disciplina e ordem um caráter militar, na sua vida de dia-a-dia o de cruzeiros.


O exército colocou à disposição 210 ônibus para o transporte nos principais dias de "lutas" (Hauptkampftagen) no trajeto de 14 quilômetros até o campo de esportes.


Oficiais condecorados tiveram o encargo de cumprir todos desejos dos participantes, garantindo um desenrolar disciplinado e ordeiro. Disciplina e ordem deviam oferecer aos "combatentes" todas as condições para que não tivessem outra preocupação que perturbasse a absoluta concentração para os embates.


Estes. livres de preocupações e problemas de mente e de corpo, poderiam assim dar o melhor de si para as suas nações. A disciplina e a ordem possibilitadas pela organização militar e pela eficiência solícita da prática de cruzeiros surgiam como pressupostos para o preparo à "luta" nos jogos. A alegria devia marcar o trabalho solícito no tratamento dos atletas, correspondendo à convicção da força que desperta uma atitude alegre.


A música no portal da aldeia olímpica e a radiocomunicação


À frente do portão de entrada da aldeia, localizada de forma quase que escondida em vale, dois oficiais alemães de grande estatura - de mais de dois metros -, juntamente com um americano, de dois metros e sessenta de altura (!) - formaram uma guarda de honra.


Sobre êles, um jogo de sinos do campanário marcava as horas, alternando com o Hino Olímpico composto por Richard Strauss (1864-1949) e com trechos iniciais de melodias do "Reich mir die Hand zum Bunde" e "Ich hab mich ergeben".


No complexo do portão de entrada, instalou-se a sede de comando, com oficiais que dominavam quatro idiomas e tradutores que mantinham-se constantemente em ligação telefônica com todos os países, transmitindo notícias e comunicações dos atletas. Assim, o vencedor japonês, logo após a sua vitória, pôde contatar a sua tia no Extremo Oriente, informando-a da vitória, um fato que representava o progresso da técnica.


As construções da aldeia olímpica e a concepção de Heimat


No fundo da aldeia, levantou-se o mais representativo edifício o conjunto, o prédio da economia, situado numa área elevada, criada artificialmente como colina.


O seu estilo foi celebrado como sendo ousado nas suas formas arquitetônicas sentidas como aliciantes e que lembravam um nobre hotel.




Dos seus dois lados, separadas por amplas áreas gramadas, implantaram-se as ruas da aldeia, com casas que que traziam armas ou emblemas de uma região ou de uma cidade da Alemanha.



Essas casas seriam o Heimat por semanas para os atletas, ou seja, o local onde se sentiriam "em casa", aconchegados em ambiente hospitaleiro. Através dos símbolos e nomes, toda a Alemanha encontrava-se representada nas construções, e em cada casa havia uma sala de estar, com muita luz e arejada, ornamentada com quadros e fotografias de cidades e da  paisagem da respectiva região. O atleta era assim recebido simbolicamente por uma região alemã, e esta, de forma hospitaleira, procurava vir de encontro aos costumes da sua terra, dando-lhe a sensação de estar em casa entre aqueles que o hospedavam.


Procurou-se, na mobília dos quartos, manter-se a simplicidade e o aconhecgo da vida tradicional de aldeia. Com duas camas, separadas por mesa com utensílios para a escrita de correspondência e pequenos bancos a seus pés, além de dois armários, a característica alemã da decoração era sobretudo criada através do tecido das cortinas e cobertas.


Assim, a casa Tannenberg tinha sido decorada com uma representação do monumento de Tannenberg, a cidade de Ulm com um panorama da cidade. Tendo a sua estadia marcada por essas ilustrações, o atleta podia levar para o seu país uma impressão das características e da "essência" das localidades, incentivando-os a ainda melhor conhecê-las.


Procurou-se de todos os modos vir de encontro aos desejos dos hóspedes, para que não sentissem falta daquilo a que estavam acostumados. Assim, construiu-se
uma sauna para que os desportistas finlandêses pudessem recuperar forças segundo o seu costume e tradição. Esta era alcançada atravessando-se uma romântica ponte de madeira sobre um rio criado artificialmente, ladeado por bétulas de mais de 160 anos e que foram para ali transplantadas na urbanização da área.


No edifício da economia, tal como um "nobre hotel", procurava-se vir de encontro aos desejos dos participantes das 54 nações quanto à alimentação. Cada nação queria ter a sua comida nacional, a fim de que seus esportistas pudessem dar o melhor de si. Os argentinos, por exemplo, exigiam comidas com muita carne, os japonêses e chineses arroz, os italianos, pratos de massas. 


Quanto à alimentação a ser servida, porém, valia a decisão dos respectivos treinadores, tanto quanto à quantidade, como àquilo que devia e podia ser consumido: não seria favorável, por exemplo, que um boxeador ingerisse poucas horas antes da luta bifes com contorno pesado.


Como participantes das diferentes nações foram hospedados em casas que representavam regiões alemãs, estas passaram também a ter uma imagem nacional. Percorrendo a aldeia, o visitante podia entrever, entre as árvores, casas dos ingleses, dos franceses, dos italianos e de outros países. Também na disposição das nações, os organizadores tiveram o cuidado de observar susceptibilidades, procurando criar situações de vizinhança tão amenas quanto possíveis.


Construiram-se áreas cobertas de esportes, de ginástica e de natação, separadas entre si por campos de treinamento e exercícios. Assim como no campo das competições, tomou-se cuidado que não houvesse uma sequência mecânica de áreas, mas sim que cada esfera esportiva tivesse o seu espaço próprio, separado das demais por áreas verdes e aprazíveis.


Esses espaços para treinamentos, porém, não foram suficientes, de modo que todas as áreas esportivas de Berlim tiveram que ser requisitadas.



De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“ "Vila dos Atletas" e a concepção de "aldeia olímpica" nas suas dimensões político-culturais Lembrando a aldeia de Döberitz da Olímpia de 1936 na Alemanha nacionalsocialista“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 163/13 (2016:05). http://revista.brasil-europa.eu/163/Aldeia_olimpica_nacionalsocialista.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne





 





Berlim 2013.Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

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