Erudição e interiorização nas missões
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 164

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Carlos Borromeo/California. Foto A.A.Bispo 2016 Copyright

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Foto A.A.Bispo 2016©Arquivo A.B.E.

 


N° 164/5 (2016:6)


Erudição e interiorização
nas missões franciscanas no Brasil e na América do Norte
no espírito da Contra-Reforma em tradição tridentina:
San Carlos Borromeo del rio Carmelo: a mais antiga biblioteca da Califórnia

Visita da A.B.E. à missão de San Carlos Borromeo del rio Carmelo, Califórnia
pelo debate motivado pela canonização de Fr. Junípero Serra (1713-1784)


 
Carlos Borromeo/California. Foto A.A.Bispo 2016 Copyright

Entre as antigas missões da costa do Pacífico dos EUA, a de San Carlos Borromeo del rio Carmelo merece ser considerada com especial atenção pelas suas instalações, pelo museu que abriga e sobretudo pelo fato de ter sido centro de atividades franciscanas, nela tendo vivido e atuado Frei Junípero Serra OFM (1713 -1784) e seu sucessor, o basco Fermin Francisco de Lasuen (1736-1780).

A  santificação de Junípero Serra pelo Papa Francisco, em 2015, levando a uma retomada do debate sobre os seus métodos e as consequências das atividades missionárias para as sociedades indígenas, faz com que uma visita a essa missão se torne relevante e a sua consideração mesmo indispensável nos estudos voltados a processos culturais, também naqueles relacionados com o Brasil. (Veja)

A missão de San Carlos Borromeo apresenta-se como principal área memorial de Frei Junípero Serra, com a sua estátua, imagens e túmulo, com quadros elucidativos e com câmaras, móveis e objetos que documentam a vida conventual e missionária do passado.

Carlos Borromeo/California. Foto A.A.Bispo 2016 Copyright

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O museu nela instalado surge como dos principais da história missionária nas Américas, oferecendo, no espaço histórico adequado, uma visão da vida quotidiana, de trabalho e espiritual dos religiosos. Nele encontram-se seções dedicadas ao restaurador do edifício, Harry Downie (1903-1980), a uma família de importância da região (Munra) e uma capela com o mausoléu de bronze esculpido em 1924 pelo artista Jo Mora.

É um dos monumentos patrimoniais dos Estados Unidos, um National Historic Landmark, bem inscrito no National Register of Historic Places, de relevância histórico-arquitetônica e artística pelos seus edifícios - a única das missões com o seu campanário original. No seu interior, salienta-se um portal em pedra que, pelas suas extraordinárias qualidades artesanais e pelo seu estilo surge como obra única nas construções antes modestas das missões franciscanas da Califórnia.

Carlos Borromeo/California. Foto A.A.Bispo 2016 Copyright
O significado da missão San Carlos Borromeo del rio Carmelo reside porém sobretudo no fato de revelar a erudição que fundamentou as atividades franciscanas sob a direção de Frei Junípero Serra e que se manifesta na sua própria denominação.

Abreviadamente designada como Carmel devido ao rio do mesmo nome, a sua denominação pode levar a mal-entendidos. Se as demais missões franciscanas foram colocadas sob o patrocínio de Maria ou de santos mais cultuados na tradição religiosa popular do mundo ibérico de proveniência do missionário - Imaculada Conceição, Barbara, Inês - a de San Carlos Borromeo lembra um vulto da história eclesiástica mais recente, destacada personalidade da Contra-Reforma e da Reforma católica segundo os princípios do Concílio de Trento.

Significado da dedicação a S. Carlo Borromeo (1538-1584)

Carlo Borromeo, cedo canonizado, tornou-se vulto influente da reforma do culto e da vida religiosa marcada por interiorização, resacralização de formas e expressões de culto e da vida pessoal em afastamento de influências profanas.

A escolha dos nomes das missões adquire conotações por assim dizer programáticas, revelando intenções conscientes e reflexões. Assumindo as atividades missionárias na Baixa Califórnia após a expulsão dos Jesuítas, Frei Junípero Serra dedicou significativamente os primeiros dos estabelecimentos a vultos da história religiosa da Espanha e da ordem: San  Fernando Rey de España e San Diego de Alcalá. 

Com a menção a San Diego de San Nicolás (ou de Alcalá) (1400-1463), a história missionária da Califórnia vinculou-se àquela da história da cristianização das ilhas Canárias e, concomitantemente, à história eclesiástica do século marcado pela reforma tridentina. Diego, irmão leigo da ordem dos frades menores de observância foi canonizado já em 1588 por Sixto V (1521-1590), tornando-se modêlo de exemplaridade aos irmãos leigos do Franciscanismo.

Junípero Serra, ao viajar ao longo da costa, atingiu Monterey, onde fundou, em 1770, S. Carlos Borromeo como primeiro estabelecimento missionárío na Alta Califórnia.

A transferência da missão já em 1771 de Monterey para a atual localidade mais retirada do rio Carmelo foi resultado da intenção de afastar os indígenas da influência dos soldados do presídio ou forte, ou seja, da vida mundana de localidade marcada pelo seu porto e pela presença militar sob a direção da autoridade do governador.

O afastamento da missão à região rural, onde os indígenas nela encerrados passaram a dedicar-se mais plenamente á vida religiosa e ao trabalho, correspondeu assim a concepções de introspecção e de afastamento do mundano da reforma católica no espírito tridentino representado pelo nome de Carlos Borromeo.

O estudo na tradição contra-reformatória e o cristianizar de "cima para baixo"

Somente a orientação teológico cultural de cunho contra-reformatório ou católico-reformador de Junípero Serra pode explicar a escolha do nome desse Arcebispo de Milão e Cardeal para a designação da missão. Serra, que fora professor de seminários em Palma de Mallorca e no México, revelou-se aqui primordialmente como homem de erudição e severidade de costumes.

A transferência para região erma do vale do rio Carmelo não teria sido primordialmente justificada por motivos práticos da agricultura, uma vez que esta não possibilitava de início a subsistência, mantendo-se a dependência da chegada de mantimentos provenientes de outras missões, em particular de San Diego de Alcalá, vindos nas naves que atracavam em Monterey.

Carlos Borromeo/California. Foto A.A.Bispo 2016 Copyright

Para criar uma população no estabelecimento missionário, Junípero Serra usou de um procedimento que é hoje um dos argumentos da crítica indígena e indigenista. Retomando método já utilizado no início da história missionária nas ilhas atlânticas e na África, o franciscano procurou ganhar o apoio e alcançar a conversão de figuras de liderança de grupos indígenas que, então levaram ou coagiram indígenas sob a sua influência a transferirem-se para a missão.

Tratou-se assim de um procedimento baseado em política de poder, que, correspondendo à própria relação estreita entre a missão e o Estado espanhol, voltava-se primordialmente a chefes e líderes de nativos.

A questionabilidade desse procedimento ter-se-ia agravado com a prática de batismos de indígenas de regiões circunvizinhas que, uma vez batizados, teriam sido transferidos para a missão. Nela circunscritos, eram preparados e sujeitos a uma vida de trabalho como pedreiros, artífices, artesãos, carpinteiros, agricultores, pastores e vaqueiros.

Este teria sido o destino amargo de povos indígenas como os Esselen e os Ohlone que, com o contato e os esforços físicos, adquiriram doenças e sofreram grandes perdas de vidas humanas. Se em 1794, a população da missão era de 927 almas, nela viviam, em 1823, apenas 381 pessoas, sendo a comunidade formada por indígenas provenientes de diferentes grupos étnicos, culturais e de língua.

Abandono, ruína e movimentos restaurativos nos séculos XIX e XX

Como outros estabelecimentos missionários, também a missão de San Carlos Borromeo foi secularizada por decreto governamental mexicano em 1833, entrando em decadência.

Com a determinação da entrega de parte das terras aos nativos, a missão ficou privada de meios de subsistência e de mão de obra indígena. Os indígenas, abandonando-a, passaram a trabalhar em ranchos e em fazendas da região.

A missão arruinada - sendo que o  teto da nave caiu ao redor de 1852 -  tomou novo alento quando a Igreja recuperou edifícios e terras em 1863.

Visitantes da época, revelando o espírito do Romantismo, fascinaram-se pelo aspecto ruinoso das instalações e que representavam uma espécie de Antiguidade no Novo Mundo, clamando por preservação. Uma antiga fotografia itestemunha a manutenção de tradições à época da igreja abandonada com a participação de uma banda de música.


A reconstrução da igreja foi iniciada em 1884, refazendo-se a sua cobertura em estilo neogótico. Somente  em 1931, poré´m, é que se intensificou a consciência histórica do passado missionário. Nos esforços de sua recuperação destacou-se o já mencionado Harry Downi.

A configuração atual da igreja e de outras dependências reflete assim, apesar de toda a procura de autenticidade restauradora, tendências de décadas marcadas pela valorização do passado colonial de entre-guerras do século XIX, um fato também conhecido no Brasil.


O papel da música em processos restaurativos

O significado da música no culto e na ordenação da vida comunitária através do canto das horas do ofício na tradição franciscana que marcou a história de San Carlos Borromeo também foi alvo de atenção nos intentos restaurativos do século XX.

Ponto alto desses esforços foi a aquisição de um órgão da firma Casavant por Mons. Eamon MacMahon, em 1986, decorado com elementos estilísticos de inspiração ibérica. Esse instrumento possibilita desde então também a realização de concertos espirituais que complementam um amplo programa de atividades culturais.


A primeira biblioteca da Califórnia

As bibliotecas de missões da California desempenharam importante papel na vida dos religiosos, servindo não apenas a fins teológicos, mas à agricultura, arquitetura, medicina, história e geografia.  A primeira biblioteca foi compilada de volumes que circulavam da biblioteca do Colegio Apostolico San Fernando da cidade do Mexico, que administrava as missões da California Superior, das mexicanas e das missões da Baixa California, primeiramente jesuitas.


Ao redor de 1778, a biblioteca possuia 30 livros. Pela morte de Junipero Serra, o número de livros aumentara para 50 e, quando catalogados pelo seu sucessor Fermin de Lasuen, em 1800, 302. Quando da secularização da missão, em 1834, o inventário registrou 179 títulos, a seguir dispersos quando foi abandonada em 1852. A maioria foi conservada em diferentes localidades de Monterey até 1949, retornando 229. Atualmente, possui ca. de 600 volumes, incluindo livros de sacerdotes de Monterey de 1850-1930.


Paradoxia de desenvolvimentos causadas pela expulsão de Jesuítas


San Carlos Borromeo surge como de significado para os estudos culturais relacionados com o Brasil sobretudo por trazer à luz complexos processos que surgem como paradoxais na consideração das consequências da expulsão dos Jesuítas das atividades missionárias no século XVIII tardio.

Justificada em grande parte por intenções esclarecedoras da época do Iluminismo como no mundo português, as suas consequências foram, no caso da Califórnia, exatamente contrárias, marcadas por espiríto religioso restaurador na tradição tridentina e contra-reformatória.

De ciclo e estudos da ABE sobre a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.). "Erudição e interiorização nas missões franciscanas no Brasil e na América do Norte
no espírito da Contra-Reforma em tradição tridentina: San Carlos Borromeo del rio Carmelo: a mais antiga biblioteca da Califórnia“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 164/5 (2016:06). http://revista.brasil-europa.eu/164/Carlos_Borromeo_California_Brasil.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller, N. Carvalho, S. Hahne