1866: L'anno della Carta de A. Carlos Gomes

Revista

BRASIL-EUROPA 163

Correspondência Euro-Brasileira©

 

N° 163/3 (2016:5)




L'anno della Carta de A. Carlos Gomes

150 anos da introdução do corso forzoso na crise econômica do reino italiano da era liberal

o financiamento de guerras nacionais
encenado com notas cantantes


150 anos de Se sa minga, Rivista di 1866 de Antonio Scalvini (1835-1881) e A. Carlos Gomes (1836-1896)

 

A atualidade de uma consideração da peça L'anno della Carta de A. Carlos Gomes, parte da Rivista de 1866 "Se sa minga" de Antonio Scalvini, representada há 150 anos em Milão, (Veja) explica-se pelo papel desempenhado por questões econômicas, comerciais, financeiras e monetárias nos movimentos políticos e populistas do presente que defendem valores e interesses nacionais em crítica a instituições e procedimentos da "Europa de Bruxelas".

Alguns desses movimentos tiveram a sua origem na crítica ao euro e o retorno a moedas nacionais tem sido sempre discutido quando de crises econômicas em países europeus. Teria sido a adoção do euro para países como a Grécia propícia para a sua economia? Os alemães deveriam lamentar-se por terem trocado pelo euro o marco, moeda que entrou na história como forte e estável?

Sobretudo o Brexit, o referendo que decidiu a saída da Grã-Bretanha da EU, desperta preocupações quanto às suas consequências dessa independização nacional para a economia e o comércio.

Esses e outros vínculos com a economia e o comércio de movimentos renacionalizadores do presente trazem à tona anelos e concepções que pareciam já estar ultrapassados. Esse fato aguça o interesse em revelar e analisar paralelos históricos em outras épocas que foram também marcadas por movimentos nacionais e de independência.

É nesse contexto que se revela como de particular interesse para os estudos euro-brasileiros constatar que foi um brasileiro - o compositor A. Carlos Gomes - o nome que mais se destaca quando se considera registros culturais de impactos da política financeira na história da formação de estados nacionais no século XIX, mais precisamente no reino da Itália da era liberal.

A crise econômica da Europa envolvida em movimentos de unificação e formação de estados nacionais tinha como paralelo o período de dificuldades econômicas do Brasil envolvido na guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai entre 1864 e 1870.

Carlos Gomes, tratando musicalmente o ano de 1866 como que determinado por medidas financeiras, refere-se a uma situação de escuras nuvens que turvavam a atmosfera no início de seus estudos no Conservatório de Milão e que correspondiam àquelas do Brasil.

Crise econômica e comercial e dificuldades de câmbio vivenciadas por Carlos Gomes

Carlos Gomes chegou a Milão em época marcada elas grandes dificuldades econômicas, da agricultura e do comércio do govêrno do reino nacional da Itália que, com a unificação, necessitava também unificar normas comerciais e alfandegárias, taxas e câmbios díspares resultantes da diversidade dos antigos estados.

A difícil situação econômica do Reino da Itália em meados da década de 60 e as medidas tomadas para superá-la foram sentidas na vida quotidiana e de trabalho da população e tiveram consequências para a vida cultural.

Essas dificuldades foram vivenciadas por A. Carlos Gomes como estudante em Milão, que passou por temores e dificuldades materiais e, experimentando a crise no comércio e nas instituições, viu a Itália dos primeiros anos do reino nacional como estando em decadência.

Em cartas dirigida a seu mentor Francisco Manoel da Silva (1795-1865) no Rio de Janeiro, em 1865, lamentava a crise do comércio e das artes, mencionando as dificuldades que tinha para retirar o dinheiro enviado do Brasil, para além das elevadas taxas que tinha de pagar para obtê-lo.

Para contornar essa situação, sugeria que a remessa de dinheiro não fosse dirigida diretadamente à Itália, mas sim que se processasse através de banqueiro na França.

A sua carta de 21 de agosto de 1865 termina com a frase:

"Tenho sofrido muito prejuiso no dinheiro que recebo de lá...é uma fatalidade; o nosso amigo Castellões lhe explicará esse negocio. (...)" (Luis Heitor Correa de Azevedo,"Carlos Gomes e Francisco Manoel: Correspondência Inédita 1864-1965", Revista Brasileira de Música, número especial, Rio de Janeiro 1936, 323 ss., 337).

A carta de Carlos Gomes à época da Convenzione di settembre - o Codice di Commercio

O ano de 1865 foi marcado pela implantação do Codice di Commercio do Reino da Italia unificada, o primeiro da nação e que remontava ao Código Comercial do Reino da Sardinha. Est foi extendido por todo o reino por decisão da Convenzione di settembre.

Nos últimios meses de 1865, a política financeira italia desenvolvida no quinquênio defrontava-se com graves problemas. As despesas do Estado tinham aumentado extraordinariamente, o patrimônio havia sido dilapidado com a venda de bens e das ferrovias, a produção encontrava-se em crise, incapaz que fora de superar a crise provocada pela supressão de medidas protecionistas e da concorrência estrangeira e tirar proveito da tendência liberal da política alfandegária.

Como L. H. Correa de Azevedo salienta, a derradeira carta de Carlos Gomes a Francisco Manoel, dee 22 de setembro de 1865, foi inteiramente dedicada às suas dificuldades pecuniárias.

"(...). Eu aqui em Milão recebo a pensão que me manda o Governo, tarde e as más horas! Não lhe fallo já do enorme desconto que desta vez soffri por que sei pelo nosso amigo Castellões que o cambio é fabulozo! Eu tenho somente a pedir-lhe de combinar com o nosso amigo Castellões a maneira de mandar-me esse denheiro por outro banqueiro que não seja Lignago, por que, este homem alem de não ser banqueiro, não gosa em Milão reputação alguma principalmente por que não é conhecido. Est ultima penção que Vce. me mandou a 23 de Julio, mesmo in Genova encontrei dificuldade em recebe-lo, sendo precizo que eu rogasse pelo amor de humanidade ao proprio Lignago para que aceitace a letra!...//

Para recebel-o, alem dos rogos, tive de soffrer novos descontos; e assim já vê meu amigo que eu não posso viver enquisilado por todos os lados!... Peço-lhe como amigo que procure fallar com o nosso amigo Castellões sobre esse importante assumpto.//

O Julio J. Nunes que chegou a Milão a poucos dias, foi testemunha da luta que eu tive com a praça commercial de Milão, e finalmente com o Sr. Lignago!... Prefiro que Vmce. me mande de hoje em diante esse dinheiro por algum banqueiro de Paris (que seja banqueiro), pois estou crto que em nem uma parte do mundo se rifiuta descontar uma letra contra um bom banqueiro conhecido.//

(...) Confeço-lhe que tenho medo de mudar-me para peor lugar.. por que, (eu öhe repito) que a Italia está em decadencia d'arte e de commercio; e assim todo o mais caminha para peor!...//

(...) Partecipo-lhe que estou no firme proposito de mudar-me de Milão no fim do mez de Novembro corrente; para isso é precizo que os intereces pecuniarios marchem regularmente. Espero alguma pequena soma de minha familia para ajudar-me a facilitar a viagem, pois da minha pensão não me sobra para viajar!. (...)" (op.cit. 337-338).

O Reino da Itália sob o risco da bancarrota financeira e as medidas de 1866

O desespero que se revela na carta de Carlos Gomes é um expressivo testemunho da situação financeira que se agravava no reino nacional na sua política liberal e que o colocava, no início de 1866, na iminência da falência.

O Ministro das Finanças Antonio Scialoja (1817-1877), que assumiu o seu posto em 31 de dezembro de 1865, dedicou-se ao trabalho de reordenação tributária e de medidas econômicas de exceção perante as previstas despesas que causariam a entrada da Itália em estado de guerra.

Um plano financeiro baseado num imposto geral a serviço da racionalização do complexo de tributos diretos e indiretos não pôde ser aprovado, mas implantado foi o "corso forzoso" a 1° de maio de 1866.

Segundo este, as notas da Banca Nazionale, declaradas por lei como sendo inconvertíveis, substituiam o ouro representado pela moeda. O Estado encontrava-se assim em condições de enfrentar o aumento das despesas com o aumento da circulação de papel-moeda, separando-a das reservas de ouro.

Essa introdução levava à inflação, alterando as relações entre o valor real e o valor nominal do ouro e da moeda, com consequências negativas sobre os preços e salários, possibilitando suprir as necessidades do erario e de impedir o afluxo de capitais e de mercadorias estrangeiras que, com a inconvertibilidade das notas, encontravam na Itália um mercado pouco lucrativo. Com isso, a nascente indústria italiana, sobretudo a manufatureira, não precisava competir com a estrangeira.

Obrigado a superar o déficit nos cofres públicos, o govêrno passou a financiar os empreendimentos emitindo dinheiro para além das suas reservas em metal. Para além da desvalorização da moeda, a vigência do sistema impôs uma nacionalização das transações e os pagamentos, uma vez que estes apenas podiam apenas ser efetuados com a moeda nacional no território do país.

Os intentos de reintegração de áreas que ainda se encontravam sob a égide austro-húngara relacionava-se assim estreitamente com questões monetárias e econômicas em geral.

O govêrno italiano implantou esse sistema da "carta moneta inconvertibile" pouco antes do início da terceira guerra da independência contra a soberania austro-húngara em territórios do Vêneto, em 1866.

No dia 1 de maio, segundo decreto real, a Banca Nazionale del Regno d'Italia via-se obrigada, a partir do dia seguinte, a efetuar o pagamento em dinheiro à vista de suas notas.

Passando em revista o ano de 1866 - o "anno della carta"

A Rivista di 1866, o primeiro grande sucesso do brasileiro em Milão, que o tornou conhecido e que abriu-lhe portas para a sua carreira, adquire grande relevância por passar em revista um ano que foi de grande significado na história econômica do reino da Itália recentemente instaurado. Uma das partes que constituem a Rivista designa o ano de 1866 como "L'anno della carta". A obra foi publicada pela editora Ettore Ricordi e divulgada mais amplamente através das suas edições para piano e para canto com acompanhamento ao piano.

Se as ocorrências bélicas determinam grande parte da Rivista do ano, esta dirige a atenção, de início, às medidas que, tomadas pelo govêrno perante a situação crítica econômico-comercial que se agravara e que imediatamente antecederam à guerra.

É esse ano definido como "anno della carta" que foi a seguir marcado por atos políticos e ações militares de graves consequências, da declaração de guerra à Áustria-Hungria em apoio aos revolucionários nacionais que lutavam pela posse de regiões ainda sob a sua égide do Vêneto.

A Rivista di 1866 considerou nas suas diferentes partes os principais acontecimentos do ano com meios artísticos músico-teatrais que adquirem hoje grande significado para estudos culturais voltados ao popular, à popularização e mesmo ao populismo: os autores de Se sa minga olharam e ouviram a voz popular, explicação principal do grande sucesso da revista.

Numa primeira aproximação, o termo "carta" poderia fazer supor uma referência à carta constitucional outorgada do Reino da Itália, o Statuto Albertino. Essa suposição, porém, é infundada como o próprio texto posto em música pelo compositor brasileiro indica. Somente reconhecendo o significado real do texto é que se pode analisar a composição e da sua função no contexto geral da Rivista di 1866.

O termo "carta" refere-se à "carta moneta inconvertibile"  ou seja, ao sistema monetario também chamado de corso forzoso, no qual a moeda não é convertível no seu equivalente em ouro e prata.

O tratamento cênico-musical de L'anno della carta de Carlos Gomes

Carlos Gomes elaborou musicalmente o anno della Carta para um coro de jovens. O compositor demonstra já nesta peça o seu interesse pelo efeito cênico-musical de canto de meninos e rapazes que seria repetido alguns anos depois na sua Rivista Nella Luna, assim como em outras obras em que manifestou o seu fascínio pela infância e juventude.

Na cena, esses ragazzi surgiam marchando, representando notas de banco, uma entrada marcial mas em Allegretto. Em piano e staccato, a introdução da composição refere-se pelo que tudo indica à introdução das cédulas na economia.

A leveza e graça da cena é salientada no acompanhamento em pianíssimo e staccato do acompanhamento do canto após a expressiva introdução. Os jovens, cantando, lembravam que ainda que as notas eram novas, pois recentemente introduzidas, mas valiam mais do que eram ("Siam biglietti assi piccini, assi piccini, Ma che valgono, che valgono quattrini"),


No decorrer da peça, o compositor trata musicalmente a substituição da moeda metálica convertível em ouro pela cédula (I posti han detto in coro Che si fu l'età dell'oro) através do uso de metalofones (campanelli), na orquestra da Rivista, provavelmente carrilhões ou mesmo xilofones.

Imitados na redução para piano com oitavas ou notas em região aguda, essas referências descritivas acentuam o caráter gracioso da composição, fazendo de L'anno della carta uma das mais expressivas obras cênico-musicais infanto-juvenís.




Contrastando com a suavidade e delicadeza explicáveis pela juventude das cédulas, a composição parece acentuar por fim a sua implantação e vigência, terminando em fortíssimo.



De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.)."L'anno della Carta de A. Carlos Gomes. 150 anos da introdução do corso forzoso na crise econômica do reino italiano da era liberal;o financiamento de guerras nacionais
encenado com notas cantantes “
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 163/3 (2016:05). http://revista.brasil-europa.eu/163/Anno_della_carta.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne





 




Riva di Garda 2016. Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

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