Il Fucile ad ago de Carlos Gomes

Revista

BRASIL-EUROPA 163

Correspondência Euro-Brasileira©

 

N° 163/5 (2016:5)




Il Fucile ad ago de Carlos Gomes (1836-1896)

O fusil prussiano na vitória contra a Áustria em Königgrätz de 1866

decisiva para o Vêneto



150 anos de Se sa minga, Rivista di 1866 de Antonio Scalvini (1835-1881) e A. Carlos Gomes
Após cinco anos de estudos euro-brasileiros em Gitschin/Jicin e em Königgratz

 
Os estudos que veem sendo desenvolvidos motivados pelo recrudescimento do nacional e do nacionalismo na atualidade trazem à consciência desenvolvimentos similares do passado e favorecem paralelos entre épocas einterações entre processos político-culturais.


Esses estudos demonstram a necessidade de considerações mais diferenciadas e em contextos mais abrangentes de movimentos marcados por concepções nacionais no decorrer do tempo, em particular entre aqueles anteriores à Primeira Guerra e aqueles de entre-Guerras.


No caso exemplar de Antonio Carlos Gomes, tem-se discutido a inadequação do tratar da questão do nacional na sua obra a partir de concepções político-culturais nacionalistas muito posteriores à sua morte e a partir de uma perspectiva exclusivamente brasileira. (Veja)


O nacional em Carlos Gomes não pode continuar a ser analisado apenas a partir de uma ótica brasileira, procurando-se na sua obra traços de folclore ou da tradição "modinheira" do Brasil, mas no contexto mais amplo do nacional em dimensões globais de um século que foi marcado pela formação de estados nacionais na Europa. 


Projetar visões de décadas marcadas pelo nacionalismo de entre-guerras e que precederam a Segunda Guerra na apreciação de desenvolvimentos do século XIX, tanto na Europa como no Brasil, contraria procedimentos adequados na consideração do decorrer temporal de processos. Necessárias análises de antecedentes e mesmo pressupostos de decorrências futuras não justificam interpretações do passado a partir de critérios posteriores à Primeira Guerra, o marco tenebroso do fim da antiga ordem européia.


Paradoxalmente, é justamente a consideração não-nacional ou nacionalista sob a perspectiva brasileira de Carlos Gomes que permite reconhecer a importância do nacional na sua obra, compreendido este, - também paradoxalmente -, nas suas dimensões internacionais.


É esse procedimento que traz à consciência a inscrição do compositor brasileiro na história político-cultural marcada por anelos nacionais do século XIX, a intensidade com que sentiu o pulso do tempo de sua época, com que observou desenvolvimentos políticos-culturais do contexto em que viveu e neles participou, e assim, a sua extraordinária importância para os estudos de processos culturais em geral.


Carlos Gomes e o processo de unificação nacional da Itália: o Vêneto


Vem-se considerando, sob diversos aspectos, como Carlos Gomes inseriu-se no movimento nacional italiano sob o signo do Risorgimento e da unificação da Itália, marcado sobretudo pelas lutas da independência de territórios sob a égide austro-húngara que intensificou-se no irredentismo e, posteriormente, nas lutas pela posse de territórios na Primeira Guerra.


Também essa inserção de Carlos Gomes no movimento nacional italiano, porém, traz o risco de ser considerada sob uma perspectiva demasiadamente estreita. A atenção tem-se concentrado sobretudo em Milão e nas regiões vizinhas dos lagos lombardos, em particular no lago de Como, por ali ter sido local de estadias do compositor e onde mandou levantar a sua Villa Brasilia. (Veja)


Essa focalização das atenções à parte ocidental da Península itálica marca os estudos ítalo-brasileiros, fato compreensível também pelo fato de ter sido a Imperatriz do Brasil, Dna. Teresa Cristina (1822-1889), originária de Nápoles, o que levou a estreitamento de laços com o meio napolitano e processos itálicos com êle particularmente relacionados. (Veja)


Essa concentração da atenção à Itália ocidental, porém, não é suficiente, obscurecendo a necessidade de consideração de regiões do leste, voltadas ao Mar Adriático nos estudos de relações Itália-Brasil.


Não se pode esquecer, sobretudo, que, à época da chegada de Carlos Gomes à Itália e de seus estudos em Milão, a atualidade política era marcada pela recuperação italiana do Vêneto.


Essa época fundamental para a vida de Carlos Gomes na Itália não pode ser considerada apenas a partir de uma fixação de atenções à Lombardia, mas sim contexto mais amplo de suas relações com a região da terra firme da irradiação de Veneza.


Estes elos da região da terra firme do Vêneto com a cidade da Laguna eram seculares, tendo as suas cidades pertencido no passado à República de Veneza, situando-se posteriormente de forma intermitente à Áustria.


Em 1797, com a derrota da Áustria na batalha contra as forças de Bonaparte em Austerlitz, Veneza passara em 1805 para o temporário reino da Itália, criado em dependência da França. (Veja)


Em 1815, porém, com o Congresso de Viena, que restaurou em grande parte a ordem política européia anterior às convulsões revolucionárias e imperiais francesas, Veneza passara novamente à Àustria no contexto do Reino Lombardo-Veneto.


É sob esse pano de fundo que deve ser considerada a atualidade de questões relativas ao Vêneto nos primeiros anos da estadia de Carlos Gomes em Milão e dos elos desde então estabelecidos do compositor com Veneza.


Esses elos mereceriam estudos mais aprofundados, uma vez que dizem respeito não apenas ao significado da recuperação do Vêneto para o movimento nacional italiano, mas sim também ao interesse pela história e tradições de Veneza e ao desenvolvimento da vida cultural regional que, sentida como decadente, procurava, após a superação da égide austríaca, recuperar a sua antiga grandeza.


Não se pode esquecer que, nos últimos anos de sua vida, Carlos Gomes almejou poder assumir um cargo de direção naquela cidade, o que, se tivesso ocorrido, provavelmente não o teria trazido a Belém para assumir a direção do conservatório da capital paraense. (Veja)


O contexto internacional europeu da integração de Veneza no reino nacional da Itália


Em 1866, com a terceira guerra da independência italiana, o Veneto passou finalmente a fazer parte da Itália. Essa recuperação deu-se indiretamente com a derrota da Áustria-Hungria pela Prússia, com a qual a Itália era aliada. Essa aliança dera-se sob a expectativa de recebimento do Vêneto no caso da vitória..


Com a derrota da Áustria na Paz de Viena, a região passou à França e, dela, à Itália. Do lado alemão, a vitória possibilitou a "solução pequeno-alemã" da unificação, ou seja, o dos vários países alemães sem a Áustria.


O alcance dessa importante conquista para o movimento nacional de unificação italiana deu-se assim através da participação em decisiva batalha do movimento nacional e de unificação alemã sob a liderança da Prússia.


À medida que Carlos Gomes vivenciou essa fase marcada pela euforia da recuperação do Veneto, participou indiretamente de sentimentos positivos do país aliado à Prússia e relacionados com o processo de unificação nacional alemã nas suas dissenções com a Áustria-Hungria. Assom, os movimentos nacionais da Itália e da Alemanha, tendo como inimigo comum o império austro-húngaro, interrelacionaram-se.


O compositor vivenciou anos que foram marcados por acontecimentos e desenvolvimentos que seriam decisivos para a constituição do Império alemão após Guerra com a França, preparando a fundação posterior do Império com a vitória sobre a França na Guerra Franco-Prussiana de 1870.


A recuperação italiana de Veneza exige assim a consideração do complexo político internacional, em particular interno alemão que levou Guerra Teuto-Austríaca - ou "Alemã-Alemã" e, assim, das relações entre a terceira guerra da independência italiana com o movimento de unificação alemã e a concorrência de liderança entre Berlim e Viena.


O reconhecimento dessas relações dirige a atenção a processos políticos nacionais da Europa central e do Norte.


Os movimentos nacionais de unificação alemã e a guerra da Prússia com a Áustria


Motivo imediato da Guerra deu-se nos territórios do Norte, de Schleswig e Holstein, que desde a Guerra entre a Alemanha e a Dinamarca estavam sob a égide comum da Áustria e da Prússia. Já há um ano antes da Guerra, em 1865, a Áustria limitara-se a Holstein (Convenção de Gastein). Sendo essa região ocupada pela Prússia, a Áustria mobilizou a armada da Liga (Deutscher Bund), dela então se retirando a Prússia, que declarou Guerra à Áustria.


A liga alemã fora criada em 1815 no Congresso de Viena e que reunia príncipes soberanos e cidades livres da Alemanha, com a inclusão do imperador da Áustria e os reis da Prússia, da Dinamarca e dos Países Baixos. A ela apenas pertenciam as partes da Áustria e da Prússia que anteriormente tinham feito parte do Sacro Império Romano Germânico. Ao rei da Dinamarca coube a responsabilidade pela região de Holstein e ao dos Países Baixos o Grão-Ducado do Luxemburgo.


Na constelação política da Guerra Alemã-Alemã, alinharam-se ao lado da Áustria a Baviera, Hannover, Saxônia, Württemberg, Baden e vários estados menores. Do lado da Prússia, os estados da região da Turíngia e do Norte alemão, além da Itália, que declarou guerra à Áustria em 20 de junho de 1866.


Na consideração da simpatia ou antipatia por países e situações em 1866 na Itália - vivenciada por Carlos Gomes - sentia-se assim, devido aos interesses pela recuperação de Veneza, amizade com a Prússia e os pequenos estados alemães que lutaram a seu lado, entre outros da Turíngia, enquanto que, entre os inimigos, encontravam-se a potência vizinha da Áustria-Hungria e os estados alemães mais próximos como a Baviera, Baden e Württemberg.


Singularmente, encontravam-se, entre aqueles aos quais a Itália se aliara, estados antes protestantes, entre os inimigos, de nações católicas, em primeiro lugar a Áustria-Hungria. Essa situação política merece atenção, pois abre perspectivas para análises mais diferenciadas das relações culturais alemã-italianas, em particular na música.


O desfecho da Guerra, com a derrota da Áustria e seus aliados, levou ao fim da ordem estabelecida dese o Congresso de Viena com a Liga Alemã, então dissolvida. A Prússia anexou não só o Schleswig-Holstein, como também Hannover, Kur-Hessen, Nassau e a cidade livre de Frankfurt, fundando a Liga Norte-Alemã, temporariamente também designada simplesmente como Liga Alemã. Através de acordos da Liga Norte-Alemã com a Baviera, Württemberg, Baden e Hessen, em 1870, previu-se a substituição do nome Liga Alemã para o de Império Alemão (Deutsches Reich), o que se concretizou em 1871.


A consideração das relações de A. Carlos Gomes com a Guerra que trouxe a recuperação de Veneza demonstra assim não só a inserção do compositor brasileiro no movimento nacional de unificação italiana, como também, em processos nacionais de unificação alemã sob a liderança da Prússia, antes norte-alemão, e assim antecedentes à fundação do Império Alemão.


A Guerra Alemã na Itália, na Boêmia e na Turíngia

Os combates entre a Prússia e a Áustria deram-se em diversas regiões da Europa. Em janeiro de 1866, deram-se lutas no norte da Itália e no Tirol do Sul. Intensas batalhas ocorreram no mês de junho, salientando-se aqui a de Custozza no dia 24 de Junho de 1866, a segunda nesta cidade próxima a Verona. (Veja)

Para além dessas lutas ocorridas em territórios de língua e cultura italianas, marcadas por derrotas e perdas de muitas vidas do lado italiano, intensas e por fim decisivas batalhas ocorreram longe da Itália, na Boêmia, na Turíngia, na Baviera, na Eslováquia ou Croácia. Várias delas deram-se também no mês de junho, entre outras em Podol, Nahod, Liebenau, Trautenau, Soor, Scalitz, Schweinschädel e Münchengrätz.

Particularmente importantes e decisivas para a vitória da Prússia foram as lutas em Gitschin/Jicin, e, a 3 de julho, em Königgratz (Sadowa, Maslowed, Chlum).

Outros combates tiveram lugar na Turíngia, em Langensalza, Dermbach, e, na atual Polonia, em Oswiecim/Auschwitz. Na atual Croácia com a batalha naval de Lissa, Vis, Blumenau, na Eslováquia -Lamac; na Baviera, lutou-se em Kissingen, Nudlingen, Frohnhofen, Laufach, Aschaffenburg, no Arquiducado de Baden em Hundheim, Tauberbischofsheim, Werbach e Impfingen, Gerchsheim, Bayreuth, Seybothenreuth.

A batalha decisiva da Guerra Alemã e que garantiu o papel da Prússia como nação de liderança, foi aquela das redondezas de Königgratz em julho de 1866. Em extensa área, os principais embates deram-se na colina Svib próxima de Maslowed e Chlum. Nela, lutaram mais de 400.000 soldados dos exércitos da Áustria e da Saxõnia contra o exército prussiano de outro.


Sobretudo a localidade de Sadowa, a 15 quilômentros de Königgrätz (Hradec Králové), entre a região montanhosa e os planos da Boêmia oriental entrou na história como marco decisivo da Guerra. O desfecho da batalha foi sentido como negativo pela França, que temia a formação de uma nação vizinha poderosa e onde passou-se a clamar pela "vingança por Sadowa".


As modernas armas de Guerra da Prússia e a cultura popular


A vitória da Prússia sobre a grande potência da Áustria-Hungria foi devida em grande parte à supremacia de suas armas e da estrategia empregada pelo General Helmuth K. B. von Moltke (1800-1891).


A batalha de Königgrätz demonstrou internacional de forma impressiva os efeitos do fusil de agulha de detonação (Zündnadelgewehr) desenvolvido desde a sua invenção em 1827, empregados pelo exército prussiano, em particular pela infantaria em várias ocasiões e produzidos em massa desde 1840 na fábrica de Sömmerda e, a seguir, na fábrica de armas real prussiana e em outras cidades.


Em 1848, o fusil foi adotado por um batalhão de Fucileiros prussianos, sendo pela primeira vez empregada na sujeição da Revolução Alemã, em 1849. Estados aliados à Prússia passaram a empregar o fusil, sendo a arma também empregada, com modificações, por unidades da Cavalaria e de Caçadores.


Essa espingarda, carregada por detrás e detonada com a agulha, possibilitava aos soldados atirar com grande rapidez. Essa velocidade dos tiros repetidos marcou a imagem dos soldados prussianos, levando a desenvolvimentos similares em outras nações, determinando a história militar.


O fusil prussiano, cuja eficiência evidenciou-se em especial na batalha de Königgrätz, levou a modificações na ação dos combates e na tática de guerra. Se até então esses partiam de um ataque de soldados com baionetas em punho, passou este a ser feito com os tiros rápidos do fusil. Se antes os soldados com baionetas atacavam em formação densa, agora o ataque procedia em formações menores. Além da salve inicial do ataque de toda a companhia, passou-se ao fazer fogo rápido de cada soldado.


Essa modificação do armamento e da tática teve também as suas consequências nas representações pictóricas das batalhas e na sua percepção acústica. Os gritos dos soldados com baionetas e daqueles por elas atingidos deram lugar ao ruído dos tiroteios dos fusís.


As batalhas na Boêmia e o fusil prussiano na Rivista di 1866


Cabe ao compositor brasileiro o mais significativo testemunho das batalhas prussiano-austríacas na Boêmia e do emprêgo do fusil de agulha detonadora que foi um dos principais fatores da vitória prussiana de Königskrätz.


Na Rivista ano de 1866 que, como no gênero das "revistas de ano" também se tornaram populares no Brasil passava em revista os principais acontecimentos do ano, Carlos Gomes dedicou especificamente uma Canzone ao fusil prussiano de agulha de detonação (Il fucile ad ago).


Trata-se, assim, de uma obra que, apesar das características espairecedoras do gênero, tematiza como as demais da revista, assuntos de grande seriedade e dramaticidade trágica, lembrando inclusive a derrota italiana na marcha fúnebre e coro dedicada à batalha de Custoza.


Como faria em outras de suas composições de cunho militar, Carlos Gomes empregou nesta peça motivos da prática da música militar, criando uma encenação acústica de um quadro de luta.


Após imitação do rugir de tambores no baixo, em oitavas repetidas a piacere, e os toques de pistões ou clarins em Alegro, a entrada do canto é preparada marcialmente e em movimento ascensional de efeito bombástico. O texto, em Andante Mosso, lembra os campos ensanguentados de Nachod e Sadowa, locais onde uma terrível arma demonstrara a sua ação fulminante: o fusil.






O ruido do balear dos fusís é reproduzido no texto declamado de forma onomatopoética - pfif, piff, pif, pif pif, Tra ta ta ta ta..., e elaborado musicalmente com figuras em staccato agudo e grave, martelado.



De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“Il Fucile ad ago de Carlos Gomes (1836-1896).O fusil prussiano na vitória contra a Áustria em Königgrätz de 1866 decisiva para o Vêneto“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 163/5 (2016:05). http://revista.brasil-europa.eu/163/Fucile_ad_ago.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne





 




Gitschin/Jicin e Königgratz 2011. Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

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