150 anos: Se sa minga de A.Carlos Gomes

Revista

BRASIL-EUROPA 163

Correspondência Euro-Brasileira©

 

N° 163/2 (2016:5)




150 anos: Se sa minga: Rivista di 1866
de Antonio Scalvini  (1835-1881) e A. Carlos Gomes (1836-1896)
Rivista do ano de guerra nacional italiana contra a Áustria pelo Vêneto nos seus elos com a Alemanha

 
Há 150 anos, Antonio Carlos Gomes, estudante em Milão desde 1864, alcançou o seu primeiro grande sucesso como compositor escrevendo a música para uma peça teatral que passava em revista o ano de 1866, escrita por Antonio Scalvini. O compositor dedicou a obra a seu professor no Conservatório, Lauro Rossi (1812-1885).


Essa Rivista di 1866 foi levada à cena a 1 de janeiro de 1867 no Teatro Fossati de Milão, com grande êxito de público, despertando o interesse pelo brasileiro e a atenção do meio artístico para o seu nome. No primeiro dia do ano de 1867, a peça passava em revista os acontecimentos principais do ano que findara e que fora marcado por crises, cruciais medidas econômicas e guerra. Abrindo o novo ano, e portanto em data festiva, a revista do ano de 1866 não poderia deixar de ter um cunho ligeiro, apesar da seriedade e mesmo da dramaticidade trágica do difícil ano que se encerrara.


Esse sucesso abriu a Carlos Gomes caminhos à sua carreira e ao Teatro Alla Scala, onde demonstraria o seu talento como compositor de uma obra de muito maior envergadura, o Il Guarany. A essa Rivista di 1866 seguir-se ia outra em 1868: Nella Luna (Veja).


Apesar dessas composições terem inaugurado a sua vida artística européia e dado-lhe renome, foram ofuscadas pelo êxito de Il Guarany. São, assim, mencionadas apenas de passagem na literatura. O próprio compositor, imbuído de anelos de auto-aperfeiçoamento, empenhado em criar obras de arte de qualidade e significado, considerou-as a posteriori como trabalhos antes circunstanciais e de menor relevância.


A reorientação segundo processos culturais que os estudos musicológicos vem recebendo nas últimas décadas - graças aos impulsos recebidos de movimento proveniente do Brasil - levam a uma reconsideração dessa obra e ao reconhecimento de seu relevante significado. A Rivista de 1866 surge como documento de importância sob diferentes aspectos, entre êles para estudos da cultura popular e do quotidiano, de processos político-culturais no século de formação de estados nacionais nas suas dimensões e interações internacionais.


Atualidade da reconsideração de Se sa minga nos seus 150 anos


O recrudescimento de tendências renacionalizadoras no presente, que se manifestam em manifestações populares e se apresentam como voz do povo, tem levado a críticas do populismo de movimentos nacionais, nacionalistas e identitários, em geral politicamente de direita. Conceitos de populismo e do populístico nas suas relações com a popularidade passam a ser discutidos com renovada intensidade nos estudos culturais.


A consideração de um documento da história da formação de estados nacionais do século XIX versado em linguagem popular e que apresenta uma visão de decorrências a partir da sua vivência pelo povo como Se sa minga pode contribuir a uma maior diferenciação de conceitos e da análise.


O tratamento de acontecimentos extremamente graves do ano de 1866 a partir de aspectos que mais marcaram a vida da população em linguagem musical acessível e com humor relativador não implica necessariamente que os seus autores tivessem intenções que poderiam ser designadas como populistas no sentido de recorrência à vox populi a serviço do movimento político nacional. Teriam provavelmente apenas procurado sucesso e platéia e de caixa.


Indiretamente, porém, com a popularidade alcançada por cantos facilmente memorizáveis relacionados com fatos e decorrências do movimento nacional, a Rivista teria contribuido, com a sua amenidade ligeira, a mitigar as dificuldades de vida causadas pela crise econômica, comercial e por medidas do govêrno do Reino nacional nos seus primeiros anos, assim como os terrores dos acontecimentos da terceira guerra da independência. Com a sua popularidade, teria contribuído assim à criação de um estado de espírito ou psicológico favorável à política nacional. Teria desempenhado antes um papel amenizador e estabilizador da situação, podendo ser assim vista antes como conservadora, afirmativa, não de crítica oposicional.



O significado do uso de dialeto já na primeira obra de sucesso de A. Carlos Gomes


É digno de especial atenção, em primeiro lugar, o próprio título da Rivista di 1866: Se sa minga. Essa expressão, pouco entendida e considerada, demonstra o significado do dialeto na composição, na popularidade do trabalho de Antonio Carlos Gomes e de sua integração no ambiente de Milão de sua época.


Já em relatos de viajantes que percorriam a Europa em décadas passadas pode-se constatar as dificuldades de compreensão do italiano falado nas várias regiões e cidades visitadas. O italiano, estudado e aprendido por esses viajantes, era falado em geral apenas em Roma, Siena e Florença. O italiano falado popularmente no Piemonte ou em Gênova era praticamente incompreensível e também o de Milão apresentava inúmeras particularidades que dificultavam a comunicação.


Justamente essas características próprias conferiam aos dialetos significado relevante para a consciência comunitária, regional e local, no apêgo às tradições e na valorização de expressões tradicionais que se acentuaram em época de valorização do nacional.


Não se pode deixar de registrar que Carlos Gomes, nesta obra composta após relativamente pouco tempo após a sua chegada a Milão, tratou musicalmente de um texto não em italiano clássico, mas escrito em dialeto local, um fato que contribui à explicação da grande popularidade alcançada.


Qual seria o brasileiro que, hoje, atuando em qualquer região européia, conheceria, após um ano ou dois de estadia, uma versão popular e dialetal da língua estrangeira que não é ensinada, tratada em compêndios e mesmo valorizada?


O fato da primeira produção de sucesso de Carlos Gomes na Itália ter um título em dialeto adquire interesse para estudos do nacional segundo concepções da época e que diferem daquelas do nacionalismo do século XX.


Tudo indica ter sido Se sa minga uma expressão popular ou contribuído para que ela se tornasse popular. O êxito da obra parece que levou a que fosse reelaborada em forma de galope brilhante para piano por Giovanni Martinenghi denominada de Se sa minga, peça registrada no "Manual Universal da Literatur Musical de todos os Povos" (Fr. Pazdirek, Universalhandbuch der Musikliteratur aller Völker XIX -. Marks-Messner, Viena: Verlag des Universal-Handbuchs..., 1906, pág. 242). 


O termo minga, de discutível tradução, foi até mesmo considerado por viajantes estrangeiros como característico da linguagem popular de Milão. Como advérbio, significa uma negação reforçada, possivelmente derivada do latim mica, relacionada com algo de pequeno, como grãozinho ou pouquinho, e que, em diferentes formas, encontra-se no italiano e em dialetos. No linguajar milanês, minga e no são usados por vezes indistintamente, sendo minga mais forte do que a simples negação. Talvez pudesse ser traduzido em português por nada no sentido de "nada nadinha" ou nem um pouquinho.


Cunho popular de música ligeira em cuidada elaboração composicional


A Canzone con Coro Se sa minga!, em Allegro con brio e em 6/8, oferece uma chave para o entendimento do sentido cheio de humor da produção cênico-teatral que passa em revista um ano marcado por tantas dificuldades e trágicos acontecimentos. O texto parece sugerir uma atitude dos milaneses perante notícias das graves decorrências que chegavam aos ouvidos e de que nada sabiam, não queriam saber ou fazia como se não soubessem.


Apenas à primeira vista é a Canzone con Coro musicalmente simples, sem elaboração técnica mais cuidada. Seria também impensável que Carlos Gomes dedicasse uma composição nascida apenas da intuição e elaborada de modo espontâneo e irrefletido a seu professor Lauro Rossi, conhecido pela sua atenção a aspectos teórico-musicais e a uma sóilida formação em harmonia, contraponto e fuga.


A minha melódica da Canzone, marcada pelo repetido motivo de intervalo de terça menor, adquire, na sua simplicidade, um cunho quase que parlante, adequado a um tratamento prosódico próximo à fala de canção popular. A atenção à construção refletida por parte do compositor se manifesta sobretudo no baixo. Apesar do seu caráter popular, conduções cromáticas ascendentes e descendentes que se tornariam características de obras posteriores de maiores ambições já aqui se manifestam. Condução melódica escalar ascendente com cromatismos sobre notas pedais aumentam, em crescendo, o efeito teatral da peça.




Tem-se, nessa Canzone, um documento significativo de compositor de formação erudita que emprega recursos aprendidos do exercício teórico no tratamento de produção de teatro musical popular.



Correspondendo à temática militar que marca a passagem em revista do ano da terceira da guerra da independência nacional italiana, a Canzone inclui um parte em Tempo di Marcia no tratamento de texto que se refere ao reconhecimento de valor de heróis.




De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.)“ 150 anos: Se sa minga: Rivista de 1866 de Antonio Scalvini  (1835-1881) e A. Carlos Gomes (1836-1896).Rivista do ano de guerra nacional italiana contra a Áustria pelo Vêneto nos seus elos com a Alemanha“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 163/(2016:05). http://revista.brasil-europa.eu/163/Se_sa_minga.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne





 










Meses do ano em edifício histórico de Salò 2016. Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

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