Custozza e A. Carlos Gomes

Revista

BRASIL-EUROPA 163

Correspondência Euro-Brasileira©

 

N° 163/4 (2016:5)

Verona. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright


Custozza - Marcha e Coro Fúnebre de A. Carlos Gomes (1836-1896)

Um memorial cênico-musical dos caídos na terceira guerra de independência italiana
contra a soberania áustro-húngara no Vêneto


150 anos de Se sa minga, Rivista di 1866 de Antonio Scalvini (1835-1881) e A. Carlos Gomes

 
Verona. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright
Uma das mais significativas composições de A. Carlos Gomes para os estudos histórico-culturais relativos a seu envolvimento no movimento nacional italiano é a marcha e coro fúnebre Custozza, parte da revista Se Sa Minga. (Veja)

Considerar com maior atenção essa composição adquire relevância na atualidade, marcada que é pelo recrudescimento de anelos nacionais e nacionalistas que pareciam já pertencer a um passado findo e que favorece o estudo de contextos históricos da época de lutas pela criação de estados nacionais no seculo XIX.

É essa atenção ao contexto histórico-político em que surgiu Se Sa Minga que revela o significado desta obra de Carlos Gomes. Embora sempre se reconhecendo que foi a popularidade por ela alcançada o ponto de partida da projeção de seu nome e um pressuposto para ter-se-lhe aberto o Teatro Alla Scala e possibilitado o sucesso de Il Guarany, Se Sa Minga - e Nella Luna (Veja) - teem sido consideradas como obras menores, de circunstâncias, sem maior interesse artístico.

É assim somente em perspectiva musicológica orientada segundo processos culturais que se revela o significado de Se Sa Minga e, em particular, de Custozza.

Como o nome indica, Carlos Gomes refere-se, nessa composição à localidade de Custozza. Essa localidade, nome hoje lembrado internacionalmente sobretudo pelos vinhos locais,  faz parte de Sommacampagna, na Província Verona no Vêneto, situando-se na planície padana, a ca. de 12 quilômetros a oeste da cidade de Verona, ao sul do lago de Garda. Custozza foi local de grandes batalhas na história das guerras nacionais de independência da Itália, a de 25 de julho de 1848 e a de 24 de junho de 1866.

Para considerar a obra no contexto histórico-geográfico a que se refere, procedeu-se, após estudos euro-brasileiros desenvolvidos em Verona, em junho de 2016, (Veja) a uma vista à região correspondente do lago de Garda, em agosto de 2016.

Verona. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright

Museus, memoriais e ossários das batalhas do Risorgimento e o percurso de Custozza

A região ondulada de colinas entre o lago de Garda e os planos de Mantova, procurada pela sua beleza natural, pelas suas aldeias idílicas, cascatas e vinhos, lembra, em muitos de seus memoriais, as lutas italianas pela independência de regiões que se encontrava ainda sob a égide austro-húngara e os seus muitos mortos.

Não apenas sucessos pertencem à memória dessa região, mas sim também e sobretudo derrotas e perda de grande número de vidas humanas. Muitos documentos são conservados no museu do Risorgimento, próximo de Villafranca. Entre os vários memoriais, destaca-se o Ossarium de Custozza. Esse ossário, em forma de obelisco, mantém a recordação dos muitos caídos em 4600 esqueletos conservados no seu subterrâneo.

Os memoriais e os locais históricos dos embates podem ser percorridos em caminhos de peregrinação voltados à meditação histórica e ao destino dos mortos. 

Entre esses itinerários, destaca-se o do Cammina Custoza e que, combinando natureza e cultura, atravessa campos de cultivo e arboredos, lembrando a antiga presença do homem nessa região desde tempos imemoriais através de restos arqueológicos, assim como os acontecimentos históricos do século XIX.

Um dos fragmentos - provavelmente uma lápide romana - foi recolocada junto ao monumento dos caídos. O percurso parte da praça da igreja de Custoza, seguindo em direção ao cemitério e, a seguir, ao vale dos moinhos, no rio Tione, ampliando-se com a moldura as elevações,  entre elas aquela do Ossarium.

Também outros acontecimentos políticos ocorridos na região são lembrados no percurso. Entre êles, a Villa Gandini-Moreni em Villafranca, onde foi assinada tregua de 1859 dos imperadores da França e da Áustria, além de monumento que lembra a resistência de um regimento de infantaria no decorrer da terceira guerra da Independência. Em Vallegio, destaca-se o quartel do rei Carlo Alberto (1798-1849) em 1849, e de Napoleão III (1808-1873) em 1859; em Solferino, o museu do Risorgimento e um Ossarium. Um Ossarium e um museu das batalhas encontra-se tambem em San Martino.

A batalha de Custozza na primeira guerra da independência italiana de 1848

Brescia. Foto A.A.Bispo 2016. Ciopyright
Na primeira guerra da Independência, as tropas unidas do reino da Sardinha-Piemonte e Lombardo-Vêneto foram vencidas pelos austríacos em batalhas na região, da qual Custoza foi  decisiva.

O movimento revolucionário nacional italiano, que em correspondência a revoltas e movimentos em outras partes da Europa marcaram o ano de 1848, teve aqui uma de suas mais humilhantes derrotas. Essa derrota atingiu sobretudo o rei Carlo Alberto Amadeo de Sardinha-Piemonte que declarara a guerra à Áustria em apoio aos revolucionários em 23 de março de 1848, no qual foi influenciado por Camillo Benso von Cavour (1810-1861).

Após ter vencido algumas batalhas, viu as suas tropas derrotadas em Custozza, assinando uma trégua em 9 de agosto de 1848. No ano seguinte, em 23 de março, as tropas, sob o General Alfonso La Marmora (1804-1878) foram novamente vencido pelos austríacos em Novara.

Salo. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright

Após essa derrota de Novara, Carlo Alberto abdicou a favor de seu filho mais velho, Vittorio Emanuele II (1829-1878) e retirou-se em exílio a Portugal, onde faleceu em mosteiro no Porto. A vida e o destino de Carlo Alberto marcaram assim a história nacional da Itália e estabelece uma ponte entre as lutas de independência italiana, sobretudo a batalha de Custoza, e Portugal.

O seu nome e o seu destino marcaram também a consciência histórica de um anelo nacional relacionado com reformas de um liberalismo moderado. Apesar de ambivalências na sua orientação política, dera-se à sua época medidas de significado para o movimento da reforma liberal, sobretudo a da carta inspirada no Code Napoléon para monarquia constitucional, além de ficar o seu nome ligado a medidas de apoio às ciências e à arte.

Essa humilhação atingiu também o seu filho e sucessor, o rei Vittorio Emanuele II (1829-1878) que comandou diferentes unidades nas batalhas, entre elas também em Custozza. Assumindo o título de Rei da Itália, em 1861, a dolorosa experiência de Custozza marcou a consciência histórica da monarquia italiana.


As forças austríacas, vencedoras, foram lideradas pelo comandante-geral Marechal Johann Josef Wenzel Duque de Radetzky (1766-1858), nobre boêmio que, pelos seus muitos feitos de guerra, entrou na história militar da Áustria-Hungria como um de seus maiores vultos.

A memória da batalha de Custozza na Áustria vencedora: a Marcha Radetzky

Compreensivelmente, a batalha de Custozza e o seu comandante foram celebrados e são rememorados ainda hoje na Áustria em outro sentido e com outro conteúdo emocional do que os tristes memoriais italianos.

A memória da batalha de Custozza é mantida não apenas na designação de logradouros públicos e memoriais, mas sobretudo na música. A "Marcha Radetzky" de Johann Strauss (Pai) (1804-1849 ) , dedicada ao famoso militar, lembra a vitória de Custozza e surge quase que como um emblema sonoro da Áustria, competindo em popularidade com a valsa "Danúbio Azul" (An der schönen blauen Donau) de seu filho Johann Strauss (1825-1899).

Segundo a tradição, soldados retornados a Viena após a vitória de Custozza, cantaram na recepção de Radetzky na capital do império uma canção popular tradicional de Viena, derivada de antiga dança em compasso ternário (Alter Tanz aus Wien) e ligada ao nome de popular cantora (Tinerl-Lied). O compositor, tendo ouvido e ficado impressionado com essa manifestação, utilizou-se da meloda, transformando-a em marcha, apresentando-a já no dia 31 de
agosto de 1848.

A Marcha Radetzky, embora tendo entrado no repertório militar e alcançado popularidade internacional, pereniza - ainda que de forma nem sempre percebida conscientemente pelos ouvintes - a vitória de Custozza e, com ela,  a histórica presença austríáca no norte da Itália, então confirmada de forma tão dolorosa para os italianos, além de, na sua perspectiva, da vitória do conservativismo contra anelos liberais. Significativamente, essa marcha encerra o tradicional concerto festivo de Ano Novo dos Filarmônicos de Viena.


A batalha de Custozza em 1866

O reino unificado da Itália, em 1861, ganhou a Lombardia na batalha de Solferino e na trégua de Villafranca de 1859.

Os anelos de integração do Vêneto e do Trentino permaneciam porém vivos, o que levou a nova guerra de independência italiana de regiões que se encontravam sob a égide áustro-húngara.

Em Custoza, os austríacos alcançaram novamente a vitória; os italianos, menos preparados quanto a armamento e técnica, também foram derrotadas na batalha marítima de Lissa.

Essas derrotas foram apenas interrompidas pelo sucesso das lutas sob G. Garibaldi (1807-1882), em 1866, na localidade de Bezzecca, tambem na região do lago de Garda.


Apesar das derrotas, a Itália alcançaria o seu intento de recuperação do Vêneto, uma vez que estava aliada com a Prússia que, por fim, venceu a Áustria na batalha de Königgrätz. (Veja) À batalha de Custozza seguiram-se as de Hühnerwasser, Pool, Nachod, Trautenau, Langensalza, Skalitz, Münchengrätz, Gitschin, Königinhof, Schweinschädel, Königgrätz, Dermbach, Kissingen, Mainfeld, Frohnhofen, Aschaffenburg, Lissa, Bezzecca, Blumenau, Hundheim, Tauberbischofsheim, Werbach, Helmstadt, Gerchsheim, Uettingen/Rößsbrunn.

Custoza: Marcia e Coro Funebree de Antonio Carlos Gomes

A obra de Carlos Gomes lembra a segunda batalha de Custoza, aquela de 24 de junho de 1866. Assim como esta, deve ser considerada no quadro geral das relações entre a terceira guerra de independência italiana com a guerra alemã ou guerra da Prússia contra a Áustria.

O compositor brasileiro a compôs como parte de Se Sa Minga, Revista do ano de 1866, com texto de Antonio Scalvini e dedicada a seu professor no Conservatório de Milão, Lauro Rossi ((1812-1885).

Trata-se de uma marcha cujo caráter fúnebre é estabelecido pelo baixo, inspirado em cantochãõ, com uma linha melódica constituída por motivos repetidos e com uma acentuação que, segundo o compositor, deveria ser executada como um gemido e em pianíssimo. A ela sobrepõe-se a voz dos violinos, em surdina, uma linha melódica que leva a uma longa escala descendente. O coro fúnebre expressa a honra que deve ser prestada àqueles que combateram.



De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“Custozza - Marcha e Coro Fúnebre de A. Carlos Gomes (1836-1896). Um memorial cênico-musical dos caídos na terceira guerra de independência italiana contra a soberania áustro-húngara no Vêneto“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 163/4 (2016:05). http://revista.brasil-europa.eu/163/Custozza.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne





 







Verona 2016. No texto: Brescia e Salò 2016. Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

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