Quartetto veneziano Vittoriale - E. Guarnieri

Revista

BRASIL-EUROPA 163

Correspondência Euro-Brasileira©

 

N° 163/7 (2016:5)



Gabriele d'Annunzio (1863-1938) e o Quartetto veneziano Vittoriale de Edoardo Guarnieri (1898-1968)

O III Festival de música de câmara em Veneza 1925 da Corporazione delle nuove Musiche e da Sociedade Internacional de Música Contemporânea nos seus elos com o Brasil I




Reflexões euro-brasileiras sobre o Vittoriale degli italiani na Riviera dei Limoni, lago de Garda, Gardano e Salò
a partir de dedicatórias a Martin e Tatiana Braunwieser

 
O presente texto recapitula trabalhos que vem sendo considerados há décadas no âmbito da A.B.E. pelo fato de que aqui se trata de desenvolvimentos históricos estreitamente relacionados com o histórico da entidade.


Foram retomados no presente ano em visita a localidades do lago de Garda com a finalidade principal de considerar in loco o contexto geográfico-cultural em que se inseriu o Vittoriale degli italiani em Gardano, de particular significado para estudos ítalo-brasileiros. 


Essa propriedade, hoje museu, situa-se na assim chamada Riviera dei Limoni, marcada por localidades como Limone, Maderno, Gardagno e Salò. A visita realizou-se por ocasião de eventos culturais ali realizados, salientando-se a XI edição internacional do Festival de Música de Câmara, de título "Alla Scoperta degli antichi luoghi del Garda.


Salo. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright

Atualidade da retomada dos estudos do III Festival de Música de Câmara de Veneza de 1925


O Vêneto - e em particular Veneza - merece ser considerado com atenção nos estudos histórico-culturais do movimento nacional italiano e do irredentismo anterior à Primeira Guerra e do período posterior que levou ao Fascismo. Também quanto às suas relações com o Brasil.


Esses estudos ganham em atualidade devido à recrudescência de anelos nacionais e nacionalistas no presente europeu. (Veja)


Primeiramente, deve-se considerar o Vêneto à época das guerras de independência italiana marcadas pelos anelos de integração no reino nacional de territórios que se encontravam sob a soberania da Áustria-Hungria no século XIX.


A passagem do Vêneto da soberania austríaca ao Reino da Itália graças à vitória da Prússia contra a Áustria-Hungria em Königgrätz (Veja) e apesar da derrota italiana em batalhas como em Custozza (Veja), tiveram o seu registro músico-teatral na Rivista de 1866, cuja música foi a primeira obra de sucesso e popularidade na Itália de  A. Carlos Gomes (1836-1896). (Veja)


Os elos do compositor brasileiro com Veneza e com os movimentos de seu ressurgimento cultural sob o signo da italianidade, de reconscientização de sua história e tradições foram estreitos, como o demonstra a sua cançoneta "Lisa me vostu ben".


Nessa composição, o autor brasileiro refere-se à história de amor de uma das mais destacadas personalidades da vida militar e política de Veneza, Piero Foscari (1865-1923).(Veja) Nos anos que se seguiram á morte do compositor, Piero Foscari tornou-se influente personalidade da vida local, destacando-se os seus planos portuários e da Grande Veneza, assim como do movimento nacionalista, irredentista e expansionista italiano em proximidade a Gabriele d'Annunzio (1863--1963). Em 1923, presidiu a última sessão do Comitato central nazionalista, que levou à integração da Associação Nacionalista Italiana no Partido Nacional Fascista.


O necessário estudo de pressupostos e de desenvolvimentos processuais que estabelecem a ponte entre os anos anteriores e os posteriores à Guerra não justifica uma visão do passado segundo critérios, visões e valores posteriores. Este seria um procedimento inadequado tanto relativamente ao Brasil como também quanto a nações européias.


Também os anos posteriores à Primeira Guerra, porém, não podem ser tratados indiferenciadamente a partir de situações políticas e político-culturais que se tornaram predominantes e determinantes, no caso, o Fascismo italiano.


A situação dos anos que se seguiram ao desfecho da guerra é complexa e marcada por múltiplas tendências políticas e artístico-culturais de ambos os lados, de vencedores e derrotados, nacionalistas ou antes voltadas ao restabelecimento de relações internacionais pacíficas em superação dos abismos entre povos determinados pela guerra. Instabilidades e passagens de um extremo a outro, entre posições socialistas de esquerda àquelas anti-socialistas e ao totalitarismo nacionalista de direita não poderiam ser melhor exemplificados do que no caso de Benito Mussolini (1883-1945). Foi a época da "marcha a Roma" de outubro de 1922 e do estabelecimento do regime fascista em 1925.


Nessa complexa situação de processos em andamento, de mutabilidade de posições e concepções, e que teve a sua repercussão na vida cultural e artística, em particular na música, seria incorreto e injusto categorizar indiferenciadamente como fascistas aqueles que, atuando em eventos culturais em Veneza nesses anos imigraram posteriormente ao Brasil onde, em vários casos, desempenharam papéis de significado nas artes, na vida e na criação e no ensino musical.


Indefinições e mutações de um extremo a outro em posições político-culturais tiveram também a sua continuidade no Brasil, e, à distância, como indicam até mesmo situações do presente, imigrados tenderam por vezes a posições mais nacionalistas do que na própria terra natal, ou seja, tornaram-se fascistas - ou nacionalsocialistas - no Brasil.


Partindo da Áustria: reconstrução de rêdes internacionais - o ano de 1922


A Áustria fora o principal alvo de combate do movimento nacional e do irredentismo italiano. Perdera há muito os territórios do reino Lombardo-Vêneto, Veneza e encontrava-se com o desfecho da Guerra reduzida a país de território muito reduzido e sem porto marítimo.


A superação do isolamento com o restabelecimento de contactos com as nações que a combateram foi sentida como exigência em círculos intelectuais e artísticos e que, já antes da Guerra, tinham sentido a necessidade de renovações e mudanças, em particular por aqueles que mais de perto tinham experimentado os conflitos nacionais dentro da própria Dupla Monarquia. Salientaram-se aqui intelectuais e artistas vindos das regiões balcânicas ou tchecas.


O papel desempenhado pela música nesse processo de reaproximação entre as nações merece particular atenção, também sob o aspecto de seu significado para o Brasil.


A primeira vez que músicos de nações inimigas da Primeira Guerra Mundial encontraram-se em espírito de colaboração amiga remonta à iniciativa de grupo de jovens compositores de Viena, liderados por Rudolph Reti (1885-1957) que, em 1922, conceberam um Festival Internacional de Música Moderna.


Rudolph Reti, pianista e compositor de origem sérbia, que mais tarde imigraria aos Estados Unidos e alcançaria renome sobretudo pelos seus escritos teórico-musicais, obtivera a sua formação musical e musicológica em Viena. O seu empenho na procura de novos caminhos na criação musical evidencia-se no fato de ter apresentado em Viena, em 1912 os Klavierstücken op. 19 de Arnold Schönberg (1874-1951).



Significado de Salzburgo no reatamento e intensificação de elos


Significativo é o fato de Reti manter relações com o meio musical de Salzburg, co-participando da fundação dos Salzburger Festspiele, cidade no qual teve lugar o encontro internacional de música moderna. Para esse evento, foram convidados compositores amigos de Londres, Paris, Berlim e outros centros europeus.


A escolha de Salzburgo para o festival explica-se pelo interesse pela criação musical contemporânea no âmbito do Mozarteum já nos anos anteriores precedentes e durante a Guerra. Personalidade central dessa abertura da instituição a tendências estéticas renovadoras da criação musical era Bernhard Paumgartner (1887-1971). Entre os seus principais discípulos destacava-se Martin Braunwieser (1901-1991) como instrumentista e compositor e que, posteriormente, desempenharia importante papel na vida musical e no ensino de São Paulo. Sobretudo também aquela que seria a sua esposa, Tatiana Kipmann, merece ser considerada com especial atenção no estudo das relações entre músicos provenientes de contextos nacionais da antiga Áustria-Hungria e aqueles dos países vencedores, em particular devido a seus estreitos elos artísticos e humanos com Felix Petyrek (1892-1951).


Seguindo-se a esse primeiro festival, compositores de várias nacionalidades decidiram formar uma sociedade unternacional que promovesse esses festivais e, simultaneamente, suscitasse e mantivesse vivo o interesse pela música contemporânea nas suas mais inovativas ou interessantes expressões. Não sem significado é o uso do termo "interessante" relativamente à criação musical em textos da época.


Nessa iniciativa deve-se salientar, entre outros, Egon Wellesz (1885-1974), compositor e musicólogo de origem húngara da antiga Dupla Monarquia e que posteriormente imigraria à Grã-Bretanha. Como Sociedade Internacional de Música Contemporânea (SIMC), a associação foi constituída em Londres em janeiro de 1923 e logo criaram-se seções em todos os países europeus, nos Estados Unidos e no Brasil. A seção brasileira, como as demais, era independente e autônoma.


A sociedade tinha como membros do seu comitê de honra compositores que representavam diferentes nações: Ferruccio Busoni (1866-1924), Itália, porém estreitamente vinculado com a cultura alemã; Maurice Ravel (1875-1937), França; Arnold Schönberg, Áustria; Jan Sibelius (1875-1957), Finlândia; Richard Strauss (1864-1949), Alemanha; e Igor Strawinsky (1882-1971), Rússia. O Presidente dos delegados nacionais era Edw. J. Dent (1876-1957), Grã-Bretanha.


A SIMC promoveu um Festival de Música de Câmara de Salzburgo, em 1923, um Festival de Música Orquestral em Praga e outro Festival de Música de Câmara em Salzburgo, em 1924. Neles tomaram parte Martin e Tatiana Braunwieser.


Corporazione delle Nuove Musiche - Festival de Música de Câmara de Veneza de 1925


Neste ano de 1924, após um Festival de Música Orquestral em Praga, centro musical que tinha sido parte do antigo território da Áustria-Hungria, a sociedade foi convidada a apoiar o Festival de Música de Câmara de Veneza sob os auspícios da Corporazione delle nuove Musiche. O contato foi possibilitado por Alfredo Casella (1883-1947), que se transferiu para isso a Salzburgo e ali forjou os planos.


Essa seção da sociedade internacional, já pela sua denominação, indicava os novos principíos corporativos do estado italiano, o corporativismo que substituiu sindicatos e que foi elemento de importância no fascismo italiano e em outros estados totalitários.


Essa Corporazione delle Nuove Musiche (Concentus Decimae Nuncius Musae) fora fundada em 1923.Ela tinha sido precedida por sociedade mais antiga, representava porém a nova situação político-cultural. Em 1917, Gabriele d'Annunzio, o veneziano Gian Francesco Malipiero (1882-1973) e Alfredo Casella  fundaram a Società Italiana di Musica Moderna, com o seu órgão Ars Nuova.


Na fundação da Corporazione, sob a égide de Gabriele d'Annunzio, destacou-se sobretudo Casella, um dos principais representantes de concepções fascistas de uma geração que procurava criar um estilo moderno italiano. Este estilo devia distanciar-se da predominância operística e do Verismo que marcara a Itália da geração anterior, e que era visto como pequeno burguês.


Primeiramente os músicos e posteriormente as massas deviam ser conduzidas às verdadeiras raízes da música italiana. Pretendia-se superar a estreiteza pequeno-burguesa e provincialismo da Itália marcada pela ópera num intento ao mesmo tempo nacional e internacional na procura de projeção da Itália com expressão musical moderna e nacional ao lado de outras nações. Compreende-se, assim, a atenção especial dada à música de câmara nesses intentos, uma orientação que também teria a sua repercussão na vida musical do Brasil.


Financiamento para os empreendimentos dos nacionalistas italianos foram possibilitados paradoxalmente sobretudo por uma mecenas americana, Elizabeth Penn Sprague Coolidge (1864-1953). Talvez seja também justamente essa posição pragmática de alcançar verbas e projeção internacional independentemente de posicionamentos políticos é o que explica o convite feito pela Corporazione à SIMC e à participação de compositores e músicos de diferentes tendências políticas no evento de Veneza.


Essas relações entre a SIMC e a Corporazione delle Nuove Musiche no terceiro Festival de Veneza demonstra a complexidade de análise político-cultural de um evento marcado por tendências múltiplas e mesmo contraditórias, por um lado internacionalistas, por outro de nacionais nas suas diferenças, aquelas derivadas do nacionalismo vencedor do antigo império de muitos povos austro-húngaro, aquelas irredentistas, nacionalistas e fascistas dos italianos. A participação de várias personalidades judias, em particulasr na SIMC, indica que o anti-semitismo não desempenhou papel determinante no festival veneziano.


Uma personalidade que não pode deixar de ser mencionada no vir a ser do Festival de Veneza é a de Mario Labroca (1896-1973). Tendo participado na Primeira Guerra Mundial e tendo sido aluno de G. F. Malipiero, era, após atividades em Berlim, publicista da L'Idea nazionale de Roma. Deu posteriorimente, entre 1929 e 1936, colaborações a órgãos como Il Lavoro fascista.


Músicos participantes do Festival de Veneza


O rol dos músicos participantes do Festival de Música de Câmara de Veneza demonstra de forma expressiva a internacionalidade do evento apesar das diferentes concepções nacionais e nacionalistas de muitos dos compositores e instrumentistas. Muitas das participações explicam-se por elos de formação, de professores e seus discípulos em diferentes nações; vários tinham experiência de vida de guerra e de imigração. Os regentes dos concertos foram Louis T. Gruenberg (1884-1964), Hermann Scherchen (1891-1966) e Arnold Schönberg, provindos respectivamente de Nova Iorque, Frankfurt a.M. e Viena. Hermann Scherchen trazia a sua experiência de Guerra na Rússia, de orientação política de esquerda.


Também os cantores e instrumentistas participantes dos concertos provinham de diferentes nações. Três quartetos representaram a música de câmara de Veneza (Il Quartetto Veneziano), de Viena (Wiener Streichquartett) e de Praga (Zika Quartett), oferecendo a mais expressiva cooperação camerística em amizade de centros musicais que tinham sido até então marcados pelas animosidades e tragédias da guerra.


O Quartetto veneziano Vittoriale, G. D'Annunzio e Edoardo Guarnieri


Para os estudos relacionados com o Brasil, o Quartetto Veneziano merece particular atenção. Nele tomava parte, ao lado de Luigi Ferro, Vittorio Fael e Oscar Crepax, o violoncelista veneziano Edoardo Guarnieri, instrumentista e regente que desempenharia a partir de 1935 papel influente na vida musical do Brasil.


Tendo-se formado no conservatório de Veneza, Edoardo Guarnieri aperfeiçoara-se na Schola Cantorum de Paris e estudara com Gian Francesco Malipiero. Fundara, ao retornar, o Quartetto veneziano. Esse quarteto, também chamado de Quartetto Vittoriale, era estreitamente ligado à personalidade e ao universo de idéias de D'Annunzio.


O seu cognome Vittoriale, que adquiriu após o festival de Veneza, refere-se ao Vittoriale degli italiani em Gardone Riviera, às margens ocidentais do lago de Garda, residência adquirida e reformada por Gabriele DAnnunzio em 1921 e na qual viveu até 1938.


Gardone é uma das comunidades da assim chamada Riviera dos Limões: Limone sul Garda, Tremosine, Tignale, Gargano, Toscolano Maderno, Magasa, Gardone e Salò.


D'Annunzio alugara primeiramente uma vila de historiador da arte estrangeiro que havia sido confiscada pelo govêrno, recebendo logo a visita de Benito Mussolini (1883-1945). No mesmo, adquiriu a villa, dando início a trabalhos de reforma e ampliação. O seu nome Vittoriale degli italiani deriva das colunas memoriais do seu jardim e que passou a designar toda a propriedade.


Doando a propriedade ao povo italiano, tornou-se esta uma monumento da nova era política com os materiais históricos que passaram a ser ali conservados, entre outros o avião com que d'Annunzio sobrevoou Viena na Primeira Guerra. Nobilitado pelo rei Vittorio Emanuelle III (1869-1947), recebeu o título de Principe di Montenevoso.


Edoardo Guarnieri, com outros elementos do Quartetto veneziano, atuou em orquestra de câmara formada para a execução da Kammermusik N°2 - Concerto per piano - per Piano obbligato a 12 solisti, op. 36 n° 1 de Paul Hindemith. Essa execução encerrou o primeiro dos concertos do Festival, aquele no qual também foram apresentadas obras de Heitor Villa-Lobos (1887-1959). (Veja)





De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.).“Gabriele d'Annunzio (1863-1938) e o Quartetto veneziano Vittoriale de Edoardo Guarnieri (1898-1968).O III Festival de música de câmara em Veneza 1925 da Corporazione delle nuove Musiche e da Sociedade Internacional de Música Contemporânea nos seus elos com o Brasil I“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 163/7 (2016:05). http://revista.brasil-europa.eu/163/Vittoriale-Edoardo_Guarnieri.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne





 







Lago di Garda 2016. Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

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