Tipologia hagiográfica e Canto Gregoriano
ed. A.A.Bispo
Revista
BRASIL-EUROPA 164
Correspondência Euro-Brasileira©
Tipologia hagiográfica e Canto Gregoriano
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BRASIL-EUROPA 164
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Foto A.A.Bispo 2016©Arquivo A.B.E.
N° 164/3 (2016:6)
Tipologia hagiográfica da vida indígena nas missões - boiadeiros e cordeiros
João Batista e a polifonia
práticas tradicionais do Canto Gregoriano no Brasil e na América do Norte
Visita da A.B.E. à missão de Santa Inés, Califórnia
pelo debate motivado pela canonização de Fr. Junípero Serra (1713-1784)
A antiga igreja da missão serve hoje como igreja paroquial da Arquidiocese de Los Angeles, sendo dirigida por Capuchinos franciscanos.
As instalações abrigam um museu que conserva documentos e objetos da história da antiga missão, salientando-se manuscritos e instrumentos musicais.
Este acervo adquire um significado que transcende o contexto regional, possibilitando conhecimentos de relevância para estudos de procedimentos da prática missionária e dos processos de transformação cultural por êles desencadeados em outras regiões do continente americano, incluindo o Brasil.
Motivo e atualidade da visita a Santa Inés
Com o ciclo levado a efeito na Califórnia e em estados vizinhos, comemorou-se a passagem dos 40 anos de relações com os Estados Unidos do programa euro-brasileiro iniciado na Alemanha em 1974 e que remontou a movimento de renovação teórica originado em São Paulo, em 1966. (Veja)
Entre os complexos temáticos que predominaram nas décadas que se seguiram, escolheu-se aquele que trata da história missionária e colonial nas suas relações com as culturas indígenas por vir de encontro ao debate atual motivado pela canonização de Frei Jeníparo Serra pelo papa Francisco, em 2015. Essas vozes críticas salientaram os aspectos negativos da atuação dos Franciscanos junto às populações indígenas, os métodos empregados e a proximidade com o poder militar, levando a uma perda de culturas tradicionais. (Veja)
Os problemas que se levantam no presente foram já há muito considerados e tratados em publicações, seminários e simpósios. Pareceu ser assim oportuno retomar in loco alguns dos aspectos tratados em diferentes contextos da ação de missionários, em particular dos Franciscanos.
A missão Santa Inés ofereceu-se aqui como particularmente favorável para relembrar sobretudo um aspecto que tem sido de particular significado nesses estudos, ou seja, o do necessário direcionamento da atenção a processos na sua decorrência temporal na consideração de atividades de transformação religioso-cultural de populações indígenas por parte de missionários europeus no passado.
Formação de rêdes no estudo de processos culturais
A consideração de rêdes pessoais e de estabelecimentos no decorrer da expansão devem ser alvo de especial consideração, uma vez que permite o reconhecimento de estruturas que se criaram na propagação religioso-cultural e consequentemente na mudança cultural dos nativos.
Não apenas continuidades, mas sim também transformações podem ser constatadas nas atividades dos missionários que se sucederam e nos estabelecimentos que surgiram a partir de outros. As experiências ganhas em situações antecedentes serviram a procedimentos posteriores, procurando-se evitar êrros quanto a métodos e vir de encontro a novas tendências trazidas por aqueles vindos mais recentemente da Europa. Torna-se necessário, assim, estudar as missões na sequência em que se estabeleceram e na sucessão daqueles que as dirigiram.
A missão Santa Inés foi fundada em 17 de setembro de 1804 pelo Pe. Estévan Tapís OFM ao lado dos freis José Antonio Calzada e Romualdo Gutièrez. Tapís sucedeu a J. Serra e F. Lasuén na direção das missões. (Veja) Como as outras missões, a de Santa Inês foi secularizada por lei do congresso mexicano em 1833, sendo as suas terras destribuídas a colonos. Em 1843, grande território da área do vale de Santa Ynez designado como Rancho Cañada de los Pinos passou ao College of Our Lady of Refuge. Esse colégio, o primeiro seminário da Califórnia, criado pelo seu primeiro bispo, foi transferido após alguns anos, levando ao abandono e à deterioração dos edifícios.
A fundação dinamarquesa de Solvang criada nas circunvizinhanças no início do século XX, marcou uma nova fase da história de Santa Inés. O Pe. Alexander Buckler empenhou-se, em 1904, na reconstrução da missão. Apenas após a Segunda Guerra Mundial, em 1947, a reconstrução pôde ser efetivada com o apoio da Hearst Foundation.
Esteban Tapis O.F.M. (Esteve Tapis, 1754-1825)
Estévan Tapís, nascido em Santa Coloma de Farners em Girona, entrou na vida religiosa na ordem dos franciscanos menores na sua cidade natal em 1778.
Assim como J. Serra, nascido em Mallorca, também Tapis pertenceu ao contexto cultural da Catalunha. Enviado à Nova Espanha em 1786, preparou-se no Colegio San Francisco na Cidade do Mexico para atuar junto aos indígenas. Enviado à Alta California, onde chegou em 1790, atuou inicialmente nas missões San Luis Obispo de Tolosa (1790-1793) e Santa Barbara (1793-1806).
A sua longa presença nesta última, sob a direção de Fr. Fermin Francisco de Lasuén O.F.M., parece ter sido decisiva para as suas atividades posteriores. Com a morte de Lasuén, em 1803, Tapis assumiu a direção das missões, sendo reeleito três vezes. Durante a sua administração, dirigiu a fundação de Santa Inés. As experiências e a prática ali ganhas foram aprofundadas teologicamente em San Carlos Borromeo de Carmel (1806-1811) (Veja) e na missão La Puríssima Concepción (1812-1813). Com essa longa vivência, presidiu a de Santa Inés (1813-1814). Foi enviado como auxiliar à missão San Juan Bautista, em 1815, alí atuando em 1825, dedicando-se ao ensino de meninos da população indígena.
A missão e a rancheria - o indígena como boiadeiro e neófito como cordeiro
Para o seu estabelecimento escolheu-se uma área próxima a uma rancheria Alajulspu no vale de Santa Inéz situada entre a Missão Santa Barbara (Veja) e a Missão La Puríssima Concepción, servindo como intermediária na missão dos indígenas que viviam a leste da costa Range. Foi povoada inicilmente com neófitos vindos de Santa Barbara e La Purissima.
Diferentemente das missões anteriores, a de Santa Inés, mais tardia, a de número 19 de 21 missões, foi habitada por número relativamente restrito de indígenas. Atingiu a sua maior população em 1815 com 768 almas. Destacou-se, porém, pela sua quantidade de animais e pela intensidade do seu cultivo agrícola. As representações pictóricas acentuam esse peso dado à pecuária e ao pastoreio da missão, colocando carros de bois e animais em primeiro plano e apresentando indígenas como vaqueiros e boiadeiros.
Os seus habitantes chegaram a adquirir individualidade cultural e mesmo de língua, sendo conhecidos como Inézeños.Também chamada Mission of the Passes, tornou-se a primeira instituição de ensino na Alta Califórnia.
Como outras missões da Califórnia, a de Santa Inés teve as suas edificações destruídas em terremoto de 21 de Dezembro de 1812, levantando-se então novas e mais fortes construções, sendo a sua igreja consagrada em 1817. A sua fachada data deste ano e o seu interior foi configurado em 1825. No interior, como em outras igrejas, destaca-se a pintura mural imitando mármore e motivos que revelam a tradição indígena.
A missão tornou-se importante centro da economia agrícola regional, levantando-se nela um moinho movido à água em 1819 e, em 1821, outro planejado pelo imigrante americano Joseph John Chapman (1784-1849), vindo como corsário com Hippolyte de Bouchard (1780-1837), ali se estabelecendo e realizando trabalhos de carpintaria e construção.
A história local foi marcada por uma revolta dos indígenas Chumash, em 1824, causada por ação violenta de um soldado, o que levou à procura de ajuda por indígenas das missões de Santa Barbara e La Puríssima. Após a luta, muitos indígenas se retiraram, retornando à vida tribal junto a grupos que viviam nas montanhas. Pode-se supor que levaram consigo conhecimentos adquiridos.
Culto a Santa Inês em missão marcada pelo pastoreio - linguagem de imagens
No estudo mais aprofundado dos estabelecimentos missionários e que se tornaram muitas vezes células de futuras cidades, cumpre dirigir a atenção às suas características diferenciadoras quanto a funções e vida, quanto ao espírito que os animou e que a êles conferiu uma imagem própria.
Neste sentido, a dedicação das missões a determinados santos surge como de particular relevância. Ela não foi escolhida em geral arbitrariamente, e o culto do padroeiro determinou a vida festiva e o tipo de exemplaridade humana condutora da formação dos missionados. Esse culto trazia diferentes aspectos teológicos à luz, determinando pesos, assim como diferentes contextos epocais da história ocidental através da hagiografia.
No caso de santos populares, favorecia a transplantação de práticas de culto tradicionais e festivas européias na vida lúdica das missões. Sob este aspecto, o culto a Santa Inês merece particular atenção, pois diz respeito a uma devoção com conotações que correspondem àquela da vida na missão e que se referem ao mundo rural do pastoreio.
Numa primeira aproximação, podia-se supor que a escolha de Santa Inês para o patrocínio da missão se justificasse pelo fato de haver uma santa de mesmo nome e que desempenhou importante papel na vida de S. Francisco de Assis. Trata-se de Sta. Agnes de Assis (1197-1198), que seguiu a sua irmã Chiara, entrando em S. Damiano. Foi fundadora de muitos conventos, tendo sido canonizada pelo Papa Bento XIV em 1753, ou seja, poucos anos antes da gande época das missões franciscanas na Califórnia.
A similaridade do nome, porém, pode ser compreendida a partir da imagem que determina o nome Agnes, ou seja, o do cordeiro. As imagens na missão de Santa Inés indicam que o prototipo da santa com este nomes foi o da virgem romana e mártir Inés de Roma (ca. 291-304), sacrificada durante as perseguições de Dioclesiano.
Segundo a tradição, teria sido a própria filha de Constantino que fomentou o culto, fazendo construir a basilica em sua honra na via Nomentana, um dos centros de uma devoção que se difundiu pela Europa na Idade Média.
A sua festa, no dia 21 de janeiro, foi marcada no calendário festivo pela benção dos cordeiros cuja lã era usada para atributo cerimonial de papas e arcebispos metropolitanos. Estes o recebem no dia 29 de junho, festa de S. Pedro e S. Paulo. Essa peça do vestuário indica o vínculo dos prelados com o papa na missão de pastores de almas e, assim, do homem novo na imagem do cordeiro.
Com esse patrocínio, os Franciscanos de Santa Inés demonstravam o seu vínculo de obediência com Roma, os seus vínculos com o Pontífice como pastor e representante do Divinio Pastor na terra. Esse pêso dado à imagem do pastor - e dos indigenas como ovelhas e cordeiros - vinha de encontro à função primordialmente de pastoreio da missão, dando-lhe dimensões transcendentes de sentidos.
A imagem da virgem Santa Inês com o cordeiro nos braços da igreja da missão surge não como um pendant feminino àquela de S. João Batista, mas sim como um anti-tipo do Predecessor como guia do homem da antiga Humanidade ou carnal, havendo assim uma lógica interna nas relações entre Santa Iens com a missão de San Juan Bautista - a "Missão da Música".
Dava-se continuidade, assim à tradição medieval que via no Predecessor um padroeiro da música, em particular daquela a várias vozes. Tudo indica também que foram transportadas para o Novo Mundo concepções relacionadas com a imagem do boi e da carne de práticas festivas tradicionais ibéricas do culto ao Espírito Santo e de Pentecostes da primavera européía.
A música nas atividades educativas em Santa Inés e San Juan Bautista
O museu de Santa Inés testemunha a importância da prática musical na missão fundada por Tapís. Esta assumiu o seu ponto culminante na de San Juan Bautista, onde dedicou-se especificamente ao ensino de meninos indígenas.
Diferentemente dos Jesuítas, que à época de sua fundação alcançaram dispensa da obrigação do canto comunitário das horas, os Franciscanos,de muito mais antiga tradição, tinham o canto dos ofícios diários como parte integrante e indispensável da vida religiosa.
Consequentemente, também os indígenas da missão tomaram contato de imediato e continuamente com o Canto Gregoriano.
O acervo da missão guarda valiosas edições e manuscritos de Canto Gregoriano. Entre estes, destaca-se um manuscrito com o registro dos 8 tons para os salmos, leituras e Gloria Patri. Essa tábua - "De los ocho tonos de todas las misas del ano" - poderia ter servido à memóría dos religiosos ou mesmo ao ensino.
Ponto alto dos oficios cantados do calendário era a Semana Santa, salientando-se as Lamentações de Jeremias.
O Gregoriano a várias vozes em Santa Inés e sinos
Os manuscritos - assim como aqueles de Santa Barbara - dão testemunho de práticas de execução do Canto Gregoriano a várias vozes. Sobretudo o nome de E. Tapis é lembrado como introdutor de uma notação musical a três cores que, à primeira vista, nem sempre é reconhecida como fixação de pratica de execução a mais vozes do Gregoriano.
Esses documentos são de extraordinária importância pela sua raridade, esclarecendo práticas que também existiram no Brasil e que não foram anotadas, um fato que vem preocupando há décadas os estudos musicológicos . (A.A.Bispo, "Zur traditionellen Praxis des Gregorianischen Chorals in Brasilien". H.P.M. Litjens u. G.M. Steinschulte (editores), Divini Cultus Splendori: Studia Musicae Sacrae necnon et Musico-Paedagogiae, Liber Festivus in Honorem Joseph Lennards. Roma, 1980, 97-106s.)
Tudo indica que a fixação a cores das linhas vocais sobrepostas ao Gregoriano foi feita no sentido de registrar a tradição oral. Esta teria transplantado para o Novo Mundo antigas práticas polifônicas, organais e de falso bordão. Elas nãõ se mantinham apenas vivas em Roma, como se vem estudando, mas também em outras regiões européías, no caso, possivelmente, no espaço ibérico.
O ensino instrumental foi também importante fator na formação cristã de indígenas nas missões franciscanas da California, como o museu de Santa Inés e aquele de Santa Barbara o demonstram. A prática da música instrumental tem sido estudada sobretudo no concernente às missões jesuiticas, em particular as do Paraguai.
A importância dos instrumentos e dos conjuntos instrumentais entre os Franciscanos da Califôrnia levanta porém questões. É possível que, assim agindo, dessem continuidade a uma tradição já implantada pelos jesuitas expulsos. Antes é de se supor que o acompanhamento instrumental servia para o apoio do coro na execução a várias vozes.
Essa prática teria sido trazida pelos primeiros indígenas Chumash que vieram para a missão em 1804 de Santa Barbara, onde tinham sido ensinados pelo Fr. Fermin Lasuén.
Nessa tradição, criou-se um coro e um conjunto instrumental, conhecendo-se os nomes de dois de seus principais cantores: Luis Anasoyu, baixo, e Venancio Lamlawinat, contralto. O coro atuava em missas, na Semana Santa e em dias festivos.
Alguns desses instrumentos ou de suas partes são conservados no museu.
Digno de menção e o fato de ter-se criado uma tradição de prática musical mantida pelos próprios músicos mesmo após a secularização e o abandono da missão. Registra-se assim um desenvolvimento similar àquele conhecido do Brasil.
Nas últimas décadas do século XIX e início do XX, a tradição coral com acompanhamento instrumental foi mantida por Rafael Solares, de origem indígena, e Fernandito Cardenas, nascido no Peru e que vivia entre os indígenas Chumash.
O museu de Santa Inés adquire significado também para estudos campanológicos. Nele se encontram sinos de 1804, 1817 e 1818.
De ciclo e estudos da ABE sobre a direção de
Antonio Alexandre Bispo
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). "Tipologia hagiográfica da vida indígena nas missões - boiadeiros e cordeiros. João Batista e a polifonia. Práticas tradicionais do Canto Gregoriano no Brasil e na América do Norte“. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 164/3(2016:06). http://revista.brasil-europa.eu/164/Sta_Ines_California_Brasil.html
Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha
Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
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